Gritos de justiça por Moïse foram ouvidos em mais de 30 cidades brasileiras e em outras partes do mundo neste sábado (5), em atos simultâneos ao realizado no Rio de Janeiro, local onde o congolês foi brutalmente espancado até a morte. Em Porto Alegre, exigindo o fim do racismo e do genocídio do povo negro, centenas de manifestantes se reuniram nos arcos do Parque da Redenção, às 10h da manhã, em memória de Moïse Kabamgabe.
A manifestação foi organizada na capital gaúcha pela comunidade congolesa, por associações de imigrantes e refugiados angolanos, senegaleses, haitianos, pela Frente Quilombola do RS, pela União dos Negros pela Igualdade (Unegro-RS) e pelo BARÁ - Programa de Acolhimento de Estudantes refugiados e portadores de visto Humanitários da UFRGS. Também contou com a presença de entidades sindicais, políticas, movimentos sociais e apoiadores.
Erik Lucela, congolês que faz doutorado em Economia em Porto Alegre, agradeceu pelo apoio das entidades presentes. Segundo ele, a manifestação não é somente por Moïse, “mas por todos os negros e todas as pessoas que sofrem com essa política de matança todos os dias.”
Segundo ele, ainda há muito a se aprender sobre o racismo no Brasil. “Do lugar de onde viemos, desde o faxineiro até o presidente é preto, a gente não passa pelo que a gente passa aqui. A gente aprende com o choque uma outra vida, uma outra forma de racismo que já foi enraizado nesse continente, há séculos”, pontuou.
Professora e integrante da Unegro-RS, Jaqueline Franco ressaltou que o ato foi em repúdio e denúncia contra as violências que o povo negro sofre no país. Além da barbárie cometida contra Moïse, ela lembrou do assassinato de Durval Filho, homem negro recentemente assassinado por um militar por ser confundido com um assaltante também em São Gonçalo (RJ).
“Viemos repudiar toda essa violência que a gente tem vivido há 522 anos, desde o sequestro de África. Vamos acompanhar o caso e pedir justiça”, protestou Jaqueline.
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Essa realidade diária no país está diagnosticada no Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A pesquisa mostra que a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros no Brasil em 2019 foi de 29,2, enquanto a da soma dos amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2.
"Mataram um continente inteiro"
Onir Araújo, advogado e membro da Frente Quilombola do RS, destacou que o momento é de acolhimento e respeito à família de Moïse. “Não foi somente o ele que mataram, mataram um continente inteiro”, disse. “Que nós tenhamos sabedoria, na medida que não é novidade, para darmos continuidade à essa mobilização. O registro da embaixada do Congo fala em mais quatro homicídios. Os angolanos e os haitianos também registram”, afirmou.
“Nós temos aqui os casos da Jane, do Gustavo. É Amarildo, é Claudia, ou seja, é uma questão recorrente ao longo desses 500 anos”, criticou o advogado. Para ele, esvaziar, sobre qualquer argumento, a violência colonial e racista sofrida pelo Moïse é fortalecer a violência racial.
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Onir reforçou o encaminhamento prático de garantir um compromisso dos órgãos de justiça com os repetidos casos de violência contra estrangeiros e de letalidade das forças de segurança contra a população negra.
A coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB) da UFRGS, Tamyres Filgueira, também ressaltou que a morte de Moïse não foi um caso isolado. “Mataram o Amarildo, o Miguel, a Jane, a Ágata”, recordou, apontando ainda que, após quatro anos do assassinato de Marielle Franco, ainda não se sabe quem foi o mandante do crime.
“O racismo decide quem vive e quem morre, quem vai trabalhar em um lugar bom e quem não vai trabalhar, quem vai ter uma casa e quem vai morar embaixo da ponte, quem vai ter comida no prato e quem passa fome”, disse Tamyres. “Por isso é importante a nossa organização, o Moïse morreu porque ele é preto, estrangeiro e trabalhador. Essas são as condições para quem trabalha nesse país. Nós não vamos nos calar.”
Vice-presidente regional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), Alejandro Guerrero disse sentir pairando no ar um grande sentimento de tristeza e revolta. “A gente tá cansado de ter que defender a vida dos nossos, porque somos nós que morremos na mão da violência policial”, criticou.
Segundo ele, Moïse foi vítima por três vezes. “Foi vítima de um Brasil racista, que a cada 23 minutos mata um jovem negro. Foi vítima de uma reforma trabalhista, que afirmou que um empregado podia negociar com o patrão. Também foi vítima de um Brasil que persegue os refugiados.”
"País não pode acolher um povo com proteção e lhe devolver um ente morto no caixão"
A vereadora Laura Sito (PT) destacou dois sentimentos: “O primeiro é de cansaço de voltar à rua pra falar de algum irmão ou irmã nossa que tombou. O segundo é de indignação com o silêncio das instituições, frente a um cenário que atinge nosso povo há 500 anos nesse país”.
“Quantas famílias não têm certeza se um jovem negro, quando sai de casa, vai voltar. Essa aflição é cotidiana nas nossas vidas. Infelizmente, nós temos essa cena tão triste, frente àqueles e aquelas que acreditaram que o nosso Brasil seria uma pátria acolhedora, onde poderiam reconstituir suas vidas”, pontuou Laura. “Um país não pode acolher um povo com proteção e lhe devolver um ente morto no caixão”, completou.
Jorge Fernando, estudante da UFRGS e membro da associação de angolanos, ressaltou a importância da empatia. “Eu vejo vários brancos aqui hoje e vários negros também”, pontuou. “Como o professor Silvio Almeida fala, o problema do racismo não é só dos negros, mas também dos brancos. Acho que é dever de todo mundo combater o racismo.”
“Nós viemos aqui buscar dignidade e sei que vocês já ouviram pessoas dizerem 'o que ele veio fazer aqui [no Brasil]? Se tá ruim, porque ele não volta pro país dele?'. A gente tem o direito de ir e vir por onde quisermos e muitos de nós não vieram por livre vontade. É responsabilidade de todo gaúcho, justamente pela cultura e pela colonização, abrir a cabeça e conversar sobre isso”, entende Jorge.
“Quantos de nós vamos ser mortos ou torturados?”, questionou Morgana Alves Junqueira, diretora do quilombo urbano Santa Luzia, recentemente autodeclarado em Porto Alegre. Para ela, a manifestação deste sábado foi muito importante para denunciar que matam o povo negro todos os dias. “Cada dia desaparece um. Somos seres humanos, temos o direito de viver”, disse.
No encerramento do ato, ficou definido que será solicitada uma reunião para discutir políticas públicas de combate ao racismo e de acolhimento aos imigrantes e refugiados, com o governo do estado e a prefeitura de Porto Alegre, juntamente com o Ministério Público e a Defensoria Pública nas esferas estadual e federal.
Assista à cobertura ao vivo do ato feita pela Rede Soberania:
Posted by Rede Soberania on Saturday, February 5, 2022
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Edição: Katia Marko