Rio Grande do Sul

Gentrificação

Da Ocupação Saraí ao Cais Rooftop: vitória do elitismo e da gentrificação, criticam entidades

Edifício que foi palco de importantes episódios da luta pela moradia em Porto Alegre vai virar um 'rooftop'

Sul 21 |
Ocupação Saraí foi um símbolo da luta pela moradia em Porto Alegre - Foto: Guilherme Santos/Sul21

No dia 19 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, autorizou o enquadramento do projeto do Cais Rooftop à nova legislação que instituiu o Programa de Reabilitação do Centro Histórico. O programa, segundo a Prefeitura, pretende “viabilizar e fomentar a reabilitação de edificações subutilizadas com a intenção de melhorar a qualidade urbanística da região”. O prédio que o projeto Cais Rooftop pretende reformar fica na avenida Mauá, esquina com a rua Caldas Júnior. “Serão oito andares de pequenos apartamentos, todos com frente para a rua, um mercado autônomo no térreo e um restaurante no terraço com vista para o Guaíba e acesso ao público”, informou a Prefeitura.


Prefeito Sebastião Melo, na apresentação do projeto Cais Rooftop / Foto: Mateus Raugust/PMPA

“Rooftop” é um termo que expressa uma nova tendência na construção civil. Literalmente significa “telhado” e se refere a um ambiente localizado no topo dos empreendimentos, que, no caso do projeto anunciado pela Prefeitura seria um “restaurante com vista para o Guaíba”. O site de uma grande incorporadora e construtora de São Paulo define assim essa tendência:

“O rooftop nada mais é do que um terraço feito de maneira sofisticada e inteligente com o objetivo de enaltecer uma vida mais completa, saudável e interessante para quem mora ali. Por isso, está cada vez mais comum vermos academias residenciais que se localizam no topo dos prédios, além de piscinas com borda infinita que funcionam muito bem como uma área de lazer do empreendimento de uso comum para os moradores”.


Projeto prevê um restaurante no terraço com vista para o Guaíba / Foto: Divulgação

O Programa de Reabilitação do Centro Histórico anunciado pela Prefeitura vem sendo alvo de críticas de urbanistas, arquitetos, moradores da região e movimentos populares de luta por moradia por privilegiar os interesses do mercado imobiliário, por ser parte de um propósito de “retalhar” o Plano Diretor da cidade em projetos pontuais e alimentar o processo de gentrificação que vem expulsando as camadas de menor poder aquisitivo da população de regiões centrais que são cobiçadas por esse mercado. O prédio escolhido pelo projeto do Cais Rooftop já foi símbolo da luta por moradia em Porto Alegre, abrigando, mais recentemente, a Ocupação Saraí, além de três outras ocupações em anos anteriores.

Uma promessa de moradia popular que nunca se cumpriu

O prédio foi ocupado quatro vezes – 2005, 2006, 2011 e 2013 – esta última dando origem à Ocupação Saraí. Em 4 de julho de 2014, um decreto assinado pelo então governador Tarso Genro (PT) declarou o imóvel que abrigava a Ocupação Saraí como bem de interesse social, abrindo as portas para a desapropriação do prédio e para a construção de um projeto de habitação popular. Mas o governo seguinte, de José Ivo Sartori (MDB), resolveu não levar o projeto adiante e as famílias que moravam na Ocupação acabaram sendo despejadas.


Ocupação Saraí surgiu em 2013 e, em 2014, prédio chegou a ser declarado como bem de interesse social / Foto: Maia Rubim/Sul21

Construído durante a ditadura militar, com financiamento do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), o prédio destinava-se originalmente a abrigar moradias populares, o que acabou nunca acontecendo. Por um período, foi utilizado pela Caixa Econômica Federal e acabou sendo vendido para o setor privado por cerca de R$ 600 mil. Em 2006, o prédio virou notícia por ter sido utilizado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) para cavar um túnel numa tentativa de roubar uma agência do Banrisul. Mesmo ficando por décadas abandonado, o objetivo que marcou o nascimento do prédio – abrigar um projeto de moradia popular – acabou nunca se concretizando, com exceção dos curtos períodos que foi ocupado por movimentos de luta por moradia.

“Prédio virou símbolo da especulação imobiliária”

Aquele prédio já foi um símbolo da luta pela moradia em Porto Alegre e agora, infelizmente, virou símbolo da especulação imobiliária promovida pela Prefeitura, diz Ceniriani Vargas da Silva, Coordenadora do Movimento Nacional de Luta por Moradia no Rio Grande do Sul (MNLM-RS) e presidente da Cooperativa de Trabalho e Habitação 20 de Novembro. Ela morou naquele prédio em 2006 quando lá existia a ocupação 20 de Novembro.  “Essa ocupação deu origem ao assentamento 20 de Novembro, que hoje é o contraponto ao que eles estão fazendo no centro”, explica. Para Ceniriani, o programa de revitalização do Centro Histórico, proposto pela Prefeitura, não poderia ter sido aprovado como foi na Câmara de Vereadores.

“A revisão do Plano Diretor foi suspensa na justiça durante a pandemia. Então eles criaram esta manobra de fazer os chamados programas regionais. Isso é até contra a Lei do Estatuto das Cidades que prevê que apenas os planos diretores podem mudar as diretrizes urbanísticas da cidade e com participação da população. Não se pode fazer um plano diretor do centro ou de um bairro específico. Ainda mais em tempos de pandemia. Neste processo, eles contabilizaram a participação social pelo número de visualizações no YouTube. Enquanto o povo luta para sobreviver, estão se aproveitando da pandemia para passar a boiada, aprovando tudo que querem na Câmara de Vereadores, pois tem uma maioria de apoiadores do governo”.

“Incentivo à elitização e gentrificação do Centro Histórico”

O arquiteto e urbanista Pedro Xavier de Araujo também considera simbólica a coincidência – “ou não”, observa – do anúncio de que o primeiro empreendimento enquadrado nas regras do novo “Plano Diretor do Centro Histórico” seja em um edifício que foi palco de importantes episódios da luta pela moradia em Porto Alegre. “Simbólica”, assinala, porque “ilustra a disputa entre diferentes projetos de cidade e de sociedade”.

Delegado do Fórum Regional de Planejamento 01 (CMDUA) e Diretor do Sindicato dos Arquitetos no Estado do RS (SAERGS), Pedro Xavier de Araújo lembra que o edifício situado na rua Caldas Júnior, esquina com a avenida Mauá foi ocupado algumas vezes pelo movimento popular após ficar anos abandonado e sem cumprir a sua função social. Ele recorda os entraves que marcaram esse processo de ocupações:

“Embora a legislação urbanística brasileira – desde a Constituição Federal e do Estatuto da Cidade, até o Plano Diretor de Porto Alegre (PDDUA) – esteja direcionada para o combate da especulação imobiliária e dos vazios urbanos, e para a promoção a função social da propriedade, é muito difícil concretizar estas políticas, sendo necessária a superação e inúmeros entraves políticos, jurídicos e ideológicos. O movimento popular e a ocupação enfrentaram processos violentos e sucessivos de remoção e o edifício permaneceu abandonado por anos”. 


Primeira ocupação do prédio em 2005 / Foto: Reprodução

E os entraves, com apoio institucional de governos que não tem a moradia popular como uma prioridade, acabaram vencendo a queda de braço, aprofundando um processo de exclusão, lamenta o arquiteto.

“As famílias que sonharam com o direito à moradia digna e bem localizada, que produziram projetos, ideias e debates sobre outros modelos de moradia popular e sobre uma cidade mais justa e solidária e tentaram insistentemente negociação com o Poder Público, tiveram que retornar para a periferia, à margem da atenção do Estado e das políticas públicas”.

Para Pedro Araújo, o “Plano Diretor do Centro Histórico”, proposto pelo governo Sebastião Melo, é irregular, não acolheu nem propôs políticas sérias para a habitação popular e para a promoção da inclusão social e do Direito à Cidade. Na avaliação do arquiteto, esse projeto “voltou-se quase exclusivamente ao atendimento dos interesses imediatos de setores da construção civil, que só pretendiam maior flexibilização das regras urbanísticas para poder construir (e faturar) sem limites no centro da capital gaúcha, sem a menor preocupação com um projeto mais amplo de cidade e de sociedade”. 

“Como foi denunciado, a proposta induz à elitização e a substituição social da população do centro, fomentando empreendimentos voltados a classes mais abastadas, e criando barreiras para a permanência dos públicos de menor renda”, acrescenta Pedro. Para ele, o empreendimento inaugural desse projeto é um símbolo da visão de cidade contida na proposta do chamado Plano Diretor do Centro Histórico, “na medida em que o edifício situado no coração do centro, que permaneceu tantos anos abandonado e que foi palco de tantas lutas e projetos de uma cidade mais justa, se converte em um produto de luxo, voltado à classes de maior poder aquisitivo, enquanto as famílias que lutaram pelos seus direitos tiveram que retornar à periferia e permanecem abandonadas pelas políticas públicas”. Fica claro, enfatiza, que a ideia de “revitalização” e “dinamização” por trás do Plano não passa do “incentivo à elitização e gentrificação do Centro Histórico”.

O simbolismo envolvido no prédio que já abrigou a Ocupação Saraí e agora passará a abrigar o Cais Rooftop contrapõe dois projetos de cidade, conclui o urbanista. “Por um lado o projeto do movimento popular, construído entre famílias, técnicos e militantes, visando garantir o direito à moradia para os que mais precisam, orientado pela visão de uma cidade mais justa, democrática e inclusiva. Por outro lado o projeto de cidade que motivou a criação do Plano Diretor do Centro Histórico, ampliando as facilidades para o setor da construção civil, enxergando a cidade como mercadoria, orientado para as classes mais abastadas que possuem o poder de compra e de investimento e induzindo a elitização da região e o aprofundamento das desigualdades na cidade”.

Uma legislação urbanística para o mercado imobiliário

Na avaliação de Betânia Alfonsin, integrante do Conselho Diretivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, o projeto do Cais Rooftop é bastante emblemático do tom que o governo municipal de Porto Alegre tem dado à revisão da legislação urbanística da Capital. “Ao invés de se fazer a revisão do Plano Diretor como um todo, como preconiza o Estatuto da Cidade, o governo está privilegiando alterar pontualmente a legislação urbanística de regiões da cidade que interessam ao mercado imobiliário”. O projeto do Cais Rooftop, acrescenta Betânia Alfonsin, é muito simbólico em função do histórico do prédio que, por conta do não atendimento da função social da propriedade, foi várias vezes ocupado pelo Movimento Nacional de Luta por Moradia.

“Existe uma demanda habitacional prioritária no Brasil que precisa ser atendida por todas as esferas de governo, o que não vem ocorrendo. O Movimento Nacional de Luta por Moradia, na Ocupação Saraí, denunciou muito fortemente essa realidade. Temos agora um projeto imobiliário no mesmo prédio que já foi alvo dessas ocupações, mas voltado agora para outras classes sociais. Isso é bastante indicativo do perfil que quer se dar ao Centro Histórico e do descompromisso do governo Melo com o atendimento dessa demanda habitacional da população de menor renda, que poderia perfeitamente ser contemplada em projetos do município para esses prédios vazios e abandonados que existem no Centro de Porto Alegre”.


“Há um processo de inflexão ultraliberal no regime urbanístico das nossas cidades” / Foto: Luiza Castro/Sul21

O Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico vem acompanhando o processo de revisão de planos diretores por todo o país e esse tipo de procedimento que ocorre agora em Porto Alegre tem se repetido, assinala ainda Betânia. “É um processo de inflexão ultraliberal no regime urbanístico das nossas cidades e um abandono das promessas da Constituição Federal e da política urbana que foi preconizada pelo Estatuto das Cidades. É um descompromisso com a função social da propriedade e com o direito à cidade para todos e todas”.

No longo prazo, alerta a conselheira do IBDU, esses projetos alimentam um processo de gentrificação e expulsão dos setores populacionais de menor renda de locais como o Centro Histórico e o Quarto Distrito. “Parece que a Prefeitura está bastante comprometida com isso, pois esses projetos de lei que vêm sendo encaminhados à Câmara de Vereadores acabam facilitando e pavimentando juridicamente um processo que o mercado imobiliário faz naturalmente. É uma dinâmica do mercado imobiliário que é facilitada pela legislação urbanística do município, infelizmente”.

“Um plano elitista e excludente”

Felisberto Seabra Luisi, conselheiro titular da RGP1 do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), considera o programa de revitalização do Centro Histórico de Porto Alegre, onde ele mora, um plano elitista e excludente. O problema do Centro, defende, não está no adensamento, mas sim na melhoria do que já existe. 

“O Centro possui hoje uma população de aproximadamente 40 mil pessoas, que vivem há anos nesta região e têm uma visão clara do que é importante. Nós, da RGP1, elaboramos um plano popular de ação regional, elaborado pelos delegados e conselheiros do nosso fórum regional, demonstrando a importância do patrimônio histórico e fazendo uma análise da infraestrutura existente. A análise que a Prefeitura diz que fez foi antes da pandemia. Com a pandemia, o Centro perdeu muito de suas características, pois as pessoas passaram a trabalhar em casa. Quando a gente passa pela rua da Praia, num determinado horário ela tem público, mas depois das oito da noite não existe nenhum público. Na visão da grande maioria dos moradores, o Centro necessita de valorização do patrimônio histórico, de recuperação dos prédios abandonados. Temos aqui na Riachuelo o prédio que abrigava a Casa de Estudantes e que está fechado há mais de dez anos, sendo cada vez mais degradado pelo tempo”, exemplifica.

O Centro, defende Felisberto, precisa ser um espaço democrático de inclusão e não de exclusão. Ao longo da pandemia, critica, não houve da parte da Prefeitura um processo de discussão com efetiva participação social. “O que temos é um plano para atender os interesses do mercado imobiliário e não os interesses dos moradores da região. Isso vai expulsar os moradores do Centro, pois os aluguéis vão encarecer. Em relação ao prédio que foi da Ocupação Saraí, houve um governo (Tarso Genro) que se preocupou em fazer um decreto de desapropriação para um projeto de habitação de interesse social, mas que não teve continuidade pelo governo seguinte (José Ivo Sartori)”, lembra o morador do Centro Histórico.

Edição: Sul 21