“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’”. Conceição Evaristo.
De acordo com o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, Quilombo são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. São remanescentes os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Para as comunidades que ocupam esses espaços, Quilombo é lugar acima de tudo de resistência e luta, pela sua história, pela manutenção de suas vidas, como preservação do seu legado. Formado por laços consanguíneos ou não, rurais ou urbanos, projetam-se no verbo aquilombar: reunir, juntar com propósito comum, grupal. Agregam-se em uma rede de cuidado de pessoas, plantas, das águas, dos animais. Conectados através da filosofia africana, o Ubuntu (Eu Sou porque Somos).
Estima-se que haja cerca de 3.456 comunidades quilombolas autorreconhecidas no país entre urbanos e rurais, destas apenas 134 são totalmente tituladas. Em Porto Alegre há 11 quilombos urbanos, sendo sete já certificados pela Fundação Cultural Palmares (Família Silva, Areal, Alpes, Fidelix, Machado, Flores, Lemos) e quatro auto identificados e em processo de certificação, Ouro, Mocambo, Kédi e Santa Luzia. Nove dessas comunidades foram retratadas no Atlas Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, lançado ano passado.
O Brasil de Fato começa essa semana o especial Quilombos Urbanos de Porto Alegre, a ser lançado mensalmente.
Santa Luzia - Quilombo de Portas Abertas
“Bah, tu quebrou o tabu dos quilombos. Os quilombos normais costumam se esconder, só agregam os seus, e o Quilombo Santa Luzia não, ele se abriu, independente de raça, ou etnia, ou sexualidade.” Essa frase, Morgana Alves, mais conhecida como mãe Morgana, ouviu de uma liderança quilombola gaúcha sobre o Quilombo Santa Luzia.
Mãe, mulher trans e teóloga formada com ênfase no estudo sobre religiões e seitas, Morgana é bisneta de escravos, e é a primeira mulher trans a coordenar um Quilombo no país. Filha de Oxalá, Santa Luzia para os católicos, há pouco mais de três décadas ela deu início ao que se tornaria o Quilombo que leva o nome da santa. Guiado pela filosofia Ubuntu, o Quilombo Santa Luzia principia-se pelo conceito portas abertas, atendendo, recebendo e acolhendo moradores de rua, realizando atividades no bairro Jardim Cascata, na região da Glória, onde está localizado.
Com 22.596 habitantes, 1,6% da população de Porto Alegre, o Jardim Cascata tem uma área de 7,59 km². Tem uma taxa de analfabetismo de 3,92% e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 2,18 salários mínimos.
Atualmente cerca de 30 pessoas residem no Quilombo, a maioria oriunda de situação de rua. “Temos duas transsex. Vamos construir aqui três dormitórios para pessoas idosas e dois para as mulheres trans acima de 35 anos, porque o Estado não abriga. Tudo aquilo que o Estado não quer, o Quilombo quer. Não é um desafio, é que o ser humano, por mais duro que ele seja, mais bêbado ou drogado, às vezes, precisa só de uma oportunidade. Ele não precisa que metam o dedo na cara dele, ele precisa uma oportunidade de retomar a vida”, acredita Morgana.
Entre as atividades desenvolvidas no espaço está o projeto Anjos sem asas, que conta com voluntários que alfabetizam, dão reforço escolar e também levam cultura a moradores da comunidade. Atualmente 50 crianças são atendidas pelo projeto. “Uma forma de dar esperança para um novo futuro, uma outra alternativa. E também como conscientização”, destaca Morgana, citando como exemplo o caso do menino Bernardo, que ao chegar no espaço não se aceitava como preto, como negro. “Ele ficava bravo porque não queria vir da escravidão, que no colégio isso era transmitido. Daí aqui ele aprendeu que o negro não vem da escravidão, que os negros tinham terras e tudo mais, e que foi escravizado. Que ele tem uma ancestralidade”, exemplifica.
No Quilombo, em um galpão funciona também uma cozinha improvisada, que leva cerca de 3000 marmitas por semana às pessoas em situação de rua. Apartidário, o Quilombo se mantém através de doações, ajuda de outras ONGs, como a junta de juízes federais, professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e da comunidade em geral. Além disso, o Quilombo tem atividades culturais, rodas de capoeira. Entre elas, está um encontro mensal onde é contada a vida de alguma figura afro-indígena.
Quilombo Aldeia - O começo
A história do Quilombo Santa Luzia começa quando Morgana saiu de sua casa, aos 12 anos, para fugir dos abusos físicos e psicológicos que sofria dentro de casa. “Eu nunca tive infância. O meu pai é neto de negro escravo, e filho de portugueses. Então ele nasceu claro, e meu pai foi racista, mesmo sendo filho de negro. E todos os meus irmãos eram brancos quando nasceram. Quando eu nasci, nasci preta, meio indígena, meio negra, aquela coisa toda. Minha mãe é neta de indígena, pura também. Mas ele nunca aceitou a cor.”
Nascida com o nome de batismo de Fabiano Alves Junqueira, Morgana, que se descobriu em outro corpo aos 10 anos, foi embora de casa e morou na rua entre os 12 e os 14 anos, quando conseguiu seu primeiro trabalho. Com o primeiro salário alugou uma casa, e já levou 17 moradores de rua para morar com ela. Aos 15 anos entrou na religião de matriz africana. A estimativa é que nesses 30 anos de projeto, tenham passado pelo Quilombo mais de 10 mil pessoas, sendo que mais de 5 mil, destaca Morgana, foram recuperadas.
Durante o processo de construção do Quilombo, Morgana foi descobrindo suas raízes, como, por exemplo, seu bisavô Eduardo Selestino Junqueira ter sido liderança em um Quilombo na Penha. Segundo ela, o seu bisavô era neto de Zazin Baganza, a princesa, a revolucionária que os livros contam.
Aos 43 anos, Morgana é aposentada por conta de um transplante de coração feito há três meses. E carrega em seu corpo as marcas das violências pelo qual passou por ser ela mesma, das surras da família. Além das violências físicas, houve também as verbais, quando afirmavam que ela não poderia ser quilombola por ser travesti, viado. “O Fabiano e a Morgana são duas pessoas que se fundiram para ser o que eu sou hoje. O Fabiano eu matei porque ele foi estuprado, torturado, massacrado, humilhado. O que a família começou e a sociedade terminou de matar. A Morgana, vem do que sobrou da cinza do Fabiano. A Morgana veio para mostrar, mesmo sendo gay, ou sendo trans ou travesti, que sou capaz. Para mostrar para mim mesma, quando falaram de eu não ser capaz, que eu não ia ter um amor, que eu não ia nunca ter ninguém, que eu nunca ia chegar a lugar nenhum, que o meu lugar era Aids ou o caixão.”
“Quilombo é minha vida, minha casa”
Ao ser indagada o que significa Quilombo, Morgana afirma ser um pronto-socorro, “aonde a gente se junta para ajudar quem está com fome, quem está machucado, quem está desabrigado. Não é um albergue, não é uma casa de passagem, Quilombo é minha vida, minha casa, a história da minha vida. Se alguém me pergunta hoje: Como é que é a tua família? Eu tenho a família sanguínea, mas minha família são todos esses meninos, essa pessoa que está na minha porta, essa é a minha família há muitos anos”. Ela destaca que o Quilombo está na luta pelo reconhecimento oficial. Contudo frisa que independente disso seguirá com o seu trabalho.
Renato Alves de Oliveira, 28 anos, braço direito de Morgana na coordenação do Quilombo, chegou há cerca de sete anos. Morador de Viamão, ao encontrar o Santa Luzia estava, como descreve Morgana, em alta dependência química. “Eu vivia numa vida de festa e não tinha muito foco para outros objetivos, entre eles esse outro problema também. Eu conheci o Quilombo através de um casal de amigos meus da época que me trouxeram até a casa. Hoje em dia eu tenho um trabalho, faço parte do Quilombo ajudando no que eu posso, e agora voltando a estudar também”, conta Renato. Ele comenta que reconstruiu os laços com a mãe e outras amizades e também tem uma companheira, a indígena em contexto urbano Raquel Kubeo.
“Eu não cheguei a ficar em situação de rua, graças a Deus, mas hoje em dia eu faço parte do projeto que o pessoal é acolhido das ruas. Tem ainda a escolinha para as crianças aqui da comunidade, que são crianças que mal e porcamente tem um calçado, uma roupa para vestir, ou comida, ou eles almoçam ou jantam. Então, dentre isso tudo tem um pessoal que é acolhido, a gente consegue ainda levar comida para o pessoal na rua, entre outros projetos. No dia 12 foi organizado o dia do Quilombo, com mais projetos de atrações. Hoje em dia eu posso dizer que eu sou uma pessoa que estou encaixado na sociedade de novo. Eu perdi o brilho por muito tempo, mas tive alguém que acreditou em mim pra ver esse outro lado”, finaliza.
Há oito meses no Quilombo, Fabrício Pereira Gonçalves chegou ao local em mau estado, diagnosticado com tuberculose, pesando 55 kg. Entre idas e vindas viveu em situação de rua durante 12 anos. Trabalhando como reciclador todo o rendimento era usado para consumo de crack. “Eu ficava de segunda a sábado. Sábado eu parava, só reciclando de madrugada, manhã, tarde e noite, madrugada, só para sustentar o vício. Aí foi quando eu vim pra cá. Conheci a Morgana lá embaixo do viaduto.”
Natural de Santana do Livramento, Fabrício é pai de quatro crianças, sendo três meninas e um menino, de 17, nove, sete e quatro anos. Mantém pouco contato com os filhos. “Eu vim como um aventureiro. Eu tinha casa, tudo, eu tive uma estabilidade boa, mas aí eu era meio loucão e vinha pra rua”, conta. Agora com 72 quilos, está se recuperando de um mal jeito na coluna, e pretende voltar ao trabalho como autônomo no Ceasa, onde faz serviço de descarga de produtos.
O Quilombo Santa Luzia tem intolerância zero com bebidas e qualquer outra droga, tanto é que no albergue em que ficam os moradores de rua, perto da sede do Quilombo, um aviso bem grande está afixado. “Bebidas e drogas, do lado de fora, bem longe daqui”. Nesses oito meses sem consumir drogas, Fabrício diz ter sido tranquilo deixar de consumir o crack. “É só botar na cabeça, não podemos deixar dominar. A gente que controla a nós mesmos. Não me dá mais abstinência. Aqui é uma segunda oportunidade que a nossa família não dá, não consegue”, conclui.
Primeiro bebê a nascer no Quilombo está chegando
Grávida de quase nove meses, Joice Lima dos Santos, de 23 anos, chegou ao Quilombo no início de fevereiro. Natural de Santa Maria, ela estava há três meses nas ruas da capital gaúcha. Conheceu a mãe Morgana em uma de suas visitas ao viaduto da Conceição, onde vivia com seu companheiro atual. “Um dia ela apareceu lá, e eu chorando pedi que ela me levasse para o Quilombo, e ela me trouxe”, diz sorrindo. Para ela, o Quilombo significou uma nova chance, uma família, não só para ela, como para seu bebê, que será o primeiro a nascer no local. “Aqui um cuida do outro, um sempre está do lado do outro. Para mim isso aqui é minha família”.
Ao relatar sua experiência nas ruas diz ter sido um “inferno”. “As pessoas passam por ti, fingindo não te ver.” Por problemas familiares, brigas, Joice deixou Santa Maria. Ela ainda não sabe o sexo do bebê, pois em todos os ultrassons ele ou ela se escondia.
Coordenador do albergue, seu Cláudio, como é conhecido, 53 anos, mora no Quilombo há quatro meses, após conhecer a mãe Morgana, embaixo do viaduto. De fala calma, conta que foi parar nas ruas depois da morte da mulher e do filho que estava esperando, há quase duas décadas. Nesse tempo, manteve, como ainda mantém, contato com os filhos, mas não conseguia mais viver em casa. Assim como afirmaram Joice, Fabrício e Renato, o Quilombo foi uma nova oportunidade, e que se tornou sua família.
Atualmente os moradores do Quilombo estão construindo novos dormitórios para mulheres trans com comorbidades finais.
Ao ser indagada sobre o que significa o amor, Morgana declara que estar com eles. “O amor é indefinido, o amor não se fala, se faz.”
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Edição: Katia Marko