As violências da exploração neoliberal se aprofundam em corpos negros, pobres e femininos
A vida sob o império da extrema direita bolsonarista, militarizada e negacionista não deixa dúvidas quanto ao aprofundamento da destruição social, política e econômica da sociedade brasileira. O Brasil tem um dos maiores índices de concentração da renda do mundo.
Durante a pandemia aumentou a desigualdade, o desemprego e a pobreza no país. Um estudo publicado pela Oxfam no início de 2022 mostra que um novo bilionário surgiu a cada 26 horas durante a pandemia, enquanto a desigualdade contribuiu para a morte de uma pessoa a cada quatro segundos. No Brasil, 20 (vinte!) bilionários têm mais riqueza (US$ 121 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros, que correspondem a 60% da população.
Já são bastante evidentes os dados científicos que mostram que a pobreza tem raça/etnia, gêneros e sexualidades dissidentes. São as mulheres, principalmente as mulheres e homens negras/negros, mulheres e homens indígenas, famílias de migrantes latinos, pessoas de gêneros não binários, trans e lésbicas a maioria das brasileiras e brasileiros que mais perderam as condições de vida digna.
São elas as principais vítimas das violências sexuais e dos feminicídios que cresceram em 2021. É a população negra o alvo dos assassinatos provocados pela polícia (78% das vítimas do homicídio policial são negras). A mesma situação de vulnerabilidade e aumento das violências e assassinatos atingiu a população LGBTQIAP+ no Brasil. Cerca de seis em cada 10 pessoas LGBTQIAP+ perderam totalmente sua renda, vivem em situação de extrema vulnerabilidade social, sob insegurança alimentar e sofrem com o aumento das violências homofóbicas contra seus corpos dissidentes da heteronormatividade patriarcal.
Esses dados já conhecidos podem ajudar na seguinte reflexão: em que medida essas maiorias que se organizam em diversos movimentos sociais na luta por direitos e pelo fim de violências, preconceito, exploração e discriminação se encaixam no debate envolvendo a agenda identitária?
É possível considerar que essas demandas são secundárias ou irrelevantes? Ou, ainda, que esta é uma pauta “importada” dos EUA para o Brasil; ou, mesmo, que são tentativas “burguesas” de desviar a pauta central da luta de classes/anticapitalista?
Será possível considerar a luta contra o neoliberalismo/capitalismo sem considerar quem são os principais alvos da brutal destruição do emprego, da precarização do trabalho e da vida?
A visão dominante que tem suas origens no liberalismo político naturaliza a ideia de um sujeito universal com uma identidade única que representa todas as subjetividades e identidades múltiplas presentes na diversidade de grupos sociais. Esse “sujeito universal”, hegemônico, masculino e branco ocupa um lugar de poder e visibilidade no topo da cadeia da exploração capitalista. É o sujeito ideal do capitalismo.
Quando, entretanto, olhamos a fundo para a heterogeneidade das desigualdades de classe, vemos que é preciso desconstruir essa ideia de classe trabalhadora como uma totalidade homogênea, masculina/hétero e branca. Aliás, autoras como Elizabeth Souza Lobo (A classe operária tem dois sexos), Helleieth Saffioti (A mulher na sociedade de classes) e Lélia Gonzalez (racismo e sexismo na cultura brasileira) demonstraram essa necessidade em seus escritos no século XX. Elas revelaram que essa construção reducionista não representa a classe trabalhadora brasileira e, tampouco, o precariado atual.
A violência com que o neoliberalismo vem operando a desdemocratização, destruindo direitos, o meio ambiente, o trabalho humano, a vida social e reprodutiva, mostra a urgência em se transcender o debate binário em favor de uma agenda de igualdade associada à luta por inclusão, pelo respeito e visibilidade das maiorias socialmente sub-representadas.
Por essa razão, os feminismos antirracistas e antineoliberais sustentam que o enfrentamento ao neoliberalismo está diretamente relacionado a lutas conjuntas que enfrentam de modo combinado o sexismo/machismo, o racismo em suas variadas manifestações (estrutural, institucional, ambiental) e a lgbtfobia. São realidades em que as violências da exploração neoliberal se aprofundam quando se tratam de corpos negros e pobres, femininos, e dissidentes à ordem heteronormativa.
Os tempos são devastadores.
É preciso compreender que as lutas pejorativamente chamadas de “identitárias” não negam ou substituem as desigualdades de classe, como tampouco produzem divisões na luta da classe trabalhadora para a emancipação do capitalismo. Pelo contrário, desde uma perspectiva progressista, democrática e inclusiva, são essas agendas que garantem o caráter transformador e de ruptura com práticas hierárquicas e conservadoras, racistas e patriarcais naturalizadas na cultura brasileira.
Se for verdade que quando falamos de exploração, violência e morte provocada pela exploração capitalista estamos falando de uma violência brutal perpetrada contra o povo pobre, que na sua maioria é negro, feminino e sexualmente diverso, estamos, então, diante de um grande desafio.
O desafio de romper com uma perspectiva reacionária e conservadora que, lamentavelmente, atinge as mentes de setores progressistas e de esquerda que resistem a acolher essas temáticas, relacionadas aos direitos sociais, civis e políticos das mulheres, do povo negro, indígena e LGBTQIAP+, como questões centrais para uma agenda transformadora/emancipadora.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko