Dez anos atrás, mil jovens vindos de 15 estados se reuniram em Santa Cruz do Sul (RS). Surgia ali uma novidade. Até então identificado como o setor jovem da Consulta Popular – organização de perfil socialista próxima ao PT e ao MST – nascia então o Levante Popular da Juventude.
Dez anos depois, o Levante, que germinou no Rio Grande do Sul, espalhou-se pelo Brasil e agita sua bandeira negra e branca em todos os estados da federação com exceção do Acre. Escrachou personagens como Michel Temer, Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro. Em 2013, jogou estrume nos prédios da Rede Globo e da RBS, sua afiliada gaúcha. “Devolvemos para Globo a merda que ela joga para o povo brasileiro”, justificou uma militante.
Uma das suas primeiras ações foi escrachar, numa operação simultânea em sete estados, os nunca punidos torturadores da ditadura de 1964. Uma das suas últimas foi incendiar pneus e interromper o tráfego diante do quiosque Tropicália, na avenida principal da Barra da Tijuca, para denunciar o espancamento até a morte do imigrante congolês Moïse Kabagambe.
No seu site, o Levante afirma-se como encarnação da juventude negra das vilas, dos jovens camponeses, dos universitários e secundaristas. “Somos um movimento que não baixa a cabeça para as injustiças e desigualdades e que se nacionalizou a partir da luta”, proclama.
Carlos Alberto Machado Alves, o “Carlinhos”, menino criado na Vila Cruzeiro, zona Sul de Porto Alegre, é, ele próprio, um exemplo da força do Levante. Saiu das ruas da vila para o Levante, daí para o curso de Direito, e hoje integra a direção nacional do movimento. É ele quem conta para Brasil de Fato RS um tanto da sua história pessoal, outro tanto do impacto da militância no seu destino, o papel do Levante e as tarefas que têm pela frente.
BdF RS - O Levante é um movimento que começou pelo Rio Grande do Sul e se expandiu pelo país. Como foi este começo?
Carlinhos - O início do Levante se dá dentro de um contexto de fortalecimento das organizações do campo popular no meio urbano. Havia a leitura de que as organizações da Via Campesina (MST, MAB, MPA, MMC, PJR) já eram muito bem consolidadas nas lutas no campo. Levava-se em consideração a criação do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), que ainda era novo, que se propunha a organizar, naquele período, trabalhadores e trabalhadoras por direito. Então, o único segmento ainda carente de organização era a juventude. Nosso campo político tomou a decisão de estimular a construção de uma organização que pudesse organizar a juventude em seus diversos segmentos, mas tendo foco maior nos jovens urbanos espalhados pelas periferias e universidades. Então, em 2006, na cidade de São Gabriel/RS, um encontro reuniu referências das mais diversas: indígenas, sem terras, pequenos camponeses, atingidos por barragens.
Na Cruzeiro, iniciou-se um trabalho que demorou quatro anos para dar resultado
Marcava-se os 250 anos do assassinato do líder indígena Sepé Tiaraju. Foi ali que se firmou o compromisso entre essas organizações para a construção de um movimento de juventude. Ali mesmo se indicou os responsáveis para iniciar esse processo. Vale destacar que, nesse encontro, já havia jovens referências, como é o caso do companheiro Ronaldo (Schaeffer), que contribuiu durante anos na construção do Levante, inclusive na sua nacionalização. Em síntese, esse foi o início do Levante, que logo se espraiou pelo estado, pelas universidades e, em especial, construiu um piloto de trabalho com jovens na periferia.
Então, na Vila Cruzeiro iniciou um trabalho que demorou quatro anos para ter seus primeiros resultados. Os primeiros jovens, oriundos do próprio território, passaram a atuar ali, envolvendo-se em lutas por moradia, segurança e lazer. A partir disso, foi se desenvolvendo melhor a organicidade das células. E esse método de organização, ainda inicial e rudimentar, foi utilizado como exemplo para estimular jovens de outros estados a também construírem o Levante. O processo de nacionalização iniciou-se entre o final de 2010 e o ano de 2011 e desaguou num encontro nacional no dia 5 de fevereiro naquele ano e que reuniu 1,2 mil jovens de mais de 15 estados.
BdF RS - Tens uma história interessante sobre o teu ingresso no Levante. Que idade tinhas, o que fazias e qual era a tua perspectiva então?
Carlinhos - É sempre difícil falar sobre isso. Nessa época eu fazia muitas coisas de que hoje me arrependo. Ao mesmo tempo, serviu para me ajudar a entender o que queria para minha vida. Eu tinha 15 anos quando fui na minha primeira atividade do Levante. Saía de um ponto de cultura e caminhava com a Diane, que era trabalhadora desse ponto de cultura e que fez parte da primeira geração da célula sul do Levante. Deixei ela em casa e ia seguir subindo a Cruzeiro. Aí vi que tinha um carro na esquina esperando por ela. Que largou a bolsa em casa e saiu rápido para uma reunião de um tal Levante. Era um Palio bordô. Ela me ofereceu uma carona e o motorista acenou de forma positiva e o carona disse “Entra aí, negão. A gente te deixa ali em cima”. Peguei a carona. Até minha casa era uns cinco minutos. Nesse meio tempo, o carona teve de me convencer a ir na reunião. O carona era o Ronaldo, que estava no encontro em São Gabriel, e o motorista era o Lúcio Centeno. Chegamos na rua Dona Helena, uma casa de fundos. Tinha mais outras dez pessoas. Me chamou a atenção o modo como se tratavam. Folgavam uns com os outros, de um jeito não ofensivo e engraçado. Não dei um pio durante a reunião toda. Sempre fui de observar o espaço em que estava antes de me manifestar. Gostei e saí com um sentimento positivo. Me chamaram pras próximas, acabei não confirmando.
Vi amigos sendo presos, uns morrendo
Voltei pra minha rotina, que era passar as madrugadas nas ruas da Cruzeiro, zoando, bebendo e fumando. Estava na minha fase mais perdida da vida. Não sabia o que queria. Só sabia que não queria mais ficar usando roupas de doação, sem dinheiro para comprar coisas. Ao mesmo tempo, via meus amigos ganhando dinheiro fácil, fácil. Só ficar parado numa esquina, entrega um negócio, pega o dinheiro. No fim da noite, sai com seu dinheiro no bolso, compra suas roupas de marca, vai nas lancherias, come o que quer. Naquela época, ser traficante lhe possibilitava um certo status e respeito na comunidade. Era tudo o que um adolescente quer: respeito, estrutura. O que eu não mensurava eram os custos para ter isso. Tive uma experiência negativa e tive que sair da vila por um período. Passei por um processo bem ruim. Quem vende na madrugada é difícil não usar. São poucos. Eu não fui um dos poucos. Acabei usando por um tempo.
Foi o período mais sombrio da minha vida. Vi amigos indo presos, uns morrendo, e aí consegui me afastar. Fiquei uns três meses longe de tudo. Dos amigos de infância, do meu pai, que quando descobriu ficou muito desapontado. Lembro que ele me deu um tapa na cara e disse que tinha vergonha de mim. Depois, meu pai me perdoou e me chamou pra ir morar com ele. Voltei pro centro cultural de onde tinha me afastado. Numa sexta-feira, parou o mesmo Palio bordô na frente da minha casa buzinando e perguntando pros meus vizinhos “Onde o Carlinhos mora?” Ninguém na vila me conhece por Carlinhos (risos)... Indicaram meu primo, que se chama Carlinhos, mas tinha 40 anos na época (risos)... Até que o rapaz do Palio conseguiu se explicar melhor. Indicaram minha casa que ficava bem em frente da casa do meu primo. Saí pra rua. Era o Lúcio me convidando para a reunião da célula. Isso já era 2010. Voltei.
Trouxemos a juventude das periferias e das universidades para o debate político
Naquele ano, teve um acampamento estadual em Santa Maria. Nunca eu tinha saído de Porto Alegre. Fui pra esse acampamento e saí de lá apaixonado pelo que vi. Senti que aquele poderia ser um caminho para eu trilhar. E estou até hoje ajudando o Levante a mudar vidas, assim como mudou a minha. A dar uma perspectiva para a juventude. Última coisa: estou morando em São Paulo e dia desses escrevi pro meu pai. Disse que tava com saudades. É a primeira vez que moro em uma cidade diferente da dele. E ele escreveu uma mensagem dizendo que sentia muito orgulho da pessoa que me tornei... Devo isso ao Levante. Por não desistir de mim e, também, me proporcionar experiências incríveis.
BdF RS - Quantos integrantes o Levante tem hoje, em quantos estados está organizado e quais são os próximos passos da organização?
Carlinhos - Meio difícil mensurar quantos integrantes temos, mas nosso último acampamento nacional reuniu sete mil jovens. Hoje, estamos em todos os estados da federação, com exceção do Acre. Inclusive se alguém do Acre estiver lendo essa matéria e quiser ajudar a gente a organizar o Levante...
BdF RS - O que o Levante trouxe de mais importante para o debate político no Brasil e particularmente para a inserção dos jovens nestes 10 anos?
Carlinhos - Trouxe o sujeito para o debate político, trouxemos a juventude das periferias, das universidades, trouxemos nossa animação. Acima de tudo, trouxemos a convicção de que a juventude quer participar das decisões sobre o rumo do país e demonstra disposição de lutar por um Brasil para os brasileiros.
BdF RS - Qual é a agenda do Levante para 2022, ano chave para os destinos do Brasil?
Carlinhos - Estamos focados nesse primeiro período em comemorar nossos 10 anos, fortalecendo nosso trabalho de base, nossas frentes de atuação e nossas articulações. Ao mesmo tempo, nos preparamos para a principal batalha da nossa geração para o próximo período, que é eleger Luiz Inácio Lula da Silva o próximo presidente do Brasil, derrotando o governo neofacista e entreguista do Bolsonaro.
Precisamos ir aos municípios menores, onde tem muita juventude, e que está mais ou igualmente desalentada
BdF RS - Um dado interessante é que vocês unem, na organização, a juventude da cidade e do campo e a juventude do centro e das periferias urbanas, além de universitários e secundaristas. Como conseguiram este grau de abrangência?
Carlinhos - O Levante surge com uma grande ambição que é a de organizar a juventude brasileira. Tendo isso em mente, precisamos chegar onde a juventude está: universidades, periferias, escolas públicas... E ai vem o desafio novo: estamos organizando nossa frente secundarista. Para concluir, precisamos ir ao interior dos estados, nos municípios menores, onde tem muita juventude, e que está mais ou igualmente desalentada no diz respeito à política pública e aos direitos. Agora, ter essa ambição e essa leitura não garante nosso sucesso. O que garantiu nosso sucesso foi o bom e velho trabalho de base.
Fomos casando a bateria como ferramenta de agitação e propaganda
BdF RS - Vocês trouxeram os tambores, a dança e a música para as ruas, algo que não era comum nas manifestações políticas no Brasil, embora seja bastante tradicional, por exemplo, na Argentina, com os bumbos do peronismo. Como foi esta escolha?
Carlinhos - Absorvemos bastante a experiência das organizações da América Latina, em especial da Argentina. Um companheiro nosso foi para um encontro lá, participou de um ato e achou incrível. A partir daí, começamos a sair aqui com instrumentos. Ao mesmo tempo, íamos estudando o conceito de agitação e propaganda. Fomos casando a bateria como ferramenta de agitação e propaganda. Nisso de olhar para América Latina e absorver as experiências, olhamos a experiência dos escrachos realizados pelos estudantes no Chile que serviu de inspiração para nossas ações.
BdF RS - O Levante também aderiu aos escrachos, questionando os torturadores da ditadura, os golpistas de 2016 e outros personagens. Quem é preciso escrachar agora?
Carlinhos - Olha, o escracho se caracteriza pelo elemento surpresa. O alvo não pode ser algo (divulgado) antes da ação. Agora, como tema e foco, diria que precisamos dar nome e rosto aos responsáveis pela fome e o aumento da miséria aqui no Brasil. São pessoas do alto escalão. Então, eu diria que se fosse escrachar, seria alguém envolvido com isso.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::
Edição: Katia Marko