Rio Grande do Sul

REFORMA AGRÁRIA

A jornada da lona preta até a produção do arroz sem veneno e de alta qualidade

Saga de uma família gaúcha resume o longo caminho dos sem terra para vencer o preconceito e mostrar a ascensão social

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Everaldo e a família: uma longa caminhada do acampamento ao assentamento - Foto: Ayrton Centeno

“Eu digo que o arroz são dois, são duas partes. Uma é da lavoura, o preparo de solo, semear, a germinação, o crescimento, a água. A outra é o recebimento e o beneficiamento. A gente faz a cadeia toda até a comercialização”. 

Quem fala assim, com seu jeitão despachado e domínio do assunto, é o Everaldo. Parece até mentira que, tempos atrás, arroz era um negócio estranho para ele. Não sabia nada do grão. Everaldo era da soja, do milho e do feijão. Mas não tinha onde semear.

Aos 17 anos, sabedor que os 15 hectares do pai em Ronda Alta, Norte gaúcho, era pouco chão para repartir entre ele e os quatro irmãos, tocou-se para debaixo da lona preta. Gastou cinco anos penando de acampamento em acampamento. Passou por Bagé, Cruz Alta e outros municípios. Teve bastante tropelias com a Brigada Militar. E o que ouviu de muita gente na época?

"Quando viam um sem terra chamavam a gente de vagabundo. E diziam que vagabundo tinha que apanhar da polícia. Muito preconceito. Mas provamos o contrário. Que os vagabundos que eles falavam hoje tem a sua própria produção e vivem da sua produção."

Ele não tem dúvidas: valeu a pena. Conquistou enfim seu lote no Assentamento Capela, em Nova Santa Rita, município da região Metropolitana de Porto Alegre. Ali, pisando na primeira terra que podia chamar de sua, começou a cultivar arroz sem veneno.

"Destas 29 famílias que estão na cooperativa, ninguém plantava arroz. Ninguém conhecia, ninguém sabia. Então, a gente foi buscando conhecimento técnico. Ano após ano, fomos evoluindo até a gente dominar toda a cadeia do arroz."


Everaldo no engenho: “a gente buscou conhecimento técnico” / Foto: Katia Marko

Produzindo uma “bóia de qualidade”

Hoje, Everaldo Luiz Balbinot fica de olho no processamento. É ele quem comanda o processo de recepção do arroz agroecológico – sem adubos químicos, sem veneno e cultivado com cuidado com o meio-ambiente – que chega através das 29 famílias cooperadas ao engenho do assentamento e sai de lá industrializado, empacotado e popularizando Brasil afora a marca que leva nas embalagens.

"A gente trabalha feliz, fazendo aquilo que gosta. Se conquistamos a terra, tem que se fazer ela produzir. E a gente produzindo – e isso é outro passo – tem que produzir uma bóia de qualidade."

A bóia de qualidade só se consegue trabalhando duro. “Tem que se cuidar do grão, desde que entra no engenho, até que se faz a classificação, bota no pacote e entrega”, resume, apontando para esteira onde correm as embalagens do arroz sem agrotóxicos da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita, a Coopan.

"Cada equipe tem uma especialidade. Aqui dominamos o beneficiamento e o empacotamento. O pessoal da lavoura domina o processo de preparo do solo, plantio, até a colheita."


Na esteira, empacotado, o arroz orgânico ruma às prateleiras / Fotos: Ayrton Centeno

Namoro e casório no assentamento

Rosane e suas cinco irmãs, mais o pai, Alfredo, o avô e todos os tios passaram pelo calvário dos acampamentos. Não tinha seis anos quando enfrentou o primeiro deles. Depois foram muitos, tantos que não consegue recordar por quantos passou ao longo de cinco anos nas barracas.

"O que eu me lembro mais é o de Bagé, depois o de Não-Me-Toque e mais o do Pinheirinho. E, agora aqui."

Aqui é também o assentamento Capela, o mesmo de Everaldo. Na verdade, a história dos dois é bem parecida. Tão parecida que até se casaram.

"Ele me conhecia do tempo do acampamento, mas eu não lembrava dele porque eu era muito criança. Aí viemos pra cá e daí nos encontramos aqui."

Se os avôs, tios e pais de Everaldo e Rosane encararam a dura vida de acampados, as filhas do casal, Andressa, de 23 anos, e Julia, de 18, já nasceram no assentamento. Ambas trabalham na cooperativa, Andressa no silo e Julia, no manejo de suínos. Rosane não teve condições de estudar, mas Andressa faz faculdade de Fisioterapia e Júlia, no último ano do colégio, prepara também o caminho para a universidade.

Chegando só com a cama e o fogão

"É o que eu sempre digo pras minhas filhas: tenham orgulho do que vocês têm hoje. Quando chegamos aqui, nós tinha só uma casinha e mais nada. Chegamos, bem dizer, com uma cama e um fogão. E hoje ter uma estrutura como a que temos é uma coisa muito gratificante pra gente"

E qual foi a pior lembrança do tempo de acampada?

"O mais pesado foi uma ocupação, acho que na (fazenda) Bom Retiro. A gente nunca ia junto. Ia só o pai. Mas, criança, queria participar. Aí, o pai disse: 'Então, vamos!' Tinha muita polícia. Foi o que me marcou mais."

Rosane também trabalha. É na padaria do assentamento que faz pão, cuca e bolacha e vende, principalmente, para as escolas da região.

"Agora, com a pandemia, demos uma baixada. Quando a gente tinha bastante pedidos eram mais de quatro mil quilos por mês."


Na parede do ginásio de esportes, a presença da sabedoria popular / Foto: Ayrton Centeno

Casa, trabalho e família

A conquista da terra definiu a vida tanto da família de Everaldo quanto a de Rosane. O pai e a mãe de Rosane também moram no assentamento como produtores individuais. Das suas quatro irmãs, apenas uma escolheu a vida da cidade. As demais são assentadas. 

"Tenho uma aqui, também é da cooperativa, casada com um daqui. Tem outra assentada ali em Santa Rita de Cássia. A do meio tá morando junto com o pai e a mãe."

Quando a gente pergunta para Rosane o que considera uma vida digna, a resposta é pronta. "É a vida que eu tenho hoje. Meu trabalho, minha família, minha casa. Pra mim é isso."


Novo matadouro construído por assentados vai dobrar abates diários


Assentamento gaúcho que celebrou a 19ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico neste mês de março vai inaugurar abatedouro e centro de vendas / Foto: Letícia Stasiak

A grande produção da Cooperativa Agropecuária Nova Santa Rita, a Coopan, do assentamento Capela, é o arroz ecológico produzido sem veneno, sem adubos químicos e cultivado com proteção ao meio-ambiente. E não só é semeado e colhido mas também beneficiado e embalado no próprio assentamento. Agora, porém, a Coopan vai experimentar um novo avanço. Hoje, seu matadouro abate 400 suínos por semana mas, na nova unidade, que está praticamente pronta e aguarda apenas a licença para operar, a capacidade será de 200 suínos/dia.

“Com o abatedouro novo, a gente vai ter a possibilidade de fazer produtos derivados como salame, salsichão, copa, morcília etc”, adianta a economista Indiane Witcel Rubenich, também filha de assentado e que trabalha no escritório da cooperativa situado no município de Nova Santa Rita, na região metropolitana de Porto Alegre. E há outra novidade engatilhada: o matadouro também permitirá o abate de gado bovino e a entrada futura do assentamento em novo segmento.

“A gente vai ter esta estrutura mas não vai ser o nosso foco inicialmente. Até porque não temos muita experiência mas vamos poder trabalhar com carne bovina também. Então vai dar um salto enorme”, explica Indiane. Abrem-se então novas perspectivas para a Coopan que hoje coloca carne suína em 15 municípios da região.

Além do abatedouro, será inaugurado um centro de vendas, hoje em construção ao lado do escritório central do assentamento, para atender os muitos visitantes de outras cidades.

“A ideia é potencializar os nossos produtos, como arroz, padaria e carne, principalmente a suína, mas também incrementar os demais produtos dos assentamentos. Vai ser um armazém com produtos da reforma agrária, principalmente, e de pequenos produtores também”, explica a economista.

Além do arroz e da carne, a cooperativa também produz e vende leite, pães, bolachas e mel.

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Edição: Katia Marko