“O Brasil ocupa quarto lugar no ranking dos países que mais matam defensores e defensoras de direitos humanos, atrás apenas de Colômbia, México e Filipinas. A situação fica ainda mais dramática quando se usa por base a série histórica da Organização das Nações Unidas (ONU): entre 2015 e 2019 foram 1.323 vítimas, das quais 174 no país, o que leva o Brasil ao segundo lugar na lista de países mais perigosos para defensores dos direitos humanos”, aponta o relatório “Começo do Fim?, lançado dia 9 de dezembro, Dia Internacional das Pessoas Defensoras de Direitos Humanos, pela Terra de Direitos e Justiça Global.
De acordo com o documento, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) enfrenta uma grave crise que põe em risco ativistas em todo o Brasil. “Com baixa execução orçamentária, falta de participação social e transparência, baixa institucionalização, Insegurança política na gestão: demora, ineficácia e inadequação das medidas protetivas, dentre outros problemas estruturantes”, aponta a advogada popular Luciana Pivato, coordenadora do Programa Nacional Direitos e Políticas/Terra de Direitos, organização que integra o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
Segundo o relatório, em 2021, apenas nove programas estaduais estão totalmente implementados: Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Mato Grosso. Outros dois programas estaduais estão em fase de implementação, no Amazonas e no Rio Grande do Sul, e dois programas regionais estão sendo implantados, em Rondônia e Mato Grosso do Sul.
Em novembro deste ano, o Comitê lançou um nota técnica criticando a postura do governo federal que através do Decreto 10.815 alterou regras de funcionamento do Programa de Proteção aos Defensores, sem qualquer diálogo com movimentos e organizações populares. Conforme ressalta o comitê há desmonte sistemático por parte do governo federal dos conselhos e comitês, seja pela extinção ou pela inviabilização do cumprimento de seu papel pela retirada do controle social.
Corpos “invisíveis”
Entre as pessoas mais afetadas no Brasil quando falamos em direitos humanos, sobressai a questão de gênero e raça, que tem seus corpos e vidas atravessadas pela violência. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 76% das vítimas letal no Brasil, em 2020, são negras, 61,8% das vítimas de feminicídios são mulheres negras, além de crianças e jovens negros morrem mais do que jovens brancos.
Violência que atravessa corpos indígenas, que em 10 anos o percentual de assassinados no Brasil saltou 22%. Violência embalada pelos conflitos de campo.
O direito à terra, um dos principais direitos do ser humano, se vê cada vez mais ameaçado por conta desse conflito. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), houve, em 2019, 1.833 conflitos no campo, o que representa o índice mais alto dos últimos cinco anos. O número de pessoas envolvidas aumentou 23% em relação a 2018, tendo alcançado 144.742 famílias. 1.254 ocorrências foram constatadas, 12% a mais que em 2018.
Violência que também atravessa corpos políticos. De acordo com a Terra de Direitos e Justiça Global, assassinatos e atentados contra candidatos aumentaram quase 200% durante período eleitoral.
"A precarização das condições de vida do povo, decorrente da omissão do governo federal frente a crise política e sanitária, somada ao esvaziamento dos espaços de participação e controle social, ao desmonte das estruturas de Estado e das políticas públicas sociais, ao aumento das ações de ódio e de violência contra toda forma de luta política, tornam o período extremamente desafiador para organizações e movimentos populares”, afirma Luciana.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a integrante do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares fala sobre o cenário atual que envolve àquelas pessoas que defendem os direitos humanos no país.
Abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - Recentemente o governo federal alterou o decreto do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), sem diálogo com a sociedade, o que isso significa, que impacto isso traz?
Luciana Pivato - O Programa de Proteção passa por seu pior momento. A Terra de Direitos e a Justiça Global lançaram no último dia 9, dia que se comemora a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos), o relatório “Começo do Fim?”, documento preliminar da pesquisa que as organizações estão desenvolvendo sobre o PPDDH.
O relatório aponta que o PPDDH enfrenta uma grave crise, com baixa execução orçamentária, falta de participação social e transparência, baixa institucionalização, insegurança política na gestão, demora, ineficácia e inadequação das medidas protetivas, dentre outros problemas estruturantes. Nesse ambiente, as organizações que integram o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, rede que desde sua origem incide pelo aperfeiçoamento da política de proteção, foram surpreendidas com a edição do Decreto 10.815/2021.
A primeira crítica é justamente sobre a forma em que a nova norma foi construída. Apesar de modificar o funcionamento de um programa que tem dentre seus principais objetivos a proteção para defensores de direitos humanos, o governo deixou de promover a escuta de organizações populares e dos próprios destinatários do PPDDH. Com isso, as mudanças realizadas não são adequadas ou suficientes para enfrentar os problemas estruturais do programa.
De acordo com a Nota Técnica elaborada pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, documento enviado à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal e Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a principal alteração se deu na composição do Conselho Deliberativo do Programa, que passou a contar com representações da sociedade civil ligadas ao tema de direitos humanos.
Mas como apontado na nota técnica, “a participação da sociedade não é paritária. O governo federal ocupa seis vagas no conselho, enquanto a sociedade civil corresponde a pouco mais de 33% da composição da instância, com três vagas. O Decreto, para além de ser insuficiente para garantir a necessária participação dos entes interessados, também não define de forma nítida como se dará a escolha das organizações da sociedade civil e quanto ao tempo de mandato”.
A ausência ou inadequada participação social impede que organizações que atuam historicamente na agenda das/os defensoras/es de direitos humanos possam acompanhar o desenvolvimento do programa, opinem sobre questões estruturais como a destinação de recursos, a inclusão de pessoas e a definição de medidas protetivas.
BdFRS - O Brasil é o país das Américas onde mais se matam defensores dos direitos humanos, segundo um relatório da Anistia Internacional divulgado em fevereiro de 2018. Como é lutar pelos direitos humanos quando, todos os dias, centenas ou milhares de emissoras de rádio e TV, mantém programas que pingam sangue, criminalizando os pobres e pregando a pena de morte?
Luciana - Vivemos um período de legitimação da violência contra as pessoas que defendem direitos humanos. Os frequentes discursos de autoridades públicas com ataques a movimentos populares disseminam na sociedade um sentimento de autorização para ações de ódio, racismo e violência contra aquelas e aqueles que seguem na defesa da democracia. Tudo que acompanhamos sobre a flexibilização das regras para porte de armas e sobre o incentivo ao uso de armas afeta, direta ou indiretamente, a segurança de defensoras/es de direitos humanos.
Quando veículos de comunicação apontam saídas unicamente policialescas como forma de conter a criminalidade ou pior ainda, propagam a ideia de que defensores de direitos humanos são defensores de bandidos, não só desprezam a importância da luta por direitos para a democracia, como despolitizam o debate sobre segurança pública, agudizando a seletividade do sistema de justiça.
BdFRS - No dia 10 de dezembro foram celebrados os 73 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos. Pensando nessa questão, como tu vês o atual cenário da defesa dos direitos humanos?
Luciana - Como mencionei na pergunta anterior, vivemos um momento histórico absolutamente hostil a todas as pessoas que resistem na luta em defesa dos direitos humanos. No último dia 9, Dia Internacional das Pessoas Defensoras de Direitos Humanos, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos realizou importante atividade sobre o contexto de criminalização, violência e impunidade das violações contra DDH.
A crise na política de proteção tem causado crescimento de demandas de proteção para a sociedade civil. O Comitê, por exemplo, além de seguir na sua estratégia de incidência, formação e produção de dados sobre a realidade das/os defensoras no Brasil, realizou 21 apoios urgentes pelo fundo emergencial do CBDDH. Dos 21 apoios, 14 foram em áreas rurais e 7 em áreas urbanas. Os apoios foram para situações em que as/os defensoras precisam de suporte de saúde (cuidado em decorrência da atuação na defesa dos direitos humanos), assessoria jurídica, instalação de equipamentos de segurança, deslocamentos, articulação e retirada ou manutenção de retirada temporária do local de atuação.
É como se a proteção, mais que nunca, estivesse a cargo das próprias organizações e movimentos. Foi nessa direção que também passamos a investir mais fortemente na formação sobre o tema da proteção e, no evento, lançamos o curso online de proteção integral do CBDDH, com sete módulos que reúnem expertises diversas das organizações do Comitê como análise de risco, proteção jurídica, segurança da informação, autocuidado e uso de mecanismos internacionais de direitos humanos.
Quando veículos de comunicação apontam saídas unicamente policialescas como forma de conter a criminalidade ou pior ainda, propagam a ideia de que defensores de direitos humanos são defensores de bandidos, não só desprezam a importância da luta por direitos para a democracia, como despolitizam o debate sobre segurança pública, agudizando a seletividade do sistema de justiça.
BdFRS - O que ainda falta para que sejam efetivamente respeitados esses direitos? Como garantir esses direitos?
Luciana - Essa é uma pergunta bastante complexa. Acho que falta principalmente compromisso político com as reais necessidades do nosso povo. Precisa distribuir as riquezas deste país. Precisa um compromisso de todos no enfrentamento do racismo e da desigualdade de gênero. É urgente garantir os direitos dos povos do campo, das águas, das florestas. Sobre isso vale destacar que a grande maioria dos casos atendidos pelo PPDDH são pessoas que lutam pela terra, que defendem o meio ambiente, são indígenas e quilombolas. É imprescindível enfrentar todas as formas de violência contra as legítimas reivindicações dos movimentos populares, pois nenhum direito nunca foi dado, todo direito humano foi conquistado pela luta popular.
BDFRS - Quem são os defensores brasileiros?
Luciana - Vou responder essa questão tendo como base o relatório Vidas em Luta. A concepção de “defensores/as de direitos humanos” adotada pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos está baseada na resolução da ONU que a compreende como “pessoas físicas que atuam isoladamente, pessoa jurídica, grupo, organização ou movimento social que atue ou tenha como finalidade a promoção ou defesa dos direitos humanos”.
O comitê compartilha da seguinte concepção de quem são defensoras e defensores de direitos humanos (DDHs): todos os indivíduos, grupos, organizações, povos e movimentos sociais que atuam na luta pela eliminação efetiva de todas as violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivíduos. Inclui quem busca a conquista de novos direitos individuais, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram forma jurídica ou definição conceitual específica.
São contempladas ainda as pessoas e coletivos que resistem politicamente aos modelos de organização do capital, do racismo, do patriarcado e do machismo, às estratégias de deslegitimação e criminalização praticadas pelo Estado, articuladas com atores privados, e à ausência de reconhecimento social de suas demandas e identidades.
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Edição: Katia Marko