Esta semana comemoramos os 250 anos de fundação de Porto Alegre. Além da programação de exaltação da cidade, que se transformou em uma grande e complexa metrópole, é o momento de fazer um balanço desta história, do seu desenvolvimento urbano, das conquistas de sua população, dos problemas enfrentados e dos projetos propostos para o futuro que estão colocados. Nossa atuação é em prol de uma metrópole com gestão democrática, inclusiva, menos desigual, diversa, com igualdade étnico racial e de gênero e ambientalmente sustentável.
O Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre, convida a todas e todos que aproveitem esta semana de reflexão sobre os rumos da cidade.
Mui Leal e Valorosa Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. Um nome demasiado extenso para os dias atuais. Porto Alegre, Porto, Portinho, POA: melhor. Mais adequado para a era das startups e das redes sociais.
A metrópole de Porto Alegre que chega aos seus 250 anos passou por diversos períodos e etapas de desenvolvimento. Freguesia, porto, capital, cidade comercial, cidade industrial, metrópole industrial, metrópole de serviços e “informacional”. Em todas estas fases Porto Alegre foi uma cidade, uma metrópole, do seu tempo, com as lutas, as conquistas, os problemas e as contradições do momento.
Iniciou o século XX junto com o processo de industrialização, as migrações europeias, a migração de negros e “pelos duros” do interior do estado, que trouxeram crescimento populacional e impulsionaram uma modernidade urbana, traduzida em um novo cotidiano e em obras que “melhoraram e embelezaram” sua área central. Melhoramento e embelezamento aqui como “eufemismos” para a modernização e expulsão dos pobres, dos indesejados, das “classes perigosas” para fora do centro, ainda o local de residência das elites, bem ali próximo aos palácios do poder.
Ainda no século XX a cidade adotou o planejamento urbano, de inspiração novamente europeia e olhando com certo ciúme para as belas capitais platinas mais próximas. Grandes planos que transformaram a natureza (os aterros do Guaíba) e construíram a cidade “ideal” para os ricos e as classes médias, enquanto negros e pobres eram invisibilizados nos seus territórios e expulsos dos espaços centrais para as periferias urbanas mais distantes.
A ditadura militar, com outra visão de “modernização”, impôs uma transformação radical da forma urbana com desprezo pelo patrimônio herdado e a partir das grandes obras viárias (viadutos, perimetrais, corredores de ônibus), privilegiando o transporte privado e da circulação, além da intensa verticalização do centro, que nas décadas seguintes iria cobrar a sua fatura, com a sua “decadência” e o abandono das funções mais nobres para outras centralidades. Aos pobres a informalidade das vilas, a precariedade dos loteamentos “clandestinos” ou a aridez dos grandes conjuntos habitacionais periféricos. E a partir daí a cidade vai além dos seus limites municipais, extravasando sua mancha urbana para a região Metropolitana. No final deste período os trilhos e estações do trem metropolitano integram e desintegram cidades.
O pós-ditadura foi de ressurgimento dos movimentos sociais e populares. As periferias, dos morros à Restinga, se mobilizaram por direitos, democracia, serviços, moradia digna. Estas mobilizações culminaram com a eleição das “administrações populares”. Que trouxeram um experimento de democracia direta, de planejamento participativo, de inovações sociais e urbanas e uma imagem internacional global, da cidade dos Fóruns Sociais Mundiais.
A Região Metropolitana se estruturou ainda mais, recebendo agora as indústrias que foram em busca do espaço que a Capital já não proporcionava para a sua expansão. Ao capital industrial interessa a fluidez no e do espaço para qual a metrópole, com suas deseconomias, representa um entrave. Com a desconcentração industrial o proletariado industrial também “se mudou”. Na Capital a concentração de uma nova classe-que-vive-do-trabalho vinculada ao comércio e serviços. Cidade, metrópole, região se vincularam ainda mais com o nascimento de uma consciência política metropolitana. O trem metropolitano percorre o “caminho das estrelas”.
O século XXI foi novamente de mudanças. Os ventos do neoliberalismo que sopravam no mundo, no país e no estado, passam a soprar por aqui também. O final do período das administrações populares trouxe novas mudanças para a Capital. Inicialmente mudanças paulatinas, sem grandes sobressaltos, mas já alterando as estruturas do Orçamento Participativo em prol de uma “governança solidária”.
Neste momento o país vivia os anos de crescimento econômico, com grandes obras de infraestrutura e programas governamentais de moradia. Foi o período das “obras da Copa do Mundo” de 2014 que, às vésperas da Copa do Qatar, ainda não foram concluídas.
Os governos que assumiram a gestão da Capital após 2004 trataram (com relativo êxito) de desconstruir da memória da população o período das administrações populares - especialmente com relação ao Orçamento Participativo, experiência porto-alegrense que espalhou-se pelo mundo no final do século XX e início do XXI, a ponto de diversos documentos internacionais o considerarem um modelo de gestão urbana.
Esta “desconstrução” não ocorreu por acaso. Era preciso conquistar corações e mentes e preparar a cidadania para o novo período de produção da metrópole e sua inserção no global, o período que estamos atravessando no momento. E nos últimos anos observamos uma intensa movimentação de transformação do espaço metropolitano que, em nossa visão, pode ser considerada uma nova fase, um novo período ou etapa da construção de nossa metrópole.
Pandemias à parte, observamos nos últimos dez anos, pelo menos, uma reestruturação socioespacial da metrópole com o avanço da produção imobiliária sobre novos espaços, criando novas fronteiras de desenvolvimento. Expansão para as periferias, avanço sobre as áreas rurais, ocupação de espaços antes desvalorizados, grandes projetos e programas de “renovação” urbana, gentrificações.
Aparentemente toda esta movimentação visa “modernizar” e “embelezar” a metrópole (o mesmo discurso 100 anos depois!) e coloca-la junto aos grandes centros mundiais. Por outro lado observa-se um aumento da exclusão, da segregação e das desigualdades socioespaciais em Porto Alegre. Além de uma “consciência” mais individualista e egoísta entre as diferentes classes sociais, onde percebe-se que antigos esquemas de convivência, solidariedade e trânsito entre diferentes realidades da metrópole, entre centro e periferia, entre ricos e pobres, entre incluídos e excluídos, desapareceram.
A fábrica do homem e da mulher neoliberal tem encontrado um solo fértil na capital dos gaúchos. O individualismo, a meritocracia, o empreendedorismo voraz dominam as narrativas sobre a cidade. O capital está avançando sobre os “espaços luminosos” da metrópole e o poder público está abandonando a periferia à própria (má) sorte, desassistida e aviltada pelos nefastos efeitos sociais da pandemia.
O povo se organiza e surgem novos movimentos sociais, com outra leitura do que está acontecendo e uma nova consciência urbana. E com a possibilidade de novas formas de convivência nos espaços públicos e comuns. Assim como movimentos que lutam por garantir moradia digna nos espaços centrais, por trabalho, emprego e renda, por assistência social, pelo empoderamento feminino, por distribuição democrática dos recursos públicos e melhorias na qualidade de vida das pessoas. Movimentos que olham a cidade não como uma mercadoria, e sim como um espaço de todas e de todas.
A gestão urbana se anuncia cada vez mais como “empreendedora” e facilitadora dos negócios urbanos, assumindo de vez a narrativa da inovação e do empreendedorismo, da cidade resiliente e “inteligente”. O governo da cidade vê o capital imobiliário como um motor de crescimento econômico, de geração de empregos, razão pela qual promove a desregulação e a flexibilização das regras urbanísticas, além de voltar suas atenções para setores ainda livres da especulação imobiliária, como é o caso da orla do Guaíba, convertida em “joia da coroa” para as grandes construtoras.
Milton Santos, o grande geógrafo brasileiro, cidadão do mundo, via a globalização a partir de três óticas: como fábula, como perversidade e como possibilidade. Assim podemos ver a atual Porto Alegre, mais além do seu pôr do sol.
A fábula é que estamos em uma cidade que se moderniza, que é empreendedora, inovadora, que é resiliente e “sustentável”. Uma cidade que transforma sua orla, que revitaliza seu cais do porto, que vai renovar o Mercado Público, o Centro Histórico e ter o seu “distrito criativo”. Além de novos bairros planejados, conjuntos residenciais modernos, condomínios fechados, onde os moradores desfrutarão de uma vida urbana e social intensa. Uma cidade que irá sediar uma “feira mundial de inovação” e que por isso é um grande “centro inovador” do Brasil e do Mercosul. A fábula é que poderemos viajar em “cápsulas” de Porto Alegre à Caxias do Sul em menos de 20 minutos!
A perversidade é que esta modernização, a cidade inovadora e empreendedora não é para todos e todas. Especialmente após a pandemia, a crise econômica e social bateu forte nas periferias, com o aumento do desemprego, da miséria e da fome. Mesmo nas áreas centrais, populações de rua abandonadas à própria sorte, comunidades em extremas dificuldades. A perversidade de uma cidade inovadora e resiliente que não admite jovens vereadoras e vereadores negros e negras em sua Câmara Municipal, um espaço quase blindado pelos representantes das elites. A perversidade da cidade inovadora que deixa uma casa de acolhida para mulheres vítimas de violência durante meses sem energia elétrica. A perversidade da ausência de transporte coletivo que permita aos moradores de bairros mais distantes chegarem aos seus locais de trabalho (os que têm trabalho).
A possibilidade é que felizmente ainda nos resta a esperança de retornarmos a outros tempos desta metrópole em que havia mais democracia, mais solidariedade e mais tolerância. Não um retorno nostálgico ao passado, mas um retorno de acordo com os desafios e as possibilidades deste tempo que vivemos de redes de conectividade instantânea, que aproximam e ao mesmo tempo difundem fábulas e perversidades. A possibilidade de que todas e todos tenham o direito de viver felizes nesta cidade, e que o “alegre” não esteja apenas no seu nome.
* Professor do Departamento de Geografia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira