Com a vacinação infantil a passos de tartaruga, o Rio Grande do Sul vacinou até agora apenas 95 mil crianças ou 9,9% do público-alvo. Com a presença da variante ômicrom, aumentou o número de crianças atingidas pela covid-19. Na semana passada, estiveram internadas, em média, a cada sete dias, 21 delas em UTIs e 64 em leitos clínicos.
Janeiro fechou com quatro óbitos infantis. Embora haja vacinas, ainda há relutância de muitos pais em imunizar seus filhos. O que se agrava com a campanha de desinformação que tem como cúmplices o presidente Jair Bolsonaro, seus assessores e apoiadores. Grupos antivacinas têm feito manifestações públicas contra a imunização.
Na linha de frente da batalha contra o coronavírus, o pediatra Alexandre Bublitz avisa aos pais recalcitrantes quanto à vacinação que o perigo não é a vacina, mas a covid-19. Engajado no Médicos Sem Fronteiras, ele trabalhou oito meses na África, onde a gravidade das situações que enfrentou ajudaram na sua preparação para encarar os períodos mais terríveis do combate à covid-19 no Brasil.
Hoje, atendendo no Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, ele conta sobre seu dia-a-dia, da importância do SUS para impedir a morte de milhões por covid-19 e elenca cinco razões para convencer os pais que a vacina não mata, mas salva vidas.
Brasil de Fato RS - Passados mais de 20 dias do início da vacinação de crianças contra a covid-19, a imunização ainda não embalou. A situação ocorre em um contexto em que não há falta de doses a serem administradas – algo que ocorreu no início da campanha para os adultos. O que acontece na tua avaliação?
Alexandre Bublitz - A situação hoje é um pouquinho diferente da que vivemos no início do processo de vacinação. A vacinação no Brasil foi um processo lento, fomos indo a passos de tartaruga, muito por falta de vacinas, muito por um atraso do início da vacinação e também por um quadro de desestimulação pelo governo federal. Muita gente estava querendo se vacinar, mas não podia porque ainda não tinha chegado sua data ou não tinha vacina.
No caso das crianças, estamos vendo uma característica bem diferente. As vacinas estão aí. Há vacina suficiente para vacinar todas as crianças. Se você levar o seu filho hoje num posto de saúde, consegue fazer a vacinação. Entretanto, o que vemos é uma não adesão à vacinação. E essa não adesão está acontecendo muito por uma descrença de boa parte dos pais nas vacinas.
Boa parte desses pais que não estão levando seus filhos para vacinar, se vacinaram
São muitas dúvidas e medos. E muitos desses medos são estimulados por outros grupos, por pessoas antivacinas e, infelizmente, pelo próprio governo federal. Boa parte desses pais que não estão levando seus filhos para vacinar, se vacinaram. Então, tem muita gente que acredita no potencial da vacina, que é algo bom, mas está com medo de levar os filhos. Aí é que entra o papel dos profissionais de saúde, das pessoas que acreditam na medicina baseada em evidência, de trazer essas questões, de tentar tirar o máximo das dúvidas para que as pessoas possam tomar essa decisão com mais calma. E entender que, sim, as vacinas são seguras para as crianças. E que, sim elas podem ajudar a combater esse vírus, diminuindo a transmissão, e também salvando a vida de crianças. É o nosso principal caminho a trilhar agora.
BdFRS - Carros de sons circularam por Novo Hamburgo e São Leopoldo com a seguinte mensagem: “Atenção, pais: Nós todos temos o dever de saber que não é obrigatória a vacina experimental em nossos filhos. E que as escolas não podem exigir e muito menos impedir o acesso de nossos filhos às salas de aula por não terem feito a vacina. E os fabricantes não garantem eficácia e não se responsabilizam pelos efeitos colaterais”. Como médico popular e pediatra como avalias essa afirmação?
Bublitz - Com um misto de inquietação, de tristeza, de raiva. Estive trabalhando com o Médicos Sem Fronteiras até 2019. Quando volto, venho trabalhar numa das UPAs aqui em Porto Alegre. Fui coordenador médico da Unidade de Pronto Atendimento Bom Jesus, que fica na periferia da cidade. Foi na periferia das grandes cidades onde a população mais sofreu por causa da covid, onde teve um maior número de óbitos, enfim, os piores cenários.
Um misto de inquietação e tristeza e raiva
Vi muita gente morrer. Estive em muitas salas de reanimação, fiz muita massagem cardíaca, ajudei a entubar pacientes. Dei muita notícia para familiares, contando que seus parentes haviam morrido, seus pais, seus avós, seus esposos, suas esposas... Quando a gente ouve esse tipo de coisa, para nós que estamos batalhando no dia a dia, dói bastante.
As vacinas modificaram o rumo da pandemia. Não é uma questão de estudo experimental. É uma questão de realidade! É olhar e ver o que aconteceu. Quando a gente começou a vacinar, os óbitos começaram a diminuir. Hoje, quando temos boa parte da população brasileira vacinada, aquelas pessoas que ainda estão falecendo por causa da covid são as que não se vacinaram. Em torno de 90% das pessoas que vem a óbito não tomaram as vacinas. No Rio de Janeiro, fizeram um levantamento mostrando que a chance de um idoso vacinado de internar é 17 vezes menor do que a de um idoso não vacinado.
Fake news causam morte e atrasam o país em todos os quesitos
Com as crianças não é diferente. A fala do carro de som diz “vacina experimental”. Ela não é mais experimental. Saiu da fase de experimentos. É uma vacina prática. É importante lembrar que mesmo os Estados Unidos - muitos antivacinas têm uma certa adoração por esse país - com uma grande quantidade de tecnologia e investimento nessa área, demonstram com dados do final do ano passado, que mais de oito milhões de crianças foram vacinadas contra a covid sem ter tido nenhum relato de óbito ou de internação grave.
Este tipo de fake news causa a morte de pessoas, dificulta o combate à pandemia, e atrasa o país em todos os quesitos.
Com a pandemia andando, a educação vai continuar ruim. O índice de analfabetismo entre as crianças aumentou muito. É importante vacinar as crianças para poder voltar às aulas de forma segura. Uma criança, mesmo que ela tenha uma chance mais baixa de ter um caso grave, e ela pode ter caso grave, pode transmitir a covid para o avô, para a avó. E essa avó, sim, pode ficar doente, precisar de internação, de UTI.
Crianças têm morrido no Brasil, mas por causa da covid. Uma das complicações que a gente vê - a síndrome inflamatória multissistêmica - que é uma inflamação em vários órgãos diferentes do nosso corpo, causada pelo vírus da covid, é uma realidade. Matou algumas crianças. Outras ficaram com sequelas da doença. Tem criança que acabou tendo quadros de AVC por causa disso. Outras que tiveram comprometimento de coração, pulmão e que vão ficar ao longo da vida batalhando com as consequências da covid de hoje.
No meu último plantão internei um bebê de 11 dias de vida com covid
BdFRS - Tu atuas no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas. Qual a situação das UTIs pediátricas do SUS no estado?
Bublitz - A rede de saúde de Porto Alegre do atendimento pediátrico, nos últimos anos, foi muito debilitada. A gente viu, desde os governos anteriores, uma redução das emergências pediátricas do SUS, o fechamento da emergência pediátrica do Hospital da PUC, o fechamento da emergência pediátrica da Santa Casa, do hospital Santo Antônio. Hoje, se tu és um paciente pediátrico SUS e chegares na Santa Casa, não vais ser atendido. Vais ser encaminhado para outros hospitais da região. Os hospitais que basicamente fazem o atendimento pediátrico SUS são três: Clínicas, da Criança do Conceição e Presidente Vargas que é da prefeitura e onde eu trabalho. A emergência do Presidente Vargas vem, nos últimos dois anos, sempre superlotada. Com a chegada da ômicron, houve aumento importante do número de pacientes pediátricos com covid. Estamos internando crianças com covid. A grande maioria está muito bem, mas alguns estão precisando de internação. No meu último plantão, por exemplo, eu internei um bebê de 11 dias de vida com covid.
A covid acomete as crianças, mas acomete muito os profissionais de saúde também. Muitos profissionais de saúde estão doentes, alguns com casos mais graves, outros com casos mais leves, mas até aqueles que têm casos leves precisam se afastar do trabalho. Imagine, a gente tem uma alta demanda de trabalho e tem um baixo número de profissionais por estarem doentes, seja por covid, estresse emocional ou por desgaste de dois anos de uma pandemia. No Presidente Vargas não tem sido diferente. Temos visto restrição de atendimento por lotação máxima na internação hospitalar pediátrica.
Vemos as matérias na TV com o número de óbitos pela covid, mas as pessoas esquecem de que muitos outros óbitos aconteceram por câncer, infarto, AVC, pacientes que não conseguiram o seu atendimento da melhor forma possível por causa da superlotação.
Quando eu tenho uma emergência superlotada com covid e chega um paciente com AVC, ele demora mais para ser atendido. E, às vezes, perdemos aquele tempo necessário para fazer aquele atendimento. É um dado que não aparece. Mas as pessoas com outras complicações podem sofrer também pelo desgaste no sistema de saúde, uma característica muito forte lá na onda delta e estamos voltando a ver hoje, com características diferentes, mas ainda com alta intensidade.
BdFRS - O Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, que sempre foi uma referência no país, mesmo com todo o processo de sucateamento continua sendo?
Bublitz - Para mim ele ainda é uma grande referência. É um hospital que sofreu muito nos últimos anos com esse processo de desmonte, com o processo de terceirização que vem ocorrendo. Mas ele é referência ainda. A gente é referência, por exemplo, em (atendimento de casos de) violência infantil. São todos encaminhados para nós, o que exige equipes bem treinadas, multidisciplinares.
Isto precisa ser repetido muitas e muitas e muitas e muitas vezes: as vacinas são seguras
BdFRS - Nas redes sociais, tu apontaste cinco motivos para vacinar as crianças contra a covid...
Bublitz - Posso dar cinco motivos e posso dar mais motivos se necessário. Motivos para vacinar as crianças não faltam. O primeiro a segurança das vacinas. Isto precisa ser repetido muitas e muitas e muitas e muitas vezes: as vacinas são seguras.
A Coronavac é feita do jeito mais clássico, o mesmo de todas as outras vacinas com que a gente costumava vacinar as crianças. Desde quando elas têm um aninho elas fazem um monte de vacinas. É o mesmo processo. Não é uma vacina perigosa. Tem dado ótimos resultados. Vem sendo utilizada em vários países do mundo.
A vacina da Pfizer é mais moderna. Tem uma nova tecnologia e isso está causando, às vezes, medo nas pessoas. RNA mensageiro? O que é isso? E é difícil explicar. Mas quero que vocês pensem num celular de 10 anos atrás e pensem num celular que está sendo lançado hoje. O celular hoje vai ter muito mais tecnologia, mais recursos. A vacina é a mesma coisa. É uma tecnologia melhor. Até se fala na possibilidade de, com essa tecnologia, podermos finalmente fazer uma vacina contra a Aids... A Pfizer é muito segura e já foi amplamente utilizada no mundo todo e amplamente utilizada em crianças. A gente não tem relatos de casos graves. Existem complicações extremamente raras como a miocardite, uma inflamação do coração. Para termos uma noção, a chance de se ter miocardite depois da vacina é de 0,00005 por cento. Então, em mais de 99,9999 por cento não vai acontecer nenhuma alteração.
Criança não vacinada que pegar covid pode ter problemas no coração, no pulmão ou sofrer um AVC
Mesmo as pessoas que apresentaram miocardite tiveram casos leves. Setenta por cento dos pacientes tiveram casos que resolveram sozinhos. Não precisaram de tratamento, a pessoa não ficou com problemas cardíacos. Então é importante que as pessoas entendam: os riscos da covid são muito maiores. Se uma criança não vacinada pegar covid pode ter problemas no coração, pode ter problema no pulmão, pode ter um AVC, por exemplo. São riscos muito maiores do que os riscos causados pela vacina. E são muito mais frequentes também. E é por isso que a gente repete: vão vacinar as crianças. É seguro.
Outro ponto é a volta às aulas. A ômicron é muito mais contagiosa do que a delta. Este ano vamos ver muitas crianças em internação por causa da volta às aulas e por causa da nova variante, terá um número maior de casos. Isso pode infelizmente acarretar um número maior de óbitos e de crianças muito doentes por causa da covid.
Vacinando as crianças a gente protege a família toda
Tem a questão da transmissão. Quando faço a vacina, mesmo que eu pegue a covid, o tempo que vou ter de sintomas será menor. Vemos o pessoal já vacinado com dose de reforço tendo, às vezes, só cinco dias de sintomas e ficando super bem. Enquanto isso, a pessoa não vacinada vai ficar 10 ou mais dias internada. E no período em que a pessoa está com sintomas, ela pode transmitir a doença. Se, ao invés de 10, fico só cinco dias com sintomas, diminuo pela metade a minha chance de transmissão para outros. Vacinando as crianças a gente protege a família toda.
Um último ponto é a vacinação mundial. A pandemia só vai acabar quando a gente vacinar a todos. Não só os países ricos. Muitos países da África e a Ásia não têm condição financeira de comprar vacina para toda a população. O que acarreta o risco do vírus se multiplicar nesses locais, criar novas variantes e fazer com que a pandemia prossiga por mais tempo.
BdFRS - Tu conheceste a realidade da África quando trabalhastes com crianças em situação de desnutrição na Nigéria, através do programa Médico Sem Fronteiras. Que lições tirastes desse trabalho?
Bublitz - Ainda faço parte do Médicos Sem Fronteiras. Estive em missão na Nigéria em 2019. Fiquei oito meses em uma missão onde estava à frente de um grupo de 12 médicos nigerianos na cidade de Maiduguri, no Nordeste da Nigéria. Na região tem um conflito armado. Há o (grupo) Boko Haram lá, o Estado Islâmico lá. Há muita miséria, desigualdade social, fome, índices altos de mortalidade infantil e de mortalidade materna. E não tem sistema público de saúde. Não existe SUS. Se a pessoa está doente tem que pagar. Se a maior parte da população está passando fome então não vai ter dinheiro para conseguir atendimento também.
Quando volto para o Brasil eu iria pra Serra Leoa. Mas fui convidado para trabalhar como coordenador médico aqui. Optei por ficar porque eu entendia que o momento era de ajudar no meu país.
Acho que trouxe várias lições, sobretudo para os dias mais difíceis da pandemia. No ano passado, quando em março e abril tivemos o grande pico, com o maior número de mortes. Eram dias muito difíceis. Mas sabia que ia conseguir passar por aquilo porque já tinha passado por coisas mais difíceis antes.
Uma coisa que eu aprendi muito com o Médicos Sem Fronteiras é que nem sempre a gente consegue salvar todas as pessoas. Mas sempre podemos dar o nosso melhor. Mesmo para as famílias que não conseguimos salvar seus parentes aqui durante a covid, conseguimos dar um pouquinho de conforto.
Se não fosse pelo SUS teríamos tido 10 vezes mais óbitos
BdFRS - O SUS é uma referência mundial. Tu acreditas que a pandemia demonstrou toda a importância do SUS para o nosso país?
Bublitz - Eu sou um grande apaixonado pelo SUS. É um sistema de saúde único. É gigantesco se a gente for comparar com outros existentes no planeta. Na maioria dos países não há sistema público de saúde. A África, como um todo, praticamente não tem. Existe alguma coisa na África do Sul, em Moçambique, mas muito incipiente, longe do que temos aqui. A maior parte dos países só tem saúde privada. As pessoas só conseguem atendimento médico se pagam. E aqui no Brasil a gente tem essa maravilha. E ele vem crescendo a partir da luta das pessoas que acreditam nele. Não se engane. O SUS não foi criado pelas pessoas serem boazinhas, mas sim a partir de batalha, de profissionais de saúde, de militantes desse campo que acreditam na necessidade de um atendimento de qualidade, universal e gratuito. Para todos.
Se não fosse pelo SUS, posso dizer com tranquilidade, teríamos tido 10 vezes mais óbitos. As emergências de hospital particular nunca dariam conta de fazer o atendimento da população inteira. E muitas pessoas que não teriam condições de pagar para o atendimento particular. O SUS salvou muitas vidas e foi fundamental para que essa pandemia não fosse ainda pior.
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Edição: Ayrton Centeno