O Brasil e o mundo estão entrando no terceiro ano da pandemia causada pelo coronavírus que trouxe uma acentuada crise sanitária, causando efeitos drásticos em todos os setores, aprofundando uma realidade existente, das desigualdades sociais e também dos direitos humanos.
Segundo o relatório "O vírus da fome se multiplica”, da OXFAM Brasil, o percentual de brasileiros que vivem em extrema pobreza quase triplicou: de 4,5% para 12,8%. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que o país somava 14,8 milhões de desempregados. Enquanto isso os mais ricos no mundo, ficaram mais ricos durante a pandemia.
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“Um cenário de violações de direitos humanos que tem sido provocado e se intensificado pelas ações e omissões do governo federal no enfrentamento à covid-19”, destacou o mediador Mauri Cruz, integrante da Abong – Projeto Sementes de Proteção, ao fazer a abertura do painel Pandemia, o Aumento das Desigualdades e os Direitos Humanos, debate que integra o Fórum Social das Resistências, na manhã desta quinta-feira (27).
Formada por maioria de mulheres, o painel teve como debatedoras a psicóloga e presidente do Conselho Federal de Psicologia, Ana Sandra Fernandes, a médica sanitarista e coordenadora de saúde pública e integrante da Associação Vida e Justiça das Vítimas da Covid-19, Claudia Travassos, a diretora da Abong, Débora Rodrigues, a integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), uma das coordenadoras do Projeto Sementes de Proteção, Jô Camba, e Keila Simpson, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Na abertura de cada fala as participantes fizeram um resgate de suas respectivas instituições.
Conforme destacou Mauri Cruz, no Brasil, até o momento já foram contabilizadas (de forma subnotificada) mais de 624 mil mortes, um número de 4 a 5 vezes maior da média mundial. “Somos o epicentro da pandemia desde o começo do ponto de vista estatístico”. Ainda segundo reforçou Cruz, os dados apontados não são apenas números estatísticos. “Nós acompanhamos essa realidade, nós vivenciamos essa realidade, nós enxergamos ela todos dias na nossa cidade, no nosso cotidiano, no nosso dia a dia.”
Antes da apresentação das debatedoras, o painel fez uma homenagem a Elza Soares, com o clipe Juízo Final.
“A saúde para nós é muito caro”
“No momento em que a gente vive no país de negação da ciência, especialmente por quem deveria defender, a gente acha importante que a população trans ocupe esses espaços da saúde para dizer que nós acreditamos e defendemos sobre todas as possibilidades a ciência no país. É inadmissível vermos hoje pessoas que negam a ciência”, afirmou Keila Simpson, integrante da Antra.
Conforme ressaltou, a saúde é muito caro para a população trans, algo que segundo aponta, só se teve acesso com o advento da Aids. “A população de travestis e mulheres transsexuais só experimentou essa entrada no Sistema Único de Saúde quando a Aids se estabeleceu entre a nossa população. A porta da Aids se abriu no Sistema Único de Saúde e lá foi a população trans”, destacou, apontando que também foi pelo viés da Aids que se conseguiu se organizar enquanto movimento social. “Nosso movimento se forjou sobre dois aspectos, primeiro da violência e depois pelo viés da saúde”, afirmou.
Em sua fala Keila destacou que a pandemia botou todo mundo em situações bem difíceis, mas para a população trans foi um impacto severo. “A nossa população, a grande maioria, vive da prestação de serviços sexuais, e as recomendações eram para que a gente se isolasse dentro das nossas casas, sem contato com pessoas estranhas. O trabalho da população trans é geralmente com pessoas estranhas, o sexo é contato direto e isso se abate nessa população. E ai a recomendação é distanciamento, se não você vai pegar uma doença e a doença vai te levar à morte. Essa informação parecia tal como a Aids lá no início quando ela surge. O diferencial foi que a pandemia (coronavírus) atacava todo mundo”, salientou, acrescentando a dificuldade da população trans nesse contexto.
Kelia também informou que a Antra lançará nessa sexta (28) o Dossiê de Assassinatos de Pessoas Trans no país que a entidade realiza todos os anos. O lançamento será feito na sede da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). “Desejamos que esse estudo que fazemos a cada ano sirva de instrumento para pressionar políticas públicas que vai radicar a violência no Brasil, especialmente essa violência contra travestis, mulheres transsexuais e homens trans que são assassinados diariamente.”
Por fim afirmou que o Brasil está sob escombros. “Esse governo conseguiu afetar consideravelmente todas as estruturas democráticas. Estamos refém de um governo fascista que aí está e precisamos reparar esse dano, esse golpe que o país sofreu com a eleição de uma pessoa que não olha para a população de uma forma igual, uma pessoa que está no poder para aniquilar direitos, e esses direitos afetam diretamente a nossa população, nossa comunidade.”
“32% da população mundial não tomou nenhuma dose da vacina contra a covid-19”
Em sua apresentação a médica sanitarista Cláudia Travassos destacou as iniciativas em andamento da Associação Vida e Justiça, entre eles ações de indenização por reconhecimento da covid-19 como acidente de trabalho; projetos de lei nacional e estaduais para conceder aos órfãos da covid auxílio financeiro até a maioridade, a exemplo do “Auxílio Cuidar”, instituído pelo governo do Maranhão; projeto de lei para instituir o dia e a semana nacional em apoio às vítimas da covid-19, junto com o Conselho Nacional da Memória; o Projetos Bosques da Memória, desenvolvido em municípios que consiste em plantar uma árvore, em uma praça, com o nome das pessoas que faleceram na cidade, ou a criação de bosques, feitos pelas famílias em memória das pessoas que faleceram.
A médica sanitarista abordou também o contexto atual da pandemia ao chegar no seu terceiro ano, da quarta onda, advinda com a nova variante ômicron, e sua altíssima transmissibilidade. Na apresentação expôs o fato das mortes estar caindo em relação ao número de infectados, citando por exemplo, nesse caso, o Chile.
Sobre a vacinação a médica sanitarista disse que, apesar de estarmos há um ano com vacinas disponíveis, existe uma distribuição desigual das mesmas, com destaque ao continente africano onde a cobertura vacinal continua baixa. Até o momento 52% da população mundial foi vacinada com duas doses, e 32% da população mundial sem nenhuma dose.
Uma das origens dessa desigualdade, apontou Claudia, deve-se as empresas farmacêuticas que continuam se negando a politicas de suspensão de patentes. “São empresas que estão com lucros extremamente altos. A receia estimada para 2022 dessas empresas é de 460 bilhões de reais. Entretanto continua a negativa de transferência de tecnologia, de quebra de patentes. Infelizmente nosso país, em uma posição contrária que ele sempre teve, tem sido um país que tem apoiado a decisão contra a quebra de patente. Cuba é um país que consegue furar essa situação”, apontou.
Ao abordar a situação do país em sua apresentação, a médica pontuou, além dos casos de contaminação, ocupação hospitalar, o acirramento sócio-econômico, durante a pandemia. Ela citou, por exemplo, que entre os 13 bilionários cariocas, três atuam na saúde e enriqueceram enormemente durante a pandemia com negócios com a saúde privada. “O dono da Rede Dór elevou seu patrimônio de 11,2 bi para 63,9 bi”.
"Consideramos que estamos vivendo em uma sindemia, que quer dizer que é uma situação que tem múltiplas causas combinadas que vão muito além de uma relação vírus-hospedeiro com consequências maiores, o adoecimento e a morte. E vai requerer para sua superação respostas múltiplas”, enfatizou.
“Vivemos um cenário político que aponta para um retrocesso no Plano Nacional de Saúde Mental”
A presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Ana Sandra Fernandes, destacou a produção feita pela Comissão de Direitos Humanos do CFP, entre eles o Direitos Humanos e populações vulnerabilizadas durante a pandemia. Nele são feitas recomendações a representantes dos três Poderes e à sociedade civil em geral para realização de medidas de curto, médio e longo prazos, que poderão reduzir os impactos da covid-19 nas condições de vida das populações mais vulnerabilizadas, além de promover melhores condições de saúde individual e coletiva.
De acordo com Ana, estamos vivendo um verdadeiro caos em relação à retirada de direitos historicamente e duramente conquistados. “É muito importante que a gente entenda que todo esse contexto de retirada de direitos produz um agravamento, produz muito mais sofrimento do ponto de vista da saúde mental. A situação da fome, do desemprego, a situação de todas violências que têm sido tão fortemente notificadas estatisticamente. A gente vive um cenário político que aponta para um retrocesso no Plano Nacional de Saúde Mental, que enseja a um retorno para uma lógica manicomial”, denunciou.
Ela finalizou sua apresentação citando a música escrita coletivamente em alusão aos 60 anos da Declaração de Direitos Humanos, em 2009, projeto esquerdos e direitos, todos humanos. “Se nascemos todos nus, por que somente alguns vão ter o que vestir / Se todos sentimos fome por que somente alguns vão ter o que comer / Se todos, todas, todes temos sede, por que somente alguns vão ter água para beber? Então me diga o que é direito humano, então me diga o que é direito humano para você.”
“São os corpos das pessoas negras que tombam com mais força”
“Quando falamos violações temos uma diversidade tão grande que às vezes fica difícil dizer qual é a prioridade, qual o ponto que se olha”, apontou Débora Rodrigues, integrante da Abong. Conforme destacou, tem ficado cada vez mais complicado olhar os números trazidos nas estatísticas, pois são pessoas com quem se convive.
Em sua apresentação, Débora ressaltou o histórico de extermínio da população negra, que na pandemia foi agravado. “São os corpos das pessoas negras que tombam com mais força. A violência contra as mulheres, o número de feminicídios, da violência doméstica com o corpo das mulheres, seja elas mulheres trans, idosas, com deficiência, as mulheres criança que sofreram na pandemia, tiveram as violações mais agravadas. E também são as mulheres, especialmente as mulheres negras que estão lá entre os índices mais fortes da fome, o nível de forma mais agravada são dos domicílios chefiados por mulheres”, expôs, sublinhando que a fome é resultado de um processo de violações cumulativas.
Ao mesmo tempo, complementou, há um governo focado em uma pauta de costume que ajuda no retrocesso e encolhimento dos direitos e das politicas sociais. “Uma pauta focada na questão da família que na verdade sabemos quem tomba com essa pauta. Uma pauta focada no patriarcado, na heteronormalidade, no machismo, racismo, que são estruturas sociais que têm agravado as violações de direitos no Brasil”, afirmou Débora. Ela lembrou também sobre o agravamento da crise climática que impacta principalmente os corpos pretos, das mulheres, dos mais pobres, citando o caso de Brumadinho, e as chuvas que têm havido na Bahia e Minas Gerais, que tem desabrigado famílias e atingido a produção de alimentos das famílias da agricultura familiar.
“Mas temos resistência. Precisamos avançar no sentido da construção de novos paradigmas a partir das nossas experiências. É possível outro mundo. Vivemos um momento de negação da vida, mas precisamos avançar na construção de uma solidariedade, do resgate da humanidade. As violações são muitas, mas vamos resistir”, finalizou.
“Nós queremos uma outra sociedade com outros parâmetros”
Em sua fala Jô Camba destacou ser um período de travessia, e que os impactos diferentes entre uns e outros. “Não foi a pandemia que trouxe, mas já o sistema baseado em parâmetros que geram desigualdade, o patriarcado, a propriedade privada, acumulação de riquezas, o racismo, desvalorização de algumas vidas. Isso é a base dessa sociedade que vivemos e combatemos, e por isso lutamos por direitos humanos e dizemos querermos uma outra sociedade com outros parâmetros que vençam a lógica predatória, patriarcal, do domínio hetero, do domínio da cultura do branco, da desvalorização da ancestralidade, e da reafirmação de tudo aquilo que significa o bem viver.”
Jô Camba enfatizou em sua fala as desigualdades desses quase três anos de travessia causada pela pandemia. “Sabíamos que essa travessia não seria igual para todo mundo. Alguns vão atravessar de barquinho, outros a nado, outros iates, aviões, por isso precisávamos nos reinventar enquanto lutadores e lutadoras dos direitos humanos.” Ela citou, por exemplo, o caso do trabalho feito virtualmente pelas entidades. Também falou que foi nesse contexto que nasceu o Projeto Sementes de Proteção, que une redes de atuação de defensores e defensoras de direitos humanos no país.
Jô é coordenadora de um programa de proteção a defensores de defensoras de direitos humanos no Maranhão. “Enquanto no último ano antes da pandemia nós fizemos 31 ofícios para órgão público para dar visibilidade das violências, tivemos que aumentar para 181 ofícios na pandemia porque as nossas formas de pressão mudaram. Por exemplo, a questão das passeatas, dos atos públicos, essas sempre foram a nossa forma privilegiada de incidência e elas foram suspensas.”. Destacou que durante a pandemia o aumento dos ofícios foi a forma encontrada para continuar a dar visibilidade à situação das ameaças dos defensores e defensoras. Ela também falou sobre o monitoramento dos impactos da pandemia.
Segundo ela, entre os ensinamentos da pandemia ficou a lição de unidade das entidades, movimentos sociais para enfrentar a diversidade. “Temos muitas diferenças, mas temos uma causa em comum, a vida, a superação das desigualdades, das discriminações, a superação de que uma lógica em que vidas são descartadas, desconsideradas. Isso é o que nos une, essa caminhada pela vida, vamos enfrentar, vamos superar como bem disse a Elza Soares, o sol vai brilhar mais uma vez, e vai brilhar independente de quem não souber fazer a unidade.”
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Edição: Katia Marko