Nestes dias em que as sombras de um obscurantismo científico e filosófico pairam, não apenas sobre o país, mas também sobre o mundo em guerra, compartilho, através desta teia virtual, um pouco dos sentimentos vividos e compartilhados através do encontro de uma rede real, tecida por corpos, olhares, sentimentos, falas, gestos, ações, práticas, sonhos, esperanças, e incontáveis outras possibilidades genuinamente humanas que são capazes de nascer dos e nos encontros interpessoais.
A 1ª Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos em Luta do Rio Grande do Sul aconteceu nos dias 19 e 20 de março, em Santa Maria, na Aldeia Guarani Mbya - Tekoa Guaviraty Porã, que significa "terra da 'gavirova' boa" (e o termo aqui, remeto ao português que aprendi de meu avô Chico, embora em Pelotas, Guabiroba, com b, seja até nome de bairro). Fui à convite e junto com os amigos do GAE/UFPel e levei comigo algumas sementes destas que compartilhamos com a Cáritas de Pelotas, onde procuramos sempre recordar que elas são presentes, Tupambaè, como a Terra, dons de Deus.
Sim, fui em busca de algo, que talvez não soubesse bem expressar, até porque, até então, o encontro seria no Assentamento do MST, que fica ao lado da aldeia, não sabia que acamparíamos em uma aldeia guarani. O sentimento de ingressar em Terra Indígena à noite, junto de muitas outras pessoas movidas por uma grande causa, para juntos refletirmos, como e com os povos originários, em círculos concêntricos, escutando, sentindo, partilhando e vivenciando histórias de vida e sabedoria dos indígenas e outras tribos da Terra, foi indescritível.
Bem dizem os Mbya Guarany, que não se deve sempre confiar nas intenções dos juruá (os colonizadores), e nos custa entender, reconhecer e reparar os motivos deste forte resguardo de suas tradições. Um mate ao lado de Karaí, jovem indígena de Maquiné, RS, que antes mesmo de começar a abertura da manhã do primeiro dia, já falava de sua vida, de sua cultura, de seu jeito de viver, costumes e experiências de quem vive e resgata o jeito milenar de viver destas terras de veias abertas, foi o primeiro contato direto com a cultura guarani naquele dia.
À tarde, tentando imitar o canto e a sonoridade de suas cantigas, entendemos o que significa "canto e danço, portanto sou". É no bem viver que a vida se faz comprometida, é no brincar que desperta-se o que é genuinamente humano. O processo de preparo da caa, erva-mate, o preparo das refeições e a limpeza, sempre em mutirão, e o compromisso coletivo pelo espaço, pelas pessoas, demonstraram a beleza do viver em comunidade, humana, não perfeita, mas disposta a fazer e ser diferente.
Sim, as intenções dos juruá, muitas vezes não são as melhores, mas às vezes são, sim, eu buscava quem mais me aproximaria de Nhanderu, o Sagrado, para o povo guarani. Queria saber quem era o pajé daquela Aldeia, que intencionalmente não me havia sido revelado. Foi à tarde, que o nosso amigo guarani, que trouxera o violão e que cantara, de modo jaguaretê, que significa valente, quase sem querer, disse que a mãe dele era a pajé daquela aldeia.
Uma mulher, como as outras mulheres que caminhavam silenciosas, de passo firme, sempre assertivas, por entre seus curumins, e por entre nós outros, juruá, que lá nos encontrávamos. Foi ao entrar do Sol, que ela veio, pequena, séria e serena ao mesmo tempo, distinta no modo de andar, observar e dialogar. Ela comunicava o sagrado no modo como aproximou-se e saudou a cada um dos guarani que lhe cumprimentaram com seriedade e reverência, ela mostrou-nos o bem viver, a Terra Sem Mal, no modo como andou por entre eles, e sem dizer uma palavra, sequer em guarani para que nós outros a escutássemos, ela esteve entre nós.
Observou atenta as cantigas e gritos de lutas das mulheres que ali estavam, sorriu e acompanhou a caa, que secava no carijo, enquanto um de seus filhos, talvez sobrinhos ou netos, não sei, e também não importa, porque somos todos irmãos, cuidava do fogo, que "robusto e forte", secava os galhos de erva-mate no carijo.
Na manhã de domingo, seu filho, o que era músico e cantara em guarani conosco na tarde anterior, me anunciou sua chegada, com um pouco de receio. Eu disse que já a conhecia, porque a havia visto na noite anterior, ela saudou-me, mas não me deu muita atenção, porque, claro, não se deve confiar nas intenções dos juruá, ela fez bem. Queria me reencontrar com ela, sem pedir-lhe nada, mas de alguma forma entendendo o significado daquilo que ela tinha para nos apresentar. Foi assim que, quando o encontro ia para o seu encerramento, mestre Joelson e a pajé Rita diriam suas falas finais, junto a Eduardo que organizara o evento, depois de partilhadas muitas sementes entre os que lá estavam, tomei as sementes que restaram e as levei até ela. Ela sorriu, sentou-se e compartilhou com as outras mulheres que estavam próximas. Depois nos encontramos na troca de sementes, e ao final do encontro, alcancei-lhe o primeiro mate da erva-mate recém moída no pilão, por Papá, aquele que cuidou de Tatá, o fogo, naquela noite de carijo.
Aveté, agradeço a todo o povo guarani, e em especial a esta mulher, mãe e avó de um povo, que revelou-me o Sagrado com poucas palavras. Fez-me entender a terra onde nasci, na qual vivo e para a qual um dia voltarei, que é Tupambaè, Terra de Deus, através de seu jeito de ser. Mostrou-me a beleza da alma Guarani Mbya, desde o olhar, o sorriso, a ternura, a compaixão e o amor com a Mãe e Irmã Terra. Esta foi, certamente, uma importante teofania, que em mim há de ressonar como as cantigas e rezos dos guarani.
Gratidão a Deus, Mãe Pai de todos os Povos, pelos encontros, pelos elos desta teia que se reforça, por toda a esperança compartilhada. Faz escuro, mas cantamos, embora cantemos chorando... assim como cantam os Mbya Guarani.
* Filósofo e educador
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato
Edição: Katia Marko