Boric é resultado da ascensão das causas populares que eclodiram nas manifestações da última década
Desde a vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais de 1971, o Chile ocupa um espaço histórico afetivo imensamente grande na esquerda e para os democratas latino-americanos. O Chile de Allende foi o abrigo seguro para milhares de refugiados políticos da América do Sul, perseguidos pela onda de ditaduras selvagens que se abateram no continente na década de 1970.
O sanguinário golpe de 1973, que derrubou o governo da Frente Popular e assassinou o presidente Allende, interditou aquele asilo fraterno que a tantos salvou. O golpe interrompeu uma iniciativa política que havia se tornado o centro das atenções mundiais. Ali, no Chile espremido entre os Andes e o Oceano Pacífico, se formava uma experiência única na América do Sul, no que dizia respeito a um novo modelo de sociedade e de economia.
A vitória de Gabriel Boric nos reata com esta memória afetiva sobre o Chile e por isso produz um sentimento muito forte de esperança sobre uma grande virada política na América do Sul. Esse otimismo tem por base a associação da vitória eleitoral de Boric, neste 19 de dezembro, às possibilidades concretas da vitória de Lula nas eleições brasileiras de 2022.
Estas duas eleições, em particular, tem uma dimensão dramática, pois se dão em confronto com uma extrema direita em ascensão. Tal e qual Jair Bolsonaro, Jose Antonio Kast, o candidato derrotado, foi a representação das ideias reacionárias que a extrema direita organizou e pautou no último período. Racismo, xenofobia, apologia à ditadura e neoliberalismo radical foram os ingredientes que compuseram a pauta política de Kast.
A vitória de Boric no Chile tem a mesma força política da derrota de Trump nos Estados Unidos em 2020. Não impactam diretamente sobre o eleitorado brasileiro, para falar da próxima decisiva eleição no continente, mas criam um sentido político ascendente para o campo de esquerda e progressista. Este sentido é capaz de incidir grande parte dos alinhamentos das elites políticas e das frações dirigentes do empresariado, assim como as relações internacionais e com isso criar as condições necessárias para uma onda de vitórias de candidaturas progressistas.
O caminho de Boric não será, entretanto, fácil. Os 44% de votos na candidatura abertamente reacionária e simpática à ditadura de Pinochet apontam para um processo de forte confronto. Ainda que, diferentemente da direita brasileira, a direita chilena tenha reconhecido de imediato a legitimidade da vitória de Boric. A mobilização popular foi decisiva para esta vitória. Boric é resultado da ascensão das causas populares que eclodiram nas manifestações da última década, em especial de 2019, e desaguaram na instalação da Convenção Constituinte.
A esquerda constituinte, o governo Boric, a frente ampla e os movimentos populares terão, muito possivelmente, que enfrentar novo confronto político logo nos primeiros meses de 2022. O plebiscito para homologar a nova Constituição chilena está marcado para meados do ano quando o futuro do governo estará em questão.
Muitos serão os desafios de Boric, não somente este. A retomada do emprego, a consolidação do sistema público de saúde, reforma agrária e materialização dos direitos dos povos originários, são pautas que a ascensão dos movimentos populares não deixará cair no esquecimento. A definição da política em relação aos países da América do Sul e a retomada da pauta da integração serão decisivas para a consolidação de um novo governo de esquerda no Chile. Por agora, o importante é que vivemos tempos de reviravoltas no Continente as quais nos renovam a esperança de mandar para o passado, de onde nunca deveriam ter saído, os executores do atraso e da desigualdade.
Força Chile, força Boric! Essa vitória é de todos nós!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko