Rio Grande do Sul

Entrevista

“Pretos de Peleia me obrigou a me reinventar como poeta”, conta Renato de Mattos Motta

Livro lançado em novembro foi o vencedor na categoria Poesia do Prêmio AGES Livro do Ano 2021

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Renato de Mattos Motta lançou recentemente "Pretos de Peleia – Cantos de um Brasil que a História tentou esquecer” - Divulgação

“Gente forte enfrenta a morte

Negro vai mudar a sorte

Luta, sua, sangra, morre

Vermelho na terra corre”

"Cantos que ressoam no ar salgado, materializados em lágrimas e cicatrizes de feridas ainda não esquecidas. Um choro de sofrimento e luta de mulheres e homens negros que sofreram toda a ordem de violência e desrespeito, e que foram invisibilizados na história rio-grandense." Assim, a escritora Lilian Rocha inicia o prefácio do livro “Pretos de Peleia – Cantos de um Brasil que a História tentou esquecer”, de Renato de Mattos Motta.

Vencedor na categoria Poesia do Prêmio AGES Livro do Ano 2021, a obra foi lançada no início de novembro. O autor nasceu e vive em Porto Alegre. É publicitário, poeta, faz xilogravuras, fotografias e histórias-em-quadrinhos, além de já ter trabalhado em teatro. Também conhecido por promover os Saraus Gente de Palavra.

Renato destaca que seus personagens são os pequenos que sobrevivem contra todas as expectativas. “Procuro mostrar a hipocrisia da sociedade escravista que está na raiz da formação socioeconômica do Brasil e desnudar a mentira de um Rio Grande do Sul branco onde teria havido uma “escravidão branda”. Um escravismo que permanece existindo no racismo e no preconceito social que permeia a sociedade brasileira e que se reflete hoje no afloramento fascista do bolsonarismo.”

Como ressalta Lilian Rocha, Pretos de Peleia apresenta General Manuel Padeiro, Marcelina, Alexandre Moçambique, Rosa, Jorge de Ogum... personagens de vida e morte são retratados em suas mazelas e vitórias. “A história mescla a realidade nua e crua desses heróis com a manifestação fantástica de Ogum, o Guerreiro, o Defensor de Demandas.”


A escritora Lilian Rocha é responsável pelo prefácio do livro / Divulgação

Confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato RS- “Pretos de Peleia - Cantos de um Brasil que a História tentou esquecer" resgata com poemas a vida de homens e mulheres escravizados no Brasil. Como foi realizar essa pesquisa?

Renato de Mattos Motta - Na verdade, eu não parti da premissa de uma pesquisa histórica tradicional – que geralmente vai atrás dos grandes fatos e figuras em posições de decisão – minha ideia a princípio foi a de escrever um poema narrativo ficcional focado no dia a dia dos pequenos, dos menores de todos, aqueles que foram escravizados, engambelados com a promessa de uma liberdade que nunca veio e, finalmente, entregues ao sacrifício nas mãos imperiais como preço do dito “Tratado de Ponche Verde”, na verdade uma rendição. A criação deste poema começou pelo segundo canto, mais especificamente pelo segundo poema do segundo canto. À medida que pesquisava me voltou à memória a notícia do Quilombo de Manuel Padeiro, um grupo de negros que aterrorizou a região de Pelotas pouco antes do começo da revolta farroupilha.

BdFRS - Quem foi o major Teixeira Nunes? E Mariano de Matos? Quem foram os Lanceiros Negros? Essas vidas recheiam as páginas do teu livro, vencedor na categoria Poesia do Prêmio AGES Livro do Ano 2021. O que essas histórias nos dizem no Brasil de hoje?

Renato - Teixeira Nunes, também chamado Gavião, foi o oficial que comandava os Lanceiros Negros. Gaúcho de Canguçu (casualmente a terra onde nasceu meu pai e meus quatro avós), é descrito como um homem de muitas qualidades e de grande liderança. Sua morte se dá apenas 12 dias após o massacre de Porongos, de onde conseguira escapar, nas margens do arroio Chasqueiro no que seria a última batalha farroupilha. Surpreendidos por forças muito superiores, foram massacrados. Este é o único oficial que incluí na narrativa como herói.

Meus personagens são os pequenos que sobrevivem contra todas as expectativas. Procuro mostrar a hipocrisia da sociedade escravista que está na raiz da formação socioeconômica do Brasil e desnudar a mentira de um Rio Grande do Sul branco onde teria havido uma “escravidão branda”. Um escravismo que permanece existindo no racismo e no preconceito social que permeia a sociedade brasileira e que se reflete hoje no afloramento fascista do bolsonarismo.

A sociedade escravista é uma sociedade construída sobre ódio e violência profundos. Quando uma pessoa era escravizada, ela não só era marcada, mas era presa a um tronco onde era surrada diversas vezes ao dia

José Mariano de Matos foi um engenheiro, militar e maçom carioca que participou da revolta farroupilha desde o princípio, sendo que, após o fim do conflito, durante a Guerra do Prata, tornou-se ajudante-geral do Duque de Caxias. Entre os comandantes farrapos foi o que atingiu maior patente militar, tendo sido General e ministro do Supremo Conselho Militar.

Na orelha do livro Pretos de Peleia, Sidnei Schneider cita que estes e outros líderes eram conhecidos na época por serem mulatos. É importante ver como a sociedade escravista criava diversas camadas entre o escravo e o cidadão onde o que estava acima tinha o direito de humilhar os que se encontravam abaixo na pirâmide social. Havia os escravos africanos, usados para o trabalho mais pesado, depois os chamados escravos “ladinos”, geralmente nascidos em cativeiro e com habilidades aprendidas e os chamados “escravos de ganho” que prestavam serviços a terceiros ou realizavam vendas de artesanato ou culinária que produziam, dando a maior parte da renda ao seu senhor. Aí havia os libertos, os (nascidos) livres, e as várias camadas da sociedade onde para ser considerado “cidadão” não bastava ser branco, era necessário ter uma certa renda.

A sociedade escravista é uma sociedade construída sobre ódio e violência profundos. Quando uma pessoa era escravizada, ela não só era marcada, mas era presa a um tronco onde era surrada diversas vezes ao dia. Isso antes de ser mandada fazer qualquer coisa, grande parte das vezes antes mesmo de ser capaz de entender a língua do opressor. O branco opressor sabia que precisava manter seus escravos sob constante ameaça e impossibilitados de se armarem.

O escravo odeia o senhor que o explora e o senhor odeia o escravo do qual necessita para produzir, mas que o ameaça com a perspectiva de uma revolta. Quilombos e fugas eram impiedosamente castigados. Esta é a raiz da sociedade brasileira atual. O racismo é criado pelo capitalismo nascente, ainda na forma de mercantilismo, como uma justificativa para a escravatura e se perpetua como meio de estratificação social.

BdFRS - Você dividiu o livro em dois cantos, o primeiro traz o General Manuel Padeiro e o segundo Farrapo Preto – Jorge de Ogum, lanceiro negro. O que te levou a essa forma de narrativa?

Renato - Para te responder, vou ter que falar do processo de criação de Pretos de Peleia, que começou como “Farrapo Preto”. Eu havia feito a revisão do livro “Cavalo de Santo” da Miriam Fichtner, que trata sobre as religiões afro-gaúchas, principalmente o Batuque ou Nação. E estava lendo uma matéria sobre os lanceiros negros e me veio uma imagem à cabeça, um lanceiro negro enfrentando a M’boi Tatá e sobrepondo essa imagem à de um Ogum sincretizado com São Jorge, também lanceiro, matando um dragão.

Claro que este lanceiro teria que ter um nome português, que só poderia ser Jorge. Inicialmente pensei que Jorge iria morrer em Porongos, mas uma história que está sendo escrita adquire vida própria e Jorge se recusou a morrer, precisou encontrar remanescentes do Quilombo de Manuel Padeiro. Então precisei voltar dez anos na história. Estava no final da Guerra dos Farrapos e voltei para um ano antes do conflito começar.

À medida que a História ia me dando subsídios para montar uma narrativa desses pretos de peleia, ela foi se construindo, me exigindo recursos que não costumava usar, me exigindo que cada vez mais eu exercesse a própria essência do fazer poético. O termo grego poiesis – que dá origem às palavras poesia e poeta – é geralmente traduzido como “fazer”, mas este não é um simples fazer, senão que um “fazer inventando”. E realmente Pretos de Peleia me obrigou a me reinventar como poeta.


Pretos de Peleia resgata com poemas a vida de homens e mulheres escravizados no Brasil / Divulgação

BdFRS - A escritora Lilian Rocha diz no prefácio que Pretos de Peleia é um livro que não acaba em seu ponto final, é um catalizador poético de uma história que deve ser revisitada em seu contexto original. Muitos livros de autores/as negros e negras têm ganho visibilidade. Na tua opinião o que é preciso para irmos mais fundo nessa história?

Renato - Acho que meu livro vem sim como uma contribuição no sentido de desmontar as narrativas falsas de um Rio Grande do Sul branco onde teria havido pouca escravidão e uma escravidão branda, ligada à vida campeira. Como se explica que “o estado mais branco do Brasil” seja o segundo estado do Brasil com maior número de terreiros registrados, perdendo só para a Bahia?

O Batuque ou Nação, que é a religião afro-brasileira nascida aqui, tem diferenças com o Candomblé da Bahia, mas é tão sério e respeitável quanto este. Então é preciso ir mais fundo na História. Descobrir esses negros que foram ocultados de nós pelo preconceito social e invisibilizados pela historiografia dominante.

Como se explica que “o estado mais branco do Brasil” seja o segundo estado do Brasil com maior número de terreiros registrados, perdendo só para a Bahia?

Os livros de autores negros como Lilian Rocha, Fátima Farias, Ana dos Santos, Taiasmin Ohnmacht, Ronald Augusto, Jeferson Tenório, Delma Gonçalves, Eliane Marques, José Falero, Jorge Fróes e o já clássico e inesquecível Oliveira Silveira trazem um testemunho de carne e sangue. Cada um desses nomes reverbera uma verdade interior, uma ancestralidade que ressoa na alma e nos permite entender melhor esta sociedade de diferenças.

BdFRS - "Ao adotar, em boa parte, o verso de sete sílabas como João Cabral, em Morte e Vida Severina, Renato não o reproduz simplesmente, mas renova", escreveu na orelha Sidnei Schneider. Nos conta como foi essa construção.

Renato - A redondilha maior ou verso de sete sílabas não foi escolhida por acaso por João Cabral em Morte e Vida Severina nem por Bandeira no Pasárgada. Este verso é um clássico entre os clássicos; seguramente a métrica mais popular pelo menos do Português falado no Brasil: Ciranda, Cirandinha, Batatinha quando nasce... grande parte das parlendas estão nessa métrica, então, acaba sendo como o próprio fôlego da fala brasileira. Fica bom de ouvir e de memorizar. A ideia é criar algo popular sem cair no óbvio.

O aspecto técnico da escrita permite o reconhecimento, mas o trabalho de diferentes sonoridades, buscando uma musicalidade menos óbvia procura adequar a forma da obra ao seu conteúdo. Busco uma forma que trabalhe junto com a narrativa na construção de uma experiência do texto que transcenda a simples sucessão de fatos e desperte uma cumplicidade do leitor. Claro, é um ideal difícil de atingir, mas se eu chegar perto disso, estou satisfeito.

BdFRS - Onde é possível adquirir Pretos de Peleia?

Renato - A Livraria Cirkula, de Porto Alegre vende inclusive pelo site. Também nas livrarias Bamboletras e Calle Corrientes, além do tradicional livreiro ambulante Bolívar Gomes de Almeida. Aceito também pedidos através do Messenger do Facebook no meu perfil pessoal.


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Edição: Ayrton Centeno