O legado de Paulo Freire para repensar a democracia como uma ferramenta de transformação e emancipação social conduziu uma importante série de debates do Fórum Social das Resistências, conduzidas por diversas organizações das áreas da educação, trabalho e direitos humanos, que culminaram na Assembleia de Convergência Paulo Freire, Democracia e Diretos Humanos. Realizada na manhã desta sexta-feira (28), a atividade sistematizou o que foi tratado nas assembleias anteriores, promovendo reflexão no sentido de avaliar a histórica fragilidade e os atuais retrocessos democráticos no Brasil e no mundo e projetando estratégias de luta.
Entre as diversas considerações e encaminhamentos, destacou-se a centralidade da comunicação no processo educativo, que deve buscar diálogo com setores excluídos. Neste sentido, há de se trabalhar em estratégias de controle das tecnologias para dar amplitude à resistência e fazer comunicação de massa para combater as fake news e o fascismo. Também que a política deve ser educativa para construir novas formas de pensar o mundo e que as estruturas públicas devem ser contagiadas com novas formas de participação.
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A assembleia teve como convidados o colombiano Alfonso Torres, do Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL), a cabo-verdiana Crispina Gomes, da Rede Internacional de Educação Popular Diálogos com a África, e o brasileiro Gilberto Carvalho, ex-ministro da Secretaria-Geral da República no governo de Dilma Roussef. A mediação ficou a cargo de Raimunda Oliveira, coordenadora pedagógica da Escola Nacional de Formação da Contag (ENFOC) e coordenadora do CEAAL Brasil, e a relatoria por Sérgio Kumpfer, membro da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Também contribuíram com o relata dos principais pontos dos debates prévios Sheila Ceccon, do Instituto Paulo Freire, e Mariana Pasqual, Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP).
Antes das falas dos convidados, o cantor e compositor sertanejo pernambucano João Oliveira fez um momento cultural, cantando a ciranda do centenário de Paulo Freire. Na sequência, Sheila Ceccon relatou os principais pontos debatidos no primeiro diálogo que antecedeu a assembleia, a mesa de diálogo 1: Educação Popular e Comunicação. Ela destacou a necessidade de usar a comunicação e a educação como estratégia de resistência dos povos e a serviço das lutas pela emancipação popular, pois separá-las enfraquece; de pensar o acesso de quem é excluído, principalmente a população negra; a importância de fomentar trabalho de base para autotransformação das pessoas, estruturas sociais e políticas; organizar jornada em 2022 com foco na disputa de narrativa em contraposição a ideias fascistas; voltar a pensar utopias com debates nos territórios; e criar espaços de compartilhamento de experiências.
Na sequência, Mariana Pasqual informou os encaminhamentos debatidos no segundo diálogo do ciclo: Educação, Mundo do Trabalho e Saúde. Ressaltou a crise civilizatória e a necessidade de rediscutir um novo modelo, tendo como foco os temas da saúde e trabalho, além de preservação ambiental, o que só vai ocorrer com vinculação do trabalho ao território de forma sustentável; a necessidade em rediscutir o modelo econômico e de saúde de forma integrada; os desafios da educação frente a desvalorização do trabalho e do ataque ao modelo construído com muita luta. Reforçou as tarefas de defender a vida em sua biodiversidade amorosa, valorizando quem atua nos territórios e seguir com ações de solidariedade contra a fome.
Novo governo de esquerda no país deve ser freireano
Entre os convidados, abriu as falas Gilberto Carvalho, refletindo sobre o período em que a esquerda governou o Brasil. “Temos orgulho do governo que nós fizemos e aquilo que aconteceu depois enfatizou ainda mais o quanto de bem nós fizemos ao país, mas também sabemos da insuficiência daquilo que fizemos”, avaliou. Segundo ele, levou à frustração e facilitaram o golpe de 2016 a ocupação dos espaços institucionais em detrimento da construção de “um verdadeiro poder popular’.
“Contaminamos a cultura política institucional com novas formas de poder de participação popular, mas não foi só insuficiente como pouco a pouco a forma da estrutura institucional nos galvanizou. Por essa ausência de construção de poder popular que nós não conseguimos implementar as mudanças estruturais que precisávamos e permitiu ao inimigo nos tirar do poder”, afirmou, reforçando que a nova chance de ocupar a presidência não pode ser um novo período de ilusão.
Neste sentido, Gilberto Carvalho disse que Paulo Freire conclama a enfrentar o desafio da educação popular massiva, sem verdades prontas, para gerar autonomia do povo. “Como sair do nosso isolamento que acaba nos envolvendo dentro dos nossos partidos, movimentos sociais, para abrir esses diálogos e conseguirmos construir um processo massivo de disputa ideológica, de ganhar corações e mentes das principais vítimas do processo de exclusão do bolsonarismo e do neoliberalismo”, disse.
Não basta ocupar a institucionalidade
Alfonso Torres conduziu sua reflexão na linha de pensar a prática educativa como prática política para construir novas formas de pensar o mundo em suas diversas escalas, seja nas microrrelações, nas organizações locais e na sociedade de forma mais ampla, “os inéditos viáveis”, disse, trazendo uma expressão freireana.
Ele entende que as lutas nos três níveis são perpassadas pelo hegemônico, com a construção de sentido e subjetividade neoliberal, de egoísmo e passividade, estruturas de controle e tensão do projeto capitalista patriarcal que quer manter o estado de dominação com ingerências, provocando golpes de Estado e apoiando governos ditatoriais, a exemplo do Brasil e da Colômbia. Mas trazem também processos de construção comunitária, recuperação de valores solidários e outros modos de fazer as coisas, o que também traz esperança à América Latina, que volta a ver a ascensão de governos progressistas.
“Para construir política democrática alternativa e revolucionária é importante ocupar a institucionalidade dos governos nacionais. Mas não podemos esquecer que só ele não constrói um projeto alternativo. Isso requer campanhas massivas para chegar nas pessoas, ocupar espaços locais com diferentes organizações, atrair para esses processos e acumular poder para ter mais capacidade não somente de resistir, mas aprender a re-existir, gerar formas vinculadas a valores, projetos políticos novos portadores desses sentidos que Freire nos traz, como trazem outros pensadores como a Teologia da Libertação, o Teatro do Oprimido, o Pensamento Crítico latino-americano, as culturas ancestrais”, afirmou.
Reconstruir a democracia a partir e para os povos
Crispina Gomes, presidenta da Organização das Mulheres de Cabo Verde, trouxe o olhar africano a fim de pensar formas de potencializar a democracia, destacando o papel da comunicação no processo. Lembrou que seu país, colônia de Portugal até 1975, compartilha história comum com o Brasil, e que a África é muitas vezes lembrada na mídia apenas como local de tragédias. “É uma África manipulada pela comunicação e não a África verdadeira, e há que insurgir-se sobre isso”, disse, recordando que o Brasil passa por uma tentativa de reconstrução de seu passado e de apagamento da história feita pelo povo.
Dessa forma, invoca Paulo Freire que ensina a pensar uma forma autônoma de ver realidade de fato, uma forma dos povos reescreverem sua história e alcançar modelos culturais e políticos a partir das suas próprias realidades. “Democracia para Paulo Freire era muito importante e de fato não pode ser ao sabor dos que supostamente mandam no nosso planeta, devemos construir nossa própria democracia, nossas próprias leis, defender nossos direitos”, disse.
Ela recordou ainda de uma fala de Nelson Mandela em um de seus discursos. “A democracia não pode existir enquanto houver miséria e ignorância, essa só pode ser falsa, não nos serve. Temos que construir outra forma de estar, outra democracia para nós africanos, e não aquela que nos impõem e querem que nós adotemos, formas e ideais burgueses em nossos países”, afirmou.
Em pleno século 21, destaca a necessidade do resgate de compreensão e respeito pelo outro, para acabar com preconceitos de superioridade e construir uma sociedade sem racismo e estereótipos. “Reinventar novos paradigmas e novos modelos, Paulo Freire também falava da própria educação, para mim que tudo isso poderá ser um suporte fundamental a partir das nossas escolas”, avaliou, pontuando que há de se pensar na educação como um caminho para a liberdade.
Após esta primeira rodada, o debate foi aberto aos participantes da sala, que trouxeram reflexões sobre o tema para serem comentadas pelos convidados. A partir desta Assembleia, será construído um documento que fará parte do processo de sistematização do FSR na Plenária Geral dos Movimentos e Organizações Sociais, a ser realizada neste domingo (30) às 9h (veja a programação completa).
Assista à assembleia na íntegra:
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Edição: Katia Marko