O governo Bolsonaro lançou, em março deste ano, a Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos, batizada de Pró-Minerais Estratégicos. Um decreto inseriu essa política no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, criado com o objetivo de envolver diversos órgãos para “destravar” licenciamentos ambientais e dar “mais agilidade” na implantação de novos projetos de minerais considerados estratégicos como fosfato, potássio, lítio, níquel, urânio e terras raras.
No dia 18 de junho, o governo editou a Resolução nº 2, definindo a relação desses minerais estratégicos, cujos projetos deveriam ser “destravados”. Dois projetos previstos para serem implementados no Rio Grande do Sul estão nesta lista: a instalação de uma mina de fosfato em Lavras do Sul e a de uma mina de titânio em São José do Norte.
O projeto Três Estradas, da empresa Águia Metais, associada à mineradora australiana Águia Resources Limited, prevê a extração de fosfato a céu aberto em Lavras do Sul, por meio de perfuração e detonação. Já o projeto Retiro, da empresa Rio Grande Mineração, quer extrair titânio e zircônio em São José do Norte. O empreendimento quer explorar cerca de 600 mil toneladas de minerais pesados em uma área de cerca de 30 quilômetros de extensão, situada em um território entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico.
Após um período de recuo em meio à pandemia, as empresas envolvidas nestes projetos voltaram a acelerar suas atividades nestas regiões, aproveitando a disposição do governo federal em “destravar” os projetos, o que costuma se traduzir por meio da flexibilização e desmonte de leis e regulamentos ambientais.
O Sul21 conversou com Sabrina Lima, da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Araê Claudinei Lombardi e Iara Fernandes, também militantes do MAM, sobre a retomada da ofensiva das mineradoras também no extremo sul do país. Paraenses, Sabrina e Iara conhecem de perto a experiência do projeto Grande Carajás, da empresa Vale, e os impactos sociais e ambientais de sua implementação ao longo das últimas décadas. Elas advertem para o risco da ilusão de que “aqui será diferente”. “Não vai ser diferente, não. As estratégias das grandes empresas são as mesmas em todo o país, assim como os impactos sociais e ambientais de suas atividades”, assinalam.
Sul21 - Considerando esses decretos recentes editados pelo governo Bolsonaro, como está a situação do projeto Retiro que pretende se instalar em São José do Norte e do projeto de Lavras?
Sabrina Lima - No caso de São José do Norte, a licença prévia da mineradora expiraria no dia 14 junho deste ano. Um pouco antes desse prazo, ela solicitou a renovação da licença, que ainda não havia sido liberada pelos órgãos ambientais, até porque eles modificaram parte do projeto Retiro. Ele leva esse nome porque iniciaria nesta comunidade chamada Retiro. Agora, eles estão modificando o projeto para que ele inicie junto com o Estaleiro EBR. Mas ainda não mudaram o EIA-Rima.
O Plano Diretor de São José do Norte foi modificado a partir de um debate feito junto com a população, incluindo uma cláusula que afirma que o município não tem capacidade de suportar uma atividade de megamineração como a que o projeto da RGM (Rio Grande Mineração) pretende implantar. Só um vereador se posicionou a favor do projeto da mineradora. Ele é inviável por várias questões, especialmente ambientais. Uma delas diz respeito à reserva hídrica da comunidade que depende das bacias da região para o abastecimento de água.
Tínhamos esperança de que, com a finalização da licença prévia, poderíamos conseguir eliminar esse risco de instalação da mineradora na região. Eles pararam de atuar durante um período. Em 2019, chegaram a fechar a sede da mineradora. Mas assim que pediram a renovação da licença, retomaram as atividades e reativaram a sede junto ao Estaleiro. Eles contrataram uma equipe de mídia e de pesquisadores para ir nas comunidades e fazer novas perfurações no território, com uso de drones, e conversando com as pessoas perguntando o que elas esperam da mineradora. Fazem perguntas como ‘o que a gente pode melhorar na vida de vocês?’ Neste momento, eles estão fazendo esse trabalho de propaganda dizendo que vão trazer qualidade de vida e empregos para a comunidade. A mineradora convocou uma audiência na cidade para conversar com a população sobre esses temas.
Sul21 - A tradicional operação de marketing e mídia para tentar conquistar corações e mentes…
Sabrina Lima - Isso, tentando conquistar corações e mentes. Só que os corações e mentes da comunidade estão preocupados. São pescadores e pequenos agricultores que entendem as implicações de querer furar vinte metros para extrair minérios. Eles sabem que naquela região 20 metros já vai atingir bacias hidrográficas importantes em um território que fica localizado entre o oceano e uma lagoa. O risco de salinização da água é muito grande e a população compreende isso. A gente achava que esse projeto não iria em frente, mas bateu um medo de se perder essa batalha. Na questão ambiental, ele é totalmente destrutivo e tornaria inviável o atual estilo de vida da comunidade, que envolve a produção de cebola, de arroz e da pesca artesanal. O principal medo deles é o de perder seu território e também o seu modo de vida.
É uma comunidade extremamente apaixonada por aquilo que faz, valoriza muito o seu modo de vida, a agroecologia. e já se posicionou contra esse projeto. Desde o início, eles se posicionaram contra esse projeto por considerá-lo como capaz de promover uma destruição ambiental em uma escala muito alta. A mobilização inicial da comunidade sempre procurou mostrar que há outras possibilidades de desenvolvimento para a região, que envolvem a produção de quantidades imensas de cebola e de arroz.
Melhorando as condições desses modos econômicos locais vai se gerar uma qualidade de vida para a população muito melhor do que a prometida pela mineradora. No ano passado, principalmente no início da pandemia, a gente conseguiu comprar e escoar cebola e abóbora para compor cestas básicas em Porto Alegre, Pelotas, São José do Norte e outras cidades. Conseguimos manter uma rede de solidariedade junto com esses agricultores. Olha a potencialidade disso. Enquanto estávamos no meio de uma crise, a prioridade era alimentar aqueles que estavam passando por maior necessidade
Aí tivemos essa novidade desses últimos decretos do governo federal. O projeto de extração de fosfato em Lavras foi o primeiro que entrou nesta categoria de minerais essenciais para a economia. E São José do Norte também. A nossa mobilização agora é para mostrar os perigos desses decretos para “destravar” os projetos de mineração. O que significa esse “destravamento” nas políticas ambientais? Isso pode se manifestar de várias formas. Os grupos familiares de pesca, por exemplo, não estão sendo considerados pescadores artesanais pela mineradora com a alegação de que eles têm barcos e por isso não seriam artesanais.
Araê Lombardi: Por meio desses decretos, o governo federal criou um grupo de trabalho para definir áreas prioritárias de mineração que seriam de interesse nacional. Aqui no Rio Grande do Sul, entraram os projetos de Lavras do Sul , que envolve principalmente a demanda do agronegócio por fosfato, e o de São José do Norte, associado às demandas das novas tecnologias por minerais especiais.
Sul21 - Como o MAM está se preparando para agir diante dessa ofensiva das mineradoras também aqui no Sul do país?
Sabrina Lima - Neste período da pandemia, nós realizamos ações de solidariedade e de entregas de cestas básicas em bairros periféricos, procurando fazer o que fosse possível para minimizar os impactos da pandemia. Agora, no final do ano, a gente conseguiu aglutinar uma quantidade maior de alimentos e vamos fazer uma espécie de feira, que será uma feira livre, onde tudo será doado. Nesta atividade, estamos convidando a comunidade para conversar sobre a importância da defesa do território, da agricultura e do modo de vida. Estamos entregando cebola e alface da produção local. O arroz a gente ganhou da cooperativa Terra Livre. Temos uma relação muito forte com os movimentos sociais.
Já a mineradora está empenhada em fazer o papel de “boazinha”, enfatizando a parte social e querendo conversar com a população. É uma tentativa, como dissemos, de conquistar corações e mentes para um projeto que a maior parte da população não quer. Eles têm colocado um locutor numa rádio local dizendo coisas como que o problema da economia está nos vereadores que votaram contra a entrada da mineradora, que esses vereadores são contra a economia. Eles divulgam informações e fazem publicidade na rádio. Como a comunidade tem vilas que quase não tem acesso à internet, o rádio é a única possibilidade que essas famílias têm para acessar alguma informação.
Nós queremos agora reinaugurar o processo de mobilização da comunidade que foi interrompido durante a pandemia. E queremos divulgar em uma rádio alternativa as informações contrárias a esse discurso, defendendo que potencializar a economia local é uma alternativa a um Projeto como o da RGM.
Iara Fernandes: O governo federal poderia pensar em políticas para fortalecer o desenvolvimento daquela região, investindo na atual forma de produção e de vida da comunidade. Mas não é isso o que acontece. Esse processo de solidariedade de que a Sabrina falou para abastecer cestas básicas em meio à pandemia foi feito sem nenhum apoio de governos. Ele foi feito totalmente pela solidariedade dos movimentos.
Sul21 - Vocês conheceram de perto o processo de implantação do complexo de mineração em Carajás, no Pará, e acompanharam todos os seus impactos sociais e ambientais ao longo dos últimos anos. Quais as lições que esse processo de Carajás deixa?
Sabrina - O projeto Grande Carajás surgiu, no período da ditadura, por essa mesma linha de decretos que foram lançados agora falando em prioridade nacional. Era um território de um bioma exclusivo que se transformou em uma área de construção de grandes hidrelétricas e de extração de ferro, ouro bauxita e alumínio, entre outros minérios. O que vimos ao longo deste período foi um processo de crescimento muito desigual na região.
O município de Parauapebas, por exemplo, era uma vila de densidade populacional bem pequena. Com a chegada da mineração, ela experimentou um crescimento muito rápido e desordenado. Cresceu cerca de 200% em pouco mais de duas décadas. Uma grande parte da população que trabalhou nas obras de construção civil de implantação dos projetos ficou desempregada depois que as obras foram concluídas. Esses projetos geraram grandes movimentos de migração e uma boa parte dessa população não consegue mais voltar para casa depois.
Hoje, a cidade tem altos índices de violência, que atingem principalmente a população negra, e um alto índice de prosituição. Você vê prostíbulos por toda parte. É uma das áreas mais perigosas do país para a juventude viver. E o custo de vida é muito alto. Tudo gira em torno da Vale e de seus interesses. O rio Parauapebas têm um nível de contaminação por mercúrio muito alto. O que se vê nesta região é um quadro de desordem social e o MAM surge justamente deste contexto, se constituindo a partir das lutas de enfrentamento direto com a mineradora.
Iara Fernandes: A gente fala que somos filhos e filhas da Transmazônica e de todos os impactos desses projetos: prostituição, violência, grandes latifúndios, perseguição aos movimentos sociais, mortes. Hoje, temos uma lista gigante de lideranças de movimentos que foram mortas, presas ou perseguidas. Para se ter uma ideia do que é essa região, somente na área de Marabá há hoje, se não me engano, onze quartéis do Exército, que estão ali para proteger esses grandes projetos econômicos. Quando há alguma mobilização dos movimentos sociais naquela região confrontando algum desses empreendimentos eles vêm com tudo.
O que ocorreu naquela região do Pará – e ainda acontece – não é diferente do que ocorre em outras regiões do País, incluindo aqui o Rio Grande do Sul. As estratégias das grandes empresas são as mesmas, assim como os impactos sociais e ambientais de suas atividades, com explosões de crescimento populacional em um período muito pequeno de tempo que gera uma massa sobrante de pessoas sem trabalho com o passar dos anos. É possível ver isso aqui em Candiota, por exemplo. Com aquela visão idealizada que se tem do Sul, eu imaginei encontrar uma cidade modelo. Fiquei muito chocada com o que vi, num processo muito semelhante ao que vimos no Pará. É uma cidade precarizada em todos os sentidos, após quase sessenta anos de mineração. Um município com menos de 11 mil habitantes e com seis ocupações urbanas, ocupações degradantes, inclusive com casas de papelão. Tem gente que fiz: ah, não, mas aqui vai ser diferente…Não vai ser diferente, não. Candiota está aí, para quem quiser ir lá conhecer.
Araê Lombardi: Outra falácia é a questão dos impostos. As mineradoras sempre chegam nas prefeituras com a promessa da geração de impostos para os municípios. Nós viemos trabalhando para mostrar que não é bem isso o que ocorre. O site do MAM publicou essa semana matéria sobre uma pesquisa que mostra que o Estado do Pará tem uma das cargas tributárias sobre a grande mineração mais baixas do mundo (“Tributação x Mineração: uma conta que não fecha no Pará“). O que a gente vê aqui em São José do Norte e em Lavras é a mesma conversa falaciosa: promessas de geração de emprego e de aumento de arrecadação para o município que acabam não se confirmando com o passar dos anos.
Edição: Sul 21