Janeiro chegou e com ele o calor mais acentuado no verão gaúcho. Neste ano, novamente com uma forte seca e estiagem. E como aconteceu em 2019, o estado se prepara para viver tórridos dias de calor, com termômetros marcando acima dos 40 graus. A intensa onda de calor, que no Sul do país traz essa irradiação solar e no Norte intensas chuvas, é consequência do fenômeno La Ninã.
A meteorologista e sócia-diretora da MetSul Meteorologia, Estael Sias, explica que nos meses de verão, no RS, as frentes frias passam muito rápidas e as chuvas que ocorrem, em grande parte, são consequência de umidade e calor. Ou seja, pancadas isoladas e chuvas irregulares, com volume de precipitação menor em relação a outros meses. Porém, afirma que não é realidade do estado ter um janeiro tipicamente seco.
“O que acontece agora é que estamos no segundo ano consecutivo de La Niña, com uma estiagem severa em diversos pontos do Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, com quebra de safra. A umidade está baixa, o solo está seco, rachado em algumas áreas, com temperaturas acima da média, vegetação seca. É normal termos ondas de calor intenso nos períodos de estiagem e seca, tanto é que as maiores marcas históricas de temperatura no RS ocorreram em 1917, 1943, que foram anos de estiagem e de seca”, expõe.
O RS teve a primeira onda de calor na virada do ano. Esta nova onda no mês de janeiro, segundo a meteorologista, pode trazer marcas de temperatura que poucas vezes ocorreram em mais de 100 anos de medição de dados. “Isso torna essa onda de calor especial, incomum, extraordinária. Porque, por exemplo, falar que vai ter 43 graus na Fronteira Oeste do RS significa que podemos quebrar o recorde de 42,6, que é a maior temperatura registrada em mais de 100 anos de medição”, aponta.
Conforme complementa o professor de Climatologia e Oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Eliseu Aquino, a formação da massa de ar quente seca que vai gerar onda de calor é intensificada, nessa essa época do ano, pelo efeito da continentalidade, já que o Oeste do RS em direção à Argentina está quente e seco, com passagens de alta pressão induzidas também pelo La Niña.
“Significa que três, quatro, cinco dias teremos temperaturas elevadas, dias quentes com madrugadas quentes", explica.
Recentemente a MetSul divulgou uma projeção de que o calor nos próximos dias pode chegar a uma sensação de quase 50 graus. Veja aqui.
Calor intensifica no final de semana
Segundo o professor Aquino, a onda de calor está prevista para atuar a partir desta terça-feira e seguirá até sábado. Isso significa, segundo ele, que teremos temperaturas próximas ou superando os 40 graus em diversas localidades do RS, provavelmente e em especial em localidades como Bagé, Alegrete, São Borja, Santo Ângelo, Santa Rosa.
De acordo com Estael, a previsão é que na segunda metade de janeiro o calor dê uma trégua, com pancadas de chuva mais frequentes. Pode até ter períodos de chuva volumosa associada a temporal. Isso pode beneficiar a metade Norte do estado, que amarga prejuízos com a seca.
“Vai ter um certo alívio a estiagem, mas fevereiro e março, ainda sob o efeito climático La Niña, continuará com padrão de chuva muito irregular”, afirma. “Então essa má distribuição, essa irregularidade segue e acaba agravando a estiagem porque o calor tende a persistir especialmente do Centro para o Oeste do estado. Nos próximos meses continuaremos nesse padrão de mais estiagem, com chuva abaixo da média”, aponta.
Chuvas no Norte e seca no Sul
A modificação da circulação atmosférica causada pelo La Ninã seguirá até o outono, causando no RS essa diminuição da precipitação de chuvas, destaca Aquino. Já na região Norte do Brasil, favorece a precipitação na Amazônia, transportando a umidade do Oeste da região em direção à Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
“Por isso nós observamos eventos extremos de precipitação no final de 2021 e início de 2022 na Bahia, e agora na região de MG, SP e RJ”, expõe o professor.
Cuidados com o calorão
Para os especialistas, esses dias de calor intenso exigem cuidados extras com a hidratação, em especial de crianças e idosos. Conforme observam, serão dias de temperatura ao longo do dia e da noite, onde a mesma não deverá baixar de 23 graus.
“Isso pode gerar infarto, problemas com desidratação, cansaço, tontura. Em especial atenção aos profissionais que desenvolvem atividades na rua”, destaca Aquino. Ele sugere cuidado redobrado ou até interrupção de algumas atividades em localidades atingidas por baixa umidade do ar e elevada temperatura.
Estael complementa recomendando, no âmbito individual, que se evite fazer exercícios físicos nos momentos de sol intenso, entre as 10 e às 16 horas, pois o organismo sofre um estresse muito significativo. Assim como o uso de filtro solar, pois a atmosfera vai estar com um perfil muito seco, em que a radiação ultravioleta estará muito alta, devido ao calor extremo e a baixa umidade relativa do ar.
Em relação ao setor agrícola a irrigação é a alternativa, pois o calor extremo gerará uma perda maior no setor do que já vem sendo observado.
Rios gaúchos em alerta
Entre as consequências da estiagem e do calor excessivo no RS está também o baixo nível das bacias hidrográficas e o risco de desabastecimento de água potável das cidades. Nos primeiros dias de 2022, a Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do estado colocou o rótulo de “Alerta” para oito das bacias hidrográficas do estado, enquanto todas as demais aparecem sob a rubrica de “Atenção”.
Os cenários mais graves são nas bacias dos rios Gravataí e dos Sinos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O Rio dos Sinos, por exemplo, que banha 30 municípios e abastece mais de um milhão de pessoas, chegou a registrar 38 cm de altura em estação localizada na cidade de São Leopoldo, local onde a altura média é de 133 cm. No início do ano, foi registrada alta mortandade de peixes no curso do rio, devido ao aumento da matéria orgânica proveniente dos esgotos.
O Rio Gravataí, que banha nove municípios e abastece mais de 500 mil pessoas, atingiu nível crítico no mês de dezembro, ficando abaixo de 50 cm na estação da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) de Gravataí. Este manancial tem uma característica de também fornecer água para indústria e para a agricultura, especialmente a arrozeiros da região. Com o nível crítico, conforme acordos firmados, a captação seria interrompida por estes setores, a fim de evitar desabastecimento da população.
O presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, Sergio Cardoso, afirma que em dezembro, a Corsan disse que poderia fornecer para os arrozeiros. “Depois de três dias esse acordo teve que ser rompido, porque a Corsan viu que o cálculo tinha sido furado”, afirma, destacando que a situação foi salva por uma forte chuva registrada na quarta-feira da semana passada, que elevou o nível do rio de 11 cm para quase 127 cm.
“Agora, o rio subiu até sábado e voltou a descer de novo, e tá descendo em torno de 3 a 4 cm por dia”, explica. “Ali na frente, essa semana provavelmente já teremos o nível de alerta (80 cm), que vai botar novamente o rodízio de captação”. Para Sergio, faltam políticas públicas de longo prazo para evitar desabastecimento de água, visto que a cada ano de seca o problema volta a ocorrer.
Até esta segunda-feira (10), 175 municípios no estado decretaram situação de emergência devido à seca. Destes, 52 tiveram seus decretos homologados e 23 situação reconhecida pela União. Segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do RS (Emater), é a pior seca do estado nos últimos 17 anos.
Últimos sete anos foram os mais quentes já registrados
Segundo divulgado nesta segunda-feira (10) pelo serviço de monitoramento do clima da União Europeia, os últimos sete anos foram os mais quentes já registrados globalmente “por uma margem clara”. De acordo com análises preliminares, a temperatura global em 2021 ficou 1,2°C acima dos níveis pré-industriais.
Em sua avaliação anual mais recente, o Copernicus Climate Change Service (C3S) confirmou que o ano de 2021 se juntou à sequência de calor ininterrupta desde 2015 – e alertou também sobre aumentos nas concentrações de metano na atmosfera. Veja mais aqui.
De acordo com o relatório, diversos países ao redor do mundo foram atingidos por desastres climáticos relacionados ao aquecimento global nos últimos anos. Entre os exemplos citados estão incêndios florestais recordes na Austrália e na Sibéria, uma onda de calor devastadora na América do Norte e chuvas torrenciais que causaram enormes inundações na Ásia, África, nos EUA e na Europa.
Aquino explica que o aumento da temperatura média do planeta nas últimas décadas e a mudança geral da circulação atmosférica, combinada com o aquecimento das águas superficiais dos oceanos, têm intensificado os eventos extremos. Segundo ele, ondas de calor, chuvas extremas e períodos de estiagem se tornam mais frequentes graças à mudança climática provocada pela ação humana.
A meteorologista Estael destaca que o calor é combustível para formar temporais e da mesma forma evidenciar extremos. Para ela, relacionar mudanças climáticas dentro desse contexto de extremos está correto. “Se formos ver o que tem acontecido nos últimos dois anos, especialmente, vemos que os extremos às vezes acontecem simultaneamente pelo mundo, com extremos de frio, nevascas, secas, e recordes de temperaturas em outras partes do mundo.”
Para o professor Aquino, a forma de reverter essa situação é ter políticas públicas e ingressar nos acordos internacionais, como o Acordo de Paris, bem como a busca de energias renováveis alternativas como eólica, solar, além de planejamento das cidades, preservação dos recursos hídricos, evitar desmatamento. Bem como todas as ações cotidianas, como por exemplo, evitar o desperdício de alimentos e adotar consumo racional.
“Uma conscientização ampla é urgente e necessária para que a gente consiga suavizar o aumento da temperatura média global que vai atingir um grau e meio até 2025/2030 até quem sabe 2050. Essa é sem dúvida uma das nossas urgências da crise ambiental e climática social do nosso planeta”, afirma.
Já para Estael, não há como reverter a situação. “Acho que essa palavra não se encaixa mais no contexto atual, a gente tem que se adaptar a essas mudanças, a esses extremos”, avalia. Para ela, é preciso que a sociedade e o poder público se preparem, pensando em como lidar e manter qualidade de vida, por exemplo, pensando nas estruturas das casas para suportar esses extremos.
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Edição: Katia Marko