“Da água brotou a vida. Os rios são o sangue que nutre a terra, e são feitas de água as células que nos pensam, as lágrimas que nos choram e a memória que nos recorda”, escreveu Eduardo Galeano, no livro “Os filhos dos dias”. O Brasil de Fato RS dá início, com esta reportagem, à série Águas do Rio Grande.
O rio Gravataí corta a Região Metropolitana de Porto Alegre, banhando com seus 39 km de curso nove municípios com alto adensamento populacional. Teve parte do seu curso natural canalizado no final da década de 1960 para represamento de água para uso de arrozeiros e é responsável pelo abastecimento de cerca de 600 mil pessoas. É classificado como o quinto rio mais poluído do Brasil pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em lista publicada em 2012, principalmente por conta do esgotamento sanitário lançado no seu trecho final.
Apesar da posição no ranking, tem 70% de suas águas ainda limpas, próximas à região em que é formado, a Área de Proteção Ambiental (APP) do Banhado Grande entre Glorinha, Gravataí, Viamão e Santo Antônio da Patrulha. Deságua no delta do Jacuí - parte extremamente poluída - somando-se a outros rios no Lago Guaíba. Há alguma prática de pesca artesanal nas partes superiores do rio, visto que peixes usam os banhados para reprodução, vindos do Guaíba, após vencerem a parte degradada. Contudo, via de regra as cidades do entorno vivem de costas para esse manancial.
O Gravataí abriga uma riqueza em fauna e flora, com espécies adaptadas ao ambiente alagadiço, como demonstra o guia ilustrado da bacia hidrográfica do projeto Rio Limpo, realizado pela Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí (APN-VG). Registram-se mais de 80 espécies de peixes, devido à diversidade de ambientes aquáticos, como rios, arroios e banhados; cerca de 270 espécies de aves, com pelo menos nove ameaçadas de extinção; e uma diversidade de mamíferos, com espécies também em risco, entre elas uma população residual de cervo-do-pantanal, maior cervídeo da América do Sul, criticamente ameaçado.
Descuidado ao longo de décadas, intensamente utilizado pelo ser humano na captação de água e como local de despejo de resíduos, o rio devolve em problemas para seus usuários. Na atual estiagem que assola o estado, o Gravataí passa por período de escassez hídrica. Ameaçou neste mês, como já em outras ocasiões, deixar a população das cidades em seu entorno sem abastecimento de água e chegou a ter racionamento de captação para uso da agricultura e da indústria.
Propostas para enfrentar os problemas da poluição e escassez hídricas existem, algumas evoluíram e ficaram pelo caminho, outras enfrentam lentidão para saírem do papel. Até que a seca e a necessidade de racionamento colocaram o debate de volta à pauta neste mês. O Brasil de Fato RS conversou com especialistas e entidades sobre os problemas e propostas para tornar o uso do Gravataí mais sustentável.
Projeto Rio Limpo
Desde 1979, a APN-VG luta pela preservação e reversão da degradação do rio Gravataí, envolvendo a sociedade e promovendo valorização da biodiversidade. Também o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí realiza um importante trabalho aglutinando setores que utilizam as águas para os diversos fins. Presidente deste comitê, Sérgio Cardoso afirma que as ações de preservação hídrica e ambientais apresentadas nesta matéria só existem graças a esta toda essa mobilização social.
Ele conta que o projeto Rio Limpo, do qual foi um dos mentores, “nasceu na concepção de regionalização e ausência de ações do Estado”. Desde 2014 promove educação ambiental e social, com visitas de barco, mostrando para a população dos municípios banhados pelo Gravataí que ele não é apenas o rio poluído visto na região de Porto Alegre. O projeto teve financiamento da Petrobras até 2016, com foco em escolas, depois seguiu de forma autônoma e ampliado a toda a população. Hoje, quem quiser, pode agendar uma visita de barco no Gravataí.
“Quando nós botamos o barco no rio, nós tornamos o rio público, antes só tinha acesso quem tinha barco. Umas 14 mil pessoas já andaram dentro do rio Gravataí, elas ficam abismadas, de boca aberta. Nós criamos um choque de gestão e conhecimento que não existia antes, nessa imagem de um rio sujo. Na verdade 30% do rio é sujo, do antigo pedágio de Gravataí para baixo, mas 70% não. O projeto trouxe isso, mantivemos a pauta viva, inserimos novos atores”, conta.
Rio quase secou no início do ano
Nos últimos dias de 2021, o rio Gravataí atingiu condição crítica, com o nível ficando abaixo de 50 cm na régua de captação da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) de Gravataí, assim permanecendo até 4 de janeiro. Segundo Sérgio, o rio chegou à marca de 11 cm no início de janeiro. “Quase zero! Fomos salvos por uma chuva e levamos o rio para 1,27 m”, afirma.
“Por pouco a Corsan já teria que entrar com balsas no meio do rio Gravataí para poder pegar água para abastecer a comunidade, e o resto dos setores todos parados”, disse, referindo-se ao acordo que prevê o racionamento da captação de água para agricultura e indústria em períodos de escassez.
O acordo, sob gestão do Comitê da Bacia desde 1995, quando houve uma grande seca do rio, transformou-se em resolução do Conselho de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul em 23 de novembro de 2021. Prevê que se o rio chegar ao nível de alerta, inicia-se rodízio intermitente de captação de água para irrigação, iniciando com dois dias sem bombeamento, passando três dias com bombeamento. Já se o nível alcançar o nível crítico, a captação fica suspensa até que volte a condição de alerta.
O monitoramento fica a cargo do Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento (DRHS) da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) do RS. Segundo Diego Carrillo, chefe da Divisão de Meteorologia, Mudanças Climáticas e Eventos Críticos, a leitura é feita em réguas localizadas na Corsan de Alvorada e Gravataí.
“Diariamente a gente faz a leitura desses níveis, publica a atualização no site e os irrigantes param de bombear, se necessário, a partir das 8h do dia seguinte. Isso para poder garantir o abastecimento das populações por maior tempo possível”, afirma. Ele ressalta que o acordo tem funcionado. “Logo que chove os próprios irrigantes pedem que a gente atualize o boletim porque eles têm muito medo de ligar as bombas sem essa informação.”
Estiagens recorrentes
Diego chama atenção para a situação da estiagem, que já vem ocorrendo desde o verão entre os anos de 2019 e 2020. “Já é o terceiro ciclo de estiagem que a gente está passando e o que tem ocorrido é que, entre os períodos de verão, a quantidade de chuva não tem sido suficiente para repor o déficit hídrico na bacia”, explica.
Ele destaca que existe consenso internacional de institutos e pesquisadores sobre a acentuação da ocorrência dos eventos críticos, tanto cheias quanto estiagens, devido às mudanças climáticas. Contudo diz que estiagens no estado não são inéditas e a situação de escassez hídrica do rio Gravataí já ocorreu no passado, a exemplo de 2004 e 2005.
Um rio de planície
O engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti, membro do Grupo de Pesquisa em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos, do IPH/UFRGS, explica que o Gravataí não tem uma bacia de grande porte. “É um rio que tem pouca vazão naturalmente. A água da chuva cai nos morros, infiltra-se nos solos e vai aflorando em alguns pontos da paisagem, formando córregos que depois vão se juntando, formando os arroios. Depois esses arroios têm uma característica interessante, eles vão se aglutinando no banhado que fica no meio da bacia, que é o Banhado Grande.”
A formação da bacia do Gravataí teve uma origem bastante peculiar, aponta Iporã. “É resquício de uma antiga laguna, de quando o nível do mar era mais alto. Isso há não muitos anos atrás em termos geológicos, nas eras glaciais, cerca de 10 mil anos atrás. E acabou ficando essa planície porque era uma antiga laguna, o mar entrava e agora não entra mais, é um rio.”
Por isso, enquanto um rio de planície, tem a característica de inundação, hoje muito diferente do que foi há décadas, antes de ser canalizado e sofrido barramentos para a produção de arroz. Para enfrentar a escassez proveniente deste sistema, ele entende que a saída é estocar água durante o período de chuvas e liberar nas secas. “Se a gente incrementasse essa capacidade de reservação a gente conseguiria segurar o problema de estiagem severa”, afirma.
“Hoje nós temos uma caixa d’água furada porque na década de 1960 fizeram um grande canal no banhado e onde era pra acumular água, ela vai embora direto pro Guaíba”, complementa Sérgio Cardoso, que também é geólogo. “Então se faltou, deu crise, nós não temos mais como armazenar água, a não ser recompondo esse processo que foi rompido”, acrescenta.
Projeto de minibarramentos
Sérgio destaca que o acordo de racionamento é uma alternativa à lentidão das políticas públicas de longo prazo no estado, “para poder administrar a miséria”. Para recompor a capacidade de armazenamento, ele conta que o Comitê da Bacia trouxe aos prefeitos do Consórcio Metropolitano da Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal), no início de 2022, um projeto antigo: a construção de 13 minibarramentos no leito do rio. “Eles assumiram a bandeira e vão pressionar o governo pra fazer essa obra”, afirma.
Segundo ele, os minibarramentos são contra cheias e secas e já estão projetados em estudo da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan). “Esse projeto é resultado do PAC Prevenção que começou lá em 2012/2013, quando o governo federal botou o edital e o RS se habilitou para pegar esse dinheiro. O projeto terminou em 2018 e desde então estão sentados em cima, na Metroplan, já com recurso disponível via Caixa Econômica Federal.”
Porém, ainda não foi executado por falta do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima). A Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), que recebe o pedido de licenciamento para execução do estudo, afirmou via assessoria de imprensa que a Metroplan solicitou um novo termo de referência para a realização, no dia 10 de janeiro de 2022. Porém, diz que não há pedido de licenciamento protocolado no órgão ambiental.
A equipe técnica da Metroplan, por sua vez, também via assessoria de imprensa, afirmou que o processo licitatório e os contratos para elaboração do estudo foram assinados em 2021, com previsão de execução em 12 meses. “Estamos aguardando autorização do Ministério do Desenvolvimento Regional para iniciar a execução, que deve ocorrer nos próximos dias”, diz.
Fato é que a estiagem recolocou o projeto na pauta do governo estadual, desde que os prefeitos da Granpal solicitaram a construção das microbarragens. Nesta terça-feira (25), o tema foi tratado em reunião entre os prefeitos e o governador Eduardo Leite (PSDB). Na ocasião, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, Luiz Carlos Busato, disse que o projeto está na fase de estudos de impactos ambientais.
Impactos do projeto
Na avaliação de Iporã, existe um impacto em regularizar a vazão do rio, pois espécies da flora estão adaptadas à oscilação de nível. “Existe um impacto de regularizar nesse sentido, a questão é quanto nós estamos dispostos a sacrificar para ganhar do outro lado. É um jogo de perdas e ganhos”, diz o engenheiro ambiental.
Ele ressalta que a planície do rio já foi completamente descaracterizada por retificações. “Boa parte tem arrozais, que funcionam como pequenas barragens. Então entendo que é preciso um estudo técnico que demonstre que vai realmente regularizar a vazão”, afirma. “Considerando as condições de mudanças climáticas, talvez possa ser de fato uma alternativa, já que estamos, digamos assim, tentando minimizar os danos que a gente já causou no meio ambiente”, pondera.
Sérgio entende que o impacto humano da obra será zero, pois ninguém mora nos banhados. Que o impacto financeiro aos proprietários de terras será pequeno “porque as propriedades foram terras invadidas mesmo, o pessoal vai perder uns ‘hectarezinhos’ de arroz, mas vai ter garantia de água no ano todo”. E que o impacto sobre a fauna e a flora será minimizado. “São pequenas obras modulares, elas não vão deixar tudo embaixo d’água o ano todo, nós vamos regular o fluxo do rio com essas pequenas minibarragens que vão ser executadas lá dentro do canal”, explica.
Tratar efluentes
A chefe de Planejamento Ambiental da Fepam, engenheira agrônoma Cláudia Wolff, entende que o problema hídrico está também interligado à saúde do ecossistema. Para ela, a solução passa pela recuperação da vegetação às margens do rio e seus afluentes, dos banhados, nascentes e olhos d’água e da manutenção de uma política que estimule a preservação destes locais. Também sugere atenção especial às várzeas, evitando drenagens e aterramentos, e no caso dos empreendimentos, a busca por formas de uso mais sustentável.
Cláudia reforça que a qualidade das águas é bastante ruim no seu trecho final da foz e que são necessárias ações para sua recuperação. O Relatório da Qualidade das Águas superficiais da Bacia do Gravataí aponta que houve queda na qualidade das águas nesta parte do rio, no comparativo entre os períodos de 2010-2013 e 2015-2020.
Segundo ela, diversos atores contribuem para uma piora da qualidade, como a agricultura nas áreas de várzeas, com uso intensivo de agrotóxicos, e a pecuária, quando os animais têm acesso diretamente ao recurso hídrico. “De qualquer forma, a principal contribuição para a baixa qualidade das águas é a carência de um sistema de esgotamento sanitário adequado, situação esta já apontada no Plano de Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, elaborado em 2012”, afirma.
A Corsan, responsável pelo saneamento da Região Metropolitana, informou por meio da assessoria de imprensa à reportagem que trata 30,5% do esgoto dos municípios que pertencem à bacia do rio Gravataí.
Disse que por meio da Parceria Público-Privada (PPP) firmada em dezembro de 2020 com a empresa Metrosul, que abrange nove cidades da Região Metropolitana - cinco delas na bacia do Gravataí: Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Gravataí e Viamão - está trabalhando para universalizar o esgotamento sanitário na região até 2033. "Isso vai contribuir decisivamente para a recuperação das condições ambientais dos rios Gravataí e Sinos", afirmou.
Sérgio afirma que, enquanto presidente do Comitê da Bacia do Gravataí, aguarda os resultados da PPP para depois avaliar sua efetividade. “Nós queremos é esgoto tratado. Vamos monitorar e saber quanto a qualidade do rio melhorou. Daqui há dois anos vamos ver se a política dita como solução funcionou”, afirma.
A reportagem também questionou as ações previstas para melhoria do tratamento dos efluentes à assessoria de imprensa do Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (Dmae), já que a capital gaúcha despeja o esgoto da zona Norte no rio Gravataí. Até o fechamento desta reportagem, não houve retorno.
Revitalização das bacias hidrográficas
Um projeto aprovado em 2020 prevê recuperar a qualidade do rio Gravataí, e também o dos Sinos – outro rio muito poluído da Região Metropolitana: o Programa Estadual de Revitalização de Bacias Hidrográficas. Com vigência até o final de 2023, ainda não apresentou andamento relevante. Contudo é outro projeto que está de volta à pauta, com afirmação recente do governo estadual de que está na lista de prioridades.
A diretora do Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento, Patrícia Moreira, explica que o objetivo é estruturar um programa estadual para identificar e executar ações de revitalização nas bacias hidrográficas do estado, começando pelos rios Gravataí e dos Sinos. Prevê um investimento de cerca de R$ 5 milhões, sendo R$ 4,5 milhões da parte do governo federal e R$ 461 mil da contrapartida estadual.
“São as duas grandes bacias que aglutinam praticamente todos os problemas que interferem numa gestão de bacia hidrográfica. As soluções a partir dali podem ser replicadas em outras bacias”, explica. “Essas duas bacias têm forte impacto sobre a região do Guaíba, abrigam um expressivo contingente populacional na Região Metropolitana de Porto Alegre, por vários aspectos, desenvolvimento econômico, importância turística, concentração dos grandes problemas em termos de degradação de bacia hidrográfica, suscetibilidade de desastres naturais.”
O programa é dividido em quatro metas: as duas primeiras vinculadas a apoio, gestão, comunicação, mobilização, pensando na capilaridade e envolvimento da sociedade para se tornar uma política de Estado; as duas últimas, em formato de projeto-piloto, trazem ações de forma mais direta ao ambiente e suas populações, com realização de monitoramento, diagnósticos e ações de recomposição de áreas degradadas, nascentes e cursos de água dos dois rios. Prevê também investimento em saneamento básico para comunidades quilombolas.
“A ideia não é esgotar esse projeto no âmbito do governo federal, é trazer ele como uma política permanente para o estado, inclusive com recursos próprios. O convênio federal é um pontapé inicial para trazer esse clamor, essa necessidade de saneamento para a ótica da gestão de recursos hídricos e segurança hídrica, conceito ainda novo”, complementa Patrícia. “Não é inventar a roda, é pegar o que já existe e trazer ações práticas vinculadas à gestão ambiental”.
Ela afirma ainda que os dispositivos do instrumento de celebração do programa podem envolver aditivos, “possibilidade foi assinalada e muito provavelmente vai ocorrer um aditivo de prazo com a União para ampliar a execução.” E ressalta a importância dos comitês das bacias hidrográficas do Gravataí e dos Sinos para sua construção.
Conforme Sérgio, esse programa foi construído pelo Comitê da Bacia junto ao governo do estado, que fez a adesão ao programa. “As ações previstas passaram pela plenária do Comitê, foi construído em várias mãos. Hoje ele encontra sérias dificuldades porque lá em Brasília eles têm mudado as pessoas de cargo a cada dia. Essa é a dificuldade de ainda não termos implantado, mas eu sou defensor apaixonado desse programa de revitalização.”
Enquanto o Programa Estadual de Revitalização de Bacias Hidrográficas e o projeto de minibarramentos patinam em meio a burocracias do Estado brasileiro, o ecossistema do rio Gravataí pede socorro. Resiste dependendo da criatividade da sociedade para evitar que as ondas de calor sequem seu leito, prejudicando a população humana e os animais que dependem de suas águas.
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Edição: Katia Marko