Rio Grande do Sul

ENSINO

“Colégio dos Ditadores” faz 110 anos dividido entre conservadorismo militar e educação cidadã

Passaram pelos bancos da Escola Militar os cinco presidentes do período autoritário, mais Getúlio Vargas e Gaspar Dutra

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Colégio Militar de Porto Alegre completa 110 anos nesta terça-feira, dia 22 de março de 2022 - Foto: André Daguiar

Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Além de serem todos generais e terem ocupado a Presidência da República no atalho do golpe militar de 1964, há outro dado que partilham nas suas biografias: todos foram alunos do Colégio Militar de Porto Alegre, fundado também em um 22 de março, 110 anos atrás, para preparar a elite dos quartéis.

Durante a ditadura (1964-1985), a escola ganhou o apelido de “Colégio dos Presidentes” por conta de seus cinco notáveis. Hoje, quando todos os historiadores coincidem em identificar no período um regime ditatorial, seria mais preciso chamá-lo de “Colégio dos Ditadores”.

Ainda mais porque, além do quinteto fardado, também Getúlio Vargas, ditador entre 1937 e 1945, passou por seus bancos escolares. Na condição de presidente eleito pelo voto popular, o colégio fez um sétimo estudante presidente, o general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951).

Lamarca e Mourão

Outros ex-alunos tornaram-se personagens identificados com os 21 anos do regime militar. O vice de Geisel, general Adalberto Pereira dos Santos, por exemplo. Foi um dos conspiradores de 1964. É o caso também do general Orlando Geisel. 

Irmão do presidente, foi ministro do Exército. Em 1961, no episódio da Legalidade, quando era chefe de gabinete do ministro da Guerra, Odylio Denys, ordenou que os caças da FAB na Base Aérea de Canoas bombardeassem o Palácio Piratini, o que somente não aconteceu porque parte da Base se rebelou. Outro irmão, este de Costa e Silva, o general Riograndino da Costa e Silva, foi chefe do Departamento de Segurança Militar. 

Da turma mais nova, que chegou ao poder pelo voto, consta o general Hamilton Mourão, hoje vice de Jair Bolsonaro, e possível candidato ao Senado pelo Rio ou pelo Rio Grande do Sul.

Na redemocratização, o CMPA virou notícia por conta de duas polêmicas. Uma delas envolvendo o aluno Carlos Lamarca. O futuro capitão do exército, líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e guerrilheiro mais perseguido pela ditadura formou-se lá em 1957. 

Em 1996, indignado com a Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo FHC que decidira indenizar os familiares de Lamarca, o comandante do colégio, Andrade Neves Pinto, resolveu reescrever a história: mandou borrar o nome do formando Lamarca da placa de bronze com a nominata da sua turma. A decisão seria revertida depois.

Admiração por Hitler

No ano anterior, Adolf Hitler fora indicado por oito formandos da turma de 1995 como a personalidade histórica mais admirada. Também foram votados Átila, Catarina da Rússia, Hércules, Nostradamus e Drácula. Só se soube do resultado da enquete quando foi publicada, dois mais tarde, na revista Hyloea, editada no colégio.

Esta segunda controvérsia conseguiu juntar a escola e o hoje presidente Jair Bolsonaro, que nunca estudou lá. Em 1998, então deputado federal, ele defendeu “a liberdade de escrita” dos alunos explicando a escolha do líder nazista através da carência de exemplos de ordem e disciplina por parte do então presidente Fernando Henrique Cardoso. “Eles (os estudantes) têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina”, justificou.

Ensino de excelência

Desde 1989, o colégio tem também meninas nas salas de aula. Dos cerca de mil estudantes, elas são mais de 40% no quarteirão que ocupa próximo ao centro da capital gaúcha. E não prepara apenas para a carreira das armas. Ex-alunos civis virariam famosos. Um deles o poeta Mario Quintana, outro o artista plástico Vasco Prado. E o estudante Francisco Brochado da Rocha foi primeiro-ministro no breve período parlamentarista de 1962. 

Ao longo de mais de um século, cultivou um ensino de excelência. Em 2019, a pontuação média do colégio no ENEM foi de 657,7. Acima de Porto Alegre (608,4) e Brasil (593,3). O CMPA possui observatório astronômico, salas multimídia, laboratórios de ciência e de informática, equipamentos muito distantes da realidade das escolas públicas e mesmo da maioria das particulares. E participa de Olímpíadas acadêmicas e esportivas dentro e fora do Brasil.

Dos professores, 60% são civis com liberdade de cátedra. Concursados e de carreira como se fosse numa universidade. Os 40% restantes são militares divididos em dois grupos. Um é formado por oficiais do Exército com função civil. São médicos, advogados ou outros profissionais liberais que fazem um ano de formação militar e são admitidos. Representam a maior parcela dos docentes militares. No outro, estão os militares de armas. “Algo como um coronel da reserva que vai dar aulas de matemática”, ilustra um ex-professor do CMPA que pediu sigilo sobre sua identidade e que chamaremos de “Alberto”. 

“Estes tendem a ser mais bolsonaristas”, repara, acrescentando que, vez por outra, surge um desconforto entre civis e militares de armas. “Tentam tutelar”, comenta.

Semana de 18 horas e salário de universidade

Tornou-se senso comum atribuir a qualificação à severidade no trato com os alunos, próxima aquela de um quartel. Não é bem assim.  

Para Alberto não há dúvida sobre a fonte de onde provém a excelência. “O CMPA paga muito bem, em média salários de R$ 15 mil, equiparáveis à universidade, para uma semana de 18 horas. Assim, recruta os melhores profissionais, na maioria através de concurso”, diz. Salienta ainda que os colégios militares se situam, em geral, nas capitais onde, em regra, estão os profissionais mais preparados e os estudantes mais qualificados. 

“Seus professores - prossegue - não se dividem entre duas ou três escolas para ganhar a vida”. Para o ex-docente, “é ilusório achar que a farda e a continência produzem o resultado”. Com uma ponta de ironia, observa: “o ensino é muito bom apesar dos militares...”

“Os professores, na maioria, têm pelo menos mestrado. E o investimento vem do Ministério da Defesa, e não do MEC”, acrescenta Jorge, um ex-aluno aqui também com nome fictício. É um quadro “incomparável” com o que se passa no restante da rede pública.  

“Um lugar civilizado”

Mas concede que, além dos recursos, o colégio “passa valores”. Tais valores, pondera, “não são os da família tradicional como a opinião pública pode pensar”. Jorge ressalta que “é um lugar civilizado e não de violência e desrespeito”. Recebe-se, comenta, “uma noção maior de como conviver uns com os outros”. Para tanto, existe uma nota de comportamento.

E os alunos de onde vêm? “Oitenta por cento são filhos de militares e não concursados”, conta Alberto. E teriam que perfil? “É evidente que alunos que buscam as carreiras militares são mais conservadores. Mas não vem do colégio e sim da família que é militar e conservadora”, interpreta Jorge.

Alberto percebe uma escalada direitista na escola a partir de 2014. Mas ressalva: “as instituições todas e não só as militares foram contaminadas”.  E Jorge complementa: “Alunos dos colégios privados têm perfil mais conservador do que os do CMPA. Posso afirmar isso.” Alberto concorda: “há estudante no colégio muito aberto e com muito espírito crítico”. 

“O fato de termos uniformes e sermos militarizados - continua Jorge  - não nos faz mais conservadores.” Nas escolas particulares, “existe mais censura e os professores tomam muito cuidado para não serem demitidos”, argumenta, o que não ocorreria no CMPA devido aos profissionais serem concursados.  

Do feudalismo para o aborto

E como a escola aborda o golpe civil-militar de 1964? Jorge conta sua experiência: “meu professor, um coronel, optou por dar a aula da forma mais imparcial possível. Nos passou a definição de golpe, de revolução, de contragolpe e de contra-revolução. Na situação em que estava, não poderia fazer isso de outra maneira”. Era 2018, ano eleitoral e com Bolsonaro em campanha. 

Foi o último ano daquele coronel como professor de História. Outro coronel assumiu. “Era de extrema-direita, com abordagens completamente distorcidas”, relembra o ex-aluno. “Estava, por exemplo, tratando de feudalismo e parava a aula para falar sobre aborto e fazer doutrinação.” 

Outro professor, este de Geografia e também militar, apresentava uma visão muito parcial. “Quando íamos abordar os conflitos internacionais - recorda Jorge - tratava as coisas de forma maniqueísta com aquele discurso da política externa dos EUA, da “Guerra ao terror”. Jorge, porém, considera ambos como “exceções”. 

Esquerda e direita estão erradas

Ele observa que, como parte dos alunos vai enfrentar o ENEM e outra a admissão na carreira militar, há diferenças na preparação. “O português de quem vai para o ENEM é muito interpretativo, enquanto o do pessoal que vai para os quartéis é mais gramatical.”

Jorge considera o colégio “muito plural” e que tanto a direita quanto a esquerda possuem visões erradas do CMPA. “À direita, acham que é doutrinador e rígido. À esquerda, julgam também que é rígido, que lá não se aprende direitos humanos e que somos hiperconservadores.” 

Na sua visão, são premissas equivocadas. “A qualidade do ensino não tem a ver com a rispidez ou rigidez, mas com a qualidade dos professores, dos recursos do colégio, das atividades extracurriculares que proporciona e da educação cidadã”, define. 

O Brasil de Fato RS buscou ouvir o CMPA sobre seus 110 anos, enviando-lhe uma relação de questões. Na resposta, a escola pediu que as perguntas fossem remetidas à Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), do Exército, com sede no Rio, o que foi feito no dia 9 deste mês. Até agora não obtivemos as respostas. Quando chegarem serão anexadas à matéria.


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Edição: Katia Marko