Desde 2014 a extrema direita se aproxima das organizações paramilitares de neofascistas na Ucrânia
A guerra entre Rússia e Ucrânia é, antes de mais nada, uma guerra pela opinião. Uma guerra de hegemonia, portanto. Se dá, simultaneamente, em um terreno de batalha no campo militar e no campo da política e da comunicação. No campo militar, a guerra é fatidicamente simples, sinistramente objetiva. Os adversários são identificáveis pelos uniformes, pelo equipamento militar, pelo idioma, pela etnia, pela bandeira. Luta-se pela supremacia da força militar. Trata-se de uma guerra simétrica quanto à legitimidade das ações. Ou ilegitimidades, uma vez que guerras entre estados poucas vezes se justificaram por bandeiras moralmente aceitáveis.
As guerras de hegemonia, ao contrário, são complexas, nada simples de compreender. Se dão em mais de um campo simultaneamente. Entre eles o militar. Em grande parte dos momentos de uma guerra pela hegemonia, o campo militar tem mais peso no campo da política como fator dissuasório, do que no terreno de batalha propriamente dito. Tal guerra se dá no campo da cultura política, da religiosidade, do controle sobre a comunicação, e das relações internacionais entre Estados. A guerra também se dá no campo da economia. No capitalismo contemporâneo, este tem sido o principal campo de batalha.
Em uma guerra de hegemonia há outros fatores que tornam complexa a situação. Grande parte dos envolvidos não aparece formalmente, não estão uniformizados em cima de carros de combate embandeirados ou grafitados. Também, em uma guerra de hegemonia, os envolvidos não são de uma única categoria, de uma única espécie. Uma guerra convencional, no campo militar, disparados ou não tiros, é uma guerra entre estados. Já em uma guerra pela hegemonia, a guerra convencional é a mais dramática das esferas da guerra, mas não a única. Nas demais esferas apresentam-se um conjunto imenso, plural e nem sempre público de participantes.
A guerra pela hegemonia inclui potências estatais que participam sem moverem uma única tropa. Envolve a capacidade de construir imagens e símbolos, santificando seus aliados e demonizando seus adversários. Narrativa que pauta em especial a cobertura das grandes empresas de comunicação, alimentadas pelas informações articuladas pelo Departamento de Estado dos EUA.
Envolve interesses econômicos fortíssimos e controle de mercados, tecnologia e, no caso da guerra entre Rússia e Ucrânia, recursos e infraestrutura. Um exemplo é o papel da China que, como o mais novo protagonista gigante da economia global, não se envolve diretamente na guerra militar, mas se movimenta com muita ofensividade no campo da liderança econômica, justamente nos espaços abertos pelos movimentos aparentemente erráticos dos EUA e da União Europeia, como a suspensão da Rússia no sistema financeiro ocidental. Uma medida de retaliação com alto apoio da mídia, mas que gera muito desconforto para os bancos. Também a Alemanha e França tentam, até agora sem muito eficácia, conter os avanços dos EUA na influência sobre a Europa. Esta ampliação da influência dos EUA sobre a Europa conta com o apoio dos novos membros da OTAN, conquistados justamente no leste europeu, entre as antigas repúblicas da União Soviética.
Neste momento, segundo o Global Conflict Tracker, há mais de uma dezena de conflitos armados ocorrendo no mundo. A guerra Rússia-Ucrânia, contudo, tomou a centralidade na mídia mundial. Há uma convergência de motivos: está na Europa; envolve uma superpotência e tem o protagonismo político dos EUA, através da OTAN. Essa guerra tem uma alta densidade econômica em sua origem e razão, se não a principal.
Contudo há uma outra dimensão que emerge fortemente neste conflito. A guerra de hegemonia em curso e o viés majoritário das agências de notícias internacionais estão transformando a condenação à guerra em salvo-conduto para todo tipo de articulação neofascista. No caso brasileiro, a partir de 2014 a extrema direita buscou se aproximar das organizações paramilitares de neofascistas da Ucrânia. ‘Ucranizar” se tornou um termo usual entre os bolsonaristas e neofascistas no Brasil para se referirem a um aumento da tensão golpista e à ação direta não democrática. Segundo o professor David Magalhães, professor de Relações Internacionais na PUC-SP e coordenador do Observatório da Extrema Direita, em declaração dada à BBC, “parte dessas manifestações foram muito violentas, perpetradas por organizações paramilitares de extrema direita, muitas das quais nasceram no contexto desses protestos, caso do Batalhão Azov e do Pravyi Sektor, duas organizações que têm bastante influência em grupos paramilitares e grupos brasileiros da extrema direita".
Este ambiente gerou uma atenuação à extrema direita e explica a decisão de Arthur do Val, deputado brasileiro conhecido por “Mamãe Falei”, de viajar à Ucrânia. O deputado neofacista se sentiu encorajado a expressar seu reacionarismo e assumiu para si uma missão de oportunidade.
O sentido político da viagem seria o de prestar solidariedade à Ucrânia, porém o vazamento de áudios indica a verdade sobre a missão: no âmbito da moral, externar toda sua boçalidade e seus verdadeiros valores, no âmbito político, mobilizar sua confusa base política. A viagem à Ucrânia teve sentido de alinhamento às forças neofascistas que protagonizaram o golpe ucraniano de 2014, e aos EUA, através da ideia de ‘ocidente” e da aversão ao oriente, já que a extrema direita brasileira está confusa com os movimentos de Jair Bolsonaro em direção à Vladimir Putin, com quem se identifica nos valores morais reacionários e autoritários.
A imensa concentração de imbecilidades reacionárias, contidas em seu descuidado áudio, revela a dimensão anticivilizatória, retrógrada, machista e imoral dessa visão de mundo. Tal e qual as forças nazistas de ocupação no leste europeu na segunda guerra mundial, Arthur do Val demonstra a desumanização do sistema hierárquico da extrema direita. E atualiza as razões que temos para combatê-lo.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko