Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Guerras têm a ver com poder, só isso

"Não há um fundamento de verdade a ser contado sobre mais esta guerra/invasão, só corpos a serem escrutinados"

Brasil de Fato | Santa Maria |
"Mais uma vez a solução militar é usada para resolver um conflito, que até pode ser justo em sua origem, mas que perde a razão assim que o primeiro tiro é disparado" - AFP PHOTO / ARMED FORCES OF UKRAINE

Assim, a decisão brasileira em si é bem simples, em briga de ursos a gente não se mete, espia de longe e tenta se proteger. E os ursos aqui são bem grandes.... EUA e Rússia. A chance da gente se lascar é de 100%. Sim, a Ucrânia é só o palco, mas a briga mesmo não é dela, ela é só a bucha do canhão. Já foi usada pela Otan/EUA para emparedar a Rússia, que depois a abandonou no campo de batalha, e agora está sendo usada pela própria Rússia para mandar um recado à Otan/EUA. 

Bueno, a partir daí, desta superfície clara da invasão Russa à Ucrânia, nas profundezas do conflito em si a coisa é bem mais complexa. Há interesses inconfessáveis dos dois lados; a geopolítica não tem escrúpulos; e as grandes potências têm, sim, de ambos os lados, uma sanha imperialista, mesmo que seja defensiva. EUA também justificou inúmeras invasões no mundo para supostamente se proteger, combateu o terrorismo, o narcotráfico, o escambau em territórios alheios, fez guerra híbrida, lawfare, derrubou governos, empossou governos, na África, na América Latina, no Oriente Médio. Meio como a Rússia faz agora na Ucrânia com tanques, artilharia aérea e tropas.

É claro que do lado da Rússia há um crescente risco à segurança nacional na medida em que a Otan passou a se expandir para o Leste Europeu até a sua fronteira, mesmo contrariando acordos selados lá nos anos 90. Quando um país na fronteira com a Rússia passa a fazer parte da Otan, esta, a Otan (leia-se EUA), pode instalar bases militares naquele país, o que significa que algumas bases ficariam a poucos quilômetros de Moscou, ou a poucos minutos de viagem de um míssil. Um perigo bárbaro! É emparedar o inimigo que chama, né!? E é isso que a Otan vem fazendo ao longo do tempo, descumprindo o que acordou à época da extinção da ex URSS, de não se expandir para o Leste.

E a Ucrânia, pelo seu tamanho, pela fronteira que tem com a Rússia e pelas saídas para o mar de que dispõe, é a vizinha mais estratégica para o país do tigre-siberiano. Então, tentar incorporar a Ucrânia na Otan era o cuspe no chão que o Putin disse que não poderia ser pisado. Mas a Otan pisou.

Bem, pra mim este parece ser o motivo principal da invasão russa na Ucrânia. Como um enxadrista, aproveitando que Biden está com baixa popularidade interna, que a Ucrânia ainda não faz parte da Otan e portanto não poderia ser defendida por ela, e que a Rússia tem deslocado suas relações comerciais para um campo comum de influência com a China, o que ameniza as sanções que certamente seriam impostas, ao que parece Putin desferiu um xeque mate. Com isso inviabiliza a entrada da Ucrânia na Otan, aniquila a maquinaria militar do país, e ajuda a depor um governo alinhado com os EUA para, quem sabe, colocar um aliado seu no lugar. Uma jogada aparentemente tão genial quanto insana e despótica.

Mas... e sempre tem um “mas”, o outro lado também tem suas “razões”. Putin não esconde seu desejo de anexar o território de países vizinhos, para recompor o que considera ser a Rússia histórica. Recentemente manifestou que a Ucrânia não chega a ser uma Nação, pois teria sido criada no século XX como um “presente” de vários governantes, incluindo Lenin, e que o território faz parte da formação histórica da Rússia e da identidade russa, afinal, a civilização russa teria nascido em Kiev. Uai, se isso não é uma senha para justificar a anexação da Ucrânia à Rússia, ou ao menos para mantê-la como um país satélite orbitando o campo gravitacional da Rússia, não sei o que é. Já pensou se esta moda, digo, se esta justificativa histórica pega, talvez Bolívia e Peru nos reivindiquem o Acre, ou talvez devêssemos usar o argumento pra reanexar o Uruguai ao Brasil, afinal, ele já fez parte da Província Cisplatina.  

Ora essa, países tão pequenos como estes que fazem parte da fronteira russa e que se sentissem ameaçados pela sanha anexacionista do Putin, bem que poderiam ter interesses legítimos de se abrigar sob as asas da grande galinha choca do imperialismo ocidental, a Otan. O que levaria a Otan às barbas da fronteira Russa, bem ao gosto dos americanos, que lutam desesperadamente para conter a sangria do Império frente ao avanço da aliança Rússia-China, e à formação da “nova rota da seda”.

Bem, a partir daí, dos interesses geopolíticos cristalizados, pra mim o que vemos são, de um lado, as desculpas “humanitárias” de sempre que toda a guerra apresenta pra se legitimar: reconhecer e apoiar as frações separatistas da Ucrânia (as autoproclamadas repúblicas do Donbass), proteger as populações russas que vivem no território ucraniano, derrubar um governo neonazista da Ucrânia (uai, nós também temos um governo neonazi por aqui, nem por isso vamos aceitar um justiçamento externo para nos libertar deste mal, não é mesmo?). 

De outro lado vemos o cinismo americano, como sempre, de dar náuseas. Alegar o direito à autodeterminação dos povos, o país que mais intervém, invade, faz guerra híbrida, lawfare, bombardeia países, depõe e elege governos por toda a parte e age como xerife do mundo, é uma cara de pau sem tamanho. E a gente sabe como isso é feito, eles espionam, fomentam movimentos rebeldes para derrubar governos que não interessam, armam estes movimentos, sabotam eleições, impõem sanções, implantam governos militares como fizeram no Brasil, na Argentina e no Chile, criam movimentos extremistas como o Talibã para atingir seus interesses onde quer que seja, quando não invadem militarmente mesmo. Foi assim que ajudaram a promover um golpe na Ucrância que pôs lá um governo neonazista alinhado a eles, e que tem sido dirigido, indiretamente, por Washington desde então, visando fustigar a Rússia com o avanço da Otan até as suas fronteiras.

Como disse alguém algum dia, em toda a guerra a primeira vítima é a verdade. Falo aqui desta guerra mais ampla, geopolítica, entre potencias imperialistas. Nem sei ainda se o que está acontecendo na Ucrânia pode ser definido como uma guerra, parece mais uma invasão mesmo, pois acho que a assimetria de poder militar é tão grande que a rendição me parece iminente.

Enfim, nada de novo na terra do Mar Negro, nada de novo na terra do Tio Sam. E nada de novo na brasilândia também, de um lado a imprensa corporativa agindo como assessora de imprensa do império norte-americano, numa subalternidade humilhante aos interesses dos EUA, e de outro, os antiimperialistas se alinhando ao Putin automaticamente, numa espécie de raciocínio infantil do tipo “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

Já eu penso que onde todos têm razão ninguém tem razão, por uma questão fundamental: que diabos tem a “razão humana” a ver com a guerra? Uma guerra que, no limite, poderia nos levar à autodestruição se fosse encampada pela Otan, como poderia ser racional?

Guerras têm a ver com poder, só isso; a razão, aqui, só pode ser usada para compreender, nunca para justificar ou legitimar a guerra.
Portanto, não há um fundamento de verdade a ser contado sobre mais esta guerra/invasão, só corpos a serem escrutinados ao final de cada dia de combate. E por quê? Porque mais uma vez a solução militar é usada para resolver um conflito, que até pode ser justo em sua origem, mas que perde a razão assim que o primeiro tiro é disparado. Afinal, a gente sabe como são estas coisas, morrem os jovens, alguns quase crianças, a população civil sofre, perde suas casas, empregos, renda, chora seus mortos, por conta das estratégias geopolíticas de homens velhos, que permanecem na segurança de seus gabinetes como se jogassem vídeo game.

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko