“Racismo é sempre a operação de transformar o seu opositor, quem você quer humilhar, em animal, em corpo. Isso não acontece só com o negro, mas acontece com a mulher do mesmo modo. Das 500 maiores empresas do mundo, 492 são comandadas por homem”, ressaltou o professor e Doutor em Sociologia Jessé Souza.
A afirmação foi feita durante a abertura do ano letivo da rede municipal de São Leopoldo, na quinta-feira (17). Convidado pelo Executivo municipal, em pouco mais de uma hora de palestra, Jessé destacou o contexto atual pelo qual atravessa o país sob a presidência de Jair Bolsonaro (sem partido). “Sabemos do impacto da pandemia e seus efeitos poderiam ter sido minorados em um grau extremamente significativo e não foram, não foram propositalmente. Temos no poder alguém que está ai para destruir todos os valores civilizacionais. Jair Bolsonaro foi a razão última do Brasil ter sido o país que matou quatro vezes mais que a média mundial em todas as dimensões. Jair Bolsonaro é uma pandemia nele mesmo, é pior que a pandemia”, apontou.
Para o sociólogo, a chegada de Bolsonaro tem a ver com o racismo, que é muito mal compreendido no país. Jessé pontua que o racismo não é somente racial, contudo no Brasil, ele assume o comando sobre os outros racismos. Conforme afirma o racismo racial nunca está desligado do racismo de classe que também é mal compreendido. “A desigualdade só é importante quando você explica as causas dela. E a causa da desigualdade é uma série de privilégios invisíveis desde o berço. Classe é a reprodução de privilégios seculares através da família”, expôs
Em sua apresentação, também teceu críticas à imprensa brasileira e a classe média. Em sua opinião a imprensa imbecilizou a sociedade brasileira. “Não que o brasileiro não seja tão inteligente quanto qualquer povo, mas se você tiver 100 anos de uma mídia venal, corrupta, bombardeando uma população inteira, 24 horas, você imbeciliza a pessoa mais inteligente possível. Sem pluralidade de opinião a gente não vai poder desenvolver a reflexão.”
Ainda de acordo com ele, a classe média nunca se incomodou com a corrupção, e não gosta quando há inclusão de pobres e negros. “Vargas queria fazer e foi deposto, Jango prometeu fazer e foi deposto, Lula e Dilma tentaram fazer e foram depostos. A classe média branca brasileira é racista e usa o tema da corrupção, essa mentira, como uma maquiagem do seu racismo”, frisou.
Jessé vê na educação das futuras gerações o caminho para mudar esse contexto, sedimentada em uma outra concepção. “Temos uma história nova para ser recontada e ela precisa ser contada de outro modo do que ela é contada hoje. Não se trata de doutrinação partidária, trata-se de você desenvolver uma concepção crítica deste país que foi montado e moldado a partir de ideias elitistas, que continua sendo desigual e perverso, criminoso, mantendo pessoas em fome sendo um dos países mais ricos do mundo. Isso tem que estar a frente de todo trabalho de um professor, nós podemos montar essa resistência em pequeno”, finalizou.
Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Jessé Souza é autor de 27 livros, incluindo A ralé brasileira: quem é e como vive (2009), A tolice da inteligência brasileira (2015), A radiografia do golpe (2016), A classe média no espelho (2018), A elite do atraso (2019), e o seu mais recente Como o racismo criou o Brasil (2021). Presidiu o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016, onde coordenou pesquisas de amplitude nacional sobre classes e desigualdade social.
Após a palestra, Jessé conversou com o Brasil de Fato RS, abaixo a entrevista completa.
Brasil de Fato RS - Em maio de 2020, nós do Brasil de Fato fizemos uma entrevista contigo, e tu falaste que o Brasil refletido no espelho será um mundo pior. Passados dois anos, 630 mil mortos, os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres. Parece que a previsão foi até moderada diante do que aconteceu e está acontecendo.
Jessé Souza - É verdade, quando o Bolsonaro assumiu, para mim foi, talvez, como intelectual, o instante mais triste da minha vida. Eu sabia quem o Bolsonaro era, inclusive toda a imprensa sabia, todo mundo sabia quem o Bolsonaro era, toda a farsa, a fraude que foi construída e tudo, mostrou o pior.
Apesar disso tudo, eu sou otimista, eu tenho enorme confiança na capacidade da reação humana, na capacidade de aprendizado humano. Claro que temos uma chance aí, também é claro que muita coisa milita contra. Temos uma das piores elites do mundo, uma das elites mais canalhas do mundo. Mas você tem o quê? Você tem um processo de aprendizado. Um cara como o Bolsonaro é indefensável sob qualquer aspecto.
Bolsonaro no fundo, ele só é compreensível pela fraude da Lava Jato, sem ela não existiria Bolsonaro. Sem a Lava Jato não existiria o golpe, sem a Lava Jato não haveria a fome e tudo que aconteceu depois. Mas a Lava Jato não foi só o Moro. Moro é um medíocre, é um parafuso numa engrenagem que é muito maior, que mostra o tamanho do nosso problema.
A imprensa é algo que tem que ser mudado completamente no Brasil na primeira oportunidade. Você tem uma justiça que com muita alegria fez todos os crimes da Lava Jato.
O hacker de Araraquara ajudou a gente nisso. Você sabe que é mentira. Claro que isso não chegou para o povo ainda, a classe média que sabe acha que universaliza as suas próprias condições e acha que o povo sabe. Não é assim. Como eu estudei o povo, eu sei que não é assim. É muito mais problemático você passar essas questões, porque falta tudo. Mas esse processo pode ser chegado ao povo, quer dizer, o povo tem que saber a verdade, tem que saber que foi enganado, tem que saber quem são seus inimigos. Esse é o ponto principal, e aí eu acho que aí a gente tem boas chances de reconstruir.
BdFRS - Em uma entrevista ao programa Voz Ativa da TV Cultura, tu afirmas que ninguém nasce imbecil ou sem noção do mundo, a gente é feito de imbecil, e que isso se dá através do papel exercido pela imprensa como a boca do capital financeiro.
Jessé - Exatamente isso, quer dizer, você tem o que o capital financeiro faz, porque ele é tão venenoso, tão perigoso. Porque aí você não tem mais o chefe lá, xingando você, dando esporro. Quando se ausenta essa figura do chefe, do capataz, a relação de dominação fica muito imprecisa, fica muito abstrata. No fundo o grande capataz hoje em dia são os bancos, ou seja, as pessoas devem aos bancos, 80% dos brasileiros devem até as calças aos bancos, essa é a verdade.
Eu comecei a ver televisão aberta. Eu não aguentava, todos os órgãos são ou de direita, ou de extrema-direita, a Rede Globo é o oásis nisso, as outras são muito piores
Mas a forma é muito imprecisa, sem uma discussão disso, sem que você explique isso, as pessoas não percebem, acham que um juro é o mesmo no mundo todo, claro, ela não tem nenhuma informação. Quem não tem nenhuma informação decente vai ser manipulado, claro, foi destituído da sua capacidade de reflexão e de inteligência. Por isso a imprensa não pode ser canalha como ela é. Toda a grande imprensa brasileira é canalha. Eu comecei a ver televisão aberta. Eu não aguentava, todos os órgãos são ou de direita, ou de extrema-direita, a Rede Globo é o oásis nisso, as outras são muito piores.
Quer dizer, você tem a pior situação do mundo nisso, e é um povo cuja capacidade de reflexão, de inteligência, foi roubado há cem anos. O Brasil só é explicado a partir disso, e essa é uma questão extremamente importante, porque não há aprendizado possível sem informação plural, sem debate plural, para que cada um possa formar a sua própria opinião.
BdFRS - Inclusive o editorial do Estadão da última quarta-feira (16) voltou à tona, com a manchete: Lula promete o atraso, porque ele disse numa entrevista que o país não precisa de reformas. Inclusive, o Estadão elogiou Michel Temer por ter sido grande reformista...
Jessé - O que que precisamos perguntar é, qual é o banco que tem a propriedade do Estadão, quem comprou o Estadão. Porque isso é uma voz de quem é comprado. O Estadão não existe, é um jornaleco sem-vergonha, é isso que ele é. E é uma voz que é venal, uma voz comprada. Quem é que manda no Estadão? É o Bradesco? Quem é? Se você for procurar, você vai encontrar um banco por trás. Então é o banco dizendo, o banco diz através do Estadão, o Estadão é uma não-coisa. Quem é comprado é um nada, não existe. É preciso sempre dizer, quem és tu, Estadão?
BdFRS - Como tu mesmo já disseste, por obra da imprensa, do Judiciário e do conservadorismo, disseminou-se nas mentalidades brasileiras que nosso grande problema enquanto civilização é a corrupção. Você discorda, e como afirma no título do teu mais recente livro, Como o racismo criou o Brasil, aponta o papel da escravidão na formação do país.
Jessé - A escravidão nunca foi vista de modo consequente por nenhum intelectual como o berço formador do Brasil, e ele é óbvio hoje em dia. Essa foi uma das lutas que eu tomei como intelectual, e a grande vendagem da Elite do atraso ajudou na propagação dessa ideia. Porque é uma ideia fundamental.
Você tem que saber de onde você vem de verdade, para você saber quem você é, e tudo que você faz. Então eu acho assim, a compreensão do mundo é muito importante, as pessoas normalmente não compreendem, nem os intelectuais. Os intelectuais normalmente estão pensando que a vida intelectual se dá numa biblioteca, se dá dentro da universidade. A gente tem um campo intelectual pequeno, provinciano, não é aberto a outra parte, é montado a partir de uma visão intelectual elitista. Essa é a verdade, claro que tem exceções, mas 99% é isso. Claro que não se veem desse modo, mas eu acho que continua as mesmas visões e aquilo que tem aqui é porque está emanado com esse processo. Então eu acho que é isso tudo que a gente tem que refazer.
BdFRS - Faz pouco tu tocastes em um nervo exposto, o papel do Sul com maioria branca e de origem europeia na disseminação do racismo, do supremacismo e mesmo do nazismo no Brasil. E a gente está vendo aumentar células nazistas no país, principalmente na região Sul…
Jessé - Quando ficou claro na minha cabeça essa tese do reconhecimento, o Brasil ficou muito mais compreensível para mim. É claro que o aprendizado é sempre um processo. Mas Como o racismo criou o Brasil é o meu livro mais maduro, mais refletido, mais filosófico nesse sentido, exatamente porque essa questão estava mais clara pra mim. O que me fez descortinar todas essas ideologias de fundo racista que tiram onda de que não são.
O tema da corrupção é a grande mentira do Brasil, a grande mentira de todo o brasileiro racista. Se o cara é moralista e acha que é mais líder do que os outros por conta disso, essa é a forma dele expressar o seu racismo. Então esse falso moralista brasileiro é um canalha, e o que os intelectuais brasileiros fizeram, e fazem ainda hoje, é possibilitarem essa maquiagem do racismo em moralismo, em falso moralismo. Temos que acabar com esse falso moralismo, temos que dizer, ‘olha, você é canalha, você que é um corrupto até as unhas dos pés’, porque no fundo esse cara não tem nenhum problema com a corrupção, desde que seja a elite que faça. Não pode ser para o povo. Quer dizer, o que for de ajuda para o povo vai ser escandalizado pela imprensa como corrupção.
O tema da corrupção é a grande mentira do Brasil, a grande mentira de todo o brasileiro racista
A corrupção é um sintoma no sentido psicanalítico, é só para você manter as coisas como elas são, o racismo, os privilégios, etc. Não existe nenhum país do mundo que tenha como projeto principal, como esse Moro tem, a luta contra a corrupção, isso não é projeto político em lugar nenhum. Óbvio, isso é uma ação óbvia, que toda a pessoa descente tem que ter, aqui isso não é, entende isso? Então toda a dramatização ao tema da corrupção é a única proposta, o único ponto de vista, a única ideia que faz com que a elite continue mantendo os seus podres poderes entre nós, por conta disso precisamos destruir isso de vez.
BdFRS - 2022 além de ser um ano eleitoral, é um ano emblemático, comemora-se 200 anos da dita independência do país, 30 anos do impeachment do Collor, 30 anos do massacre de Carandiru, também os 20 anos da primeira eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Como trabalhar esses temas esse ano?
Jessé - Eu acho que isso tem que ser trabalhado. Nós temos as piores armas, nós todos somos frágeis, não tem dinheiro, não tem a internet e as suas redes sociais ligadas ao capitalismo americano, Facebook, Whatsapp, Google, etc., são CIA e FBI com outro nome, como Snowden que sabia muito bem do que estava falando, dizia. Temos inimigos que são poderosíssimos, mas nós temos verdade, e a verdade é poderosa, ela precisa chegar minimamente. Então a imprensa de resistência tem um papel fundamental nisso, em estimular debate, pluralidade, etc.
BdFRS - Ano passado foi lançada a Campanha Tributar os Super-Ricos, que conta com mais de 70 entidades da sociedade civil. Qual a tua posição em relação a isso, é importante uma tributação justa pra acabar ou tentar minimizar a desigualdade no Brasil?
Jessé - Essa é a questão principal, tributar os ricos. Veja bem, o capital agrário que usa a terra que é de todos, que a propriedade tem uma função social na Constituição brasileira, esse cara que roubou terras, assassinou posseiros para tomar indevidamente uma terra, que é isso que essa elite faz, está usando o solo brasileiro, e não está dando nada, um centavo. Essa canalha não dá um centavo ao povo brasileiro, não existe imposto de importação, zero, o cara embolsa tudo.
O que a elite faz no Brasil é um roubo, esse roubo tem que ser parado
Ou seja, isso é um roubo, o que a elite faz no Brasil é um roubo, esse roubo tem que ser parado. É claro que essa malta tem que ser taxada, como nós todos somos, muito mais a classe média e todo o povo, os impostos são indiretos, só quem não paga imposto no Brasil é rico, e ainda faz evasão de impostos para paraísos fiscais. É preciso mostrar ao povo que o seu grande inimigo é a própria elite, esse é o principal, se não você não vai pra lugar nenhum, e esse pessoal tem que ser taxado, esse pessoal tem que ser chamado a responsabilidade.
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Edição: Katia Marko