No dia 13 de Julho de 2020 realizamos uma entrevista com o sociólogo e politólogo argentino Atilio Boron. O trágico pano de fundo daquele período era o crescente número de mortos devido à pandemia da covid-19. Um ano antes, Boron havia lançado o livro “El hechicero de la tribu”, uma obra dedicada a radiografar a trajetória e o giro político e intelectual do escritor peruano Mario Vargas Llosa — da proximidade com o marxismo, na década 1960, ao liberalismo contemporâneo de um personagem que ostenta não apenas o Nobel de Literatura, mas o título de Marquês sob a Coroa Espanhola.
Para além da radiografia, é uma resposta dura ao livro “La llamada de la tribu”, de 2018, onde Llosa, a partir de uma autobiografia intelectual, faz uma defesa de seus pensadores liberais preferidos. Nos dedicamos à leitura e exploração da polêmica, discutindo o conteúdo e as referências de cada capítulo, processo que gerou uma resenha. A partir de tal esforço, emergiram lacunas que nos exigiram um diálogo com o autor.
Nesse sentido, a entrevista caminhou por temas como o da relação de Vargas Llosa com o neoliberalismo, seu ideário, suas influências e a propaganda na América Latina; chegando, também, ao debate sobre o papel das Ciências Sociais e das Humanidades na atual conjuntura. Temas que expressam as urgências nas discussões sobre os rumos das diversas lutas populares no subcontinente.
Atilio Boron conseguiu não apenas analisá-las em suas respostas, como também levantou novas questões, promoveu reflexões e apontou perspectivas, dentro das quais podemos repensar o papel do pensamento crítico na América Latina.
A seguir, confira um trecho da entrevista:
Como avalia a chegada de seu livro, “El Hechicero de la Tribu” (2019), em português, e como visualiza a influência ideológica de Mario Vargas Llosa no Brasil?
Esta é uma resposta difícil de dar, pois eu não estou no Brasil. Acompanho a imprensa brasileira, vejo que os artigos dele são bastante publicados por aí. É muito divulgado. Não poderia dizer com muita precisão o quanto de impacto exerce. Mas vejo que é um personagem que foi muito bem recebido no Brasil, que suas ideias circularam muito, na direita neoliberal dura. Vargas Llosa avança nessa direção.
Imagino que, por exemplo, Paulo Guedes seja alguém que, seguramente, esteja a par do que escreve Llosa. Deve sentir-se muito apoiado pela campanha dura de Llosa contra aqueles que estão lutando contra os estragos e os desastres que produziu o neoliberalismo em todo o mundo.
Suponho que tenha uma influência grande, ainda que esta seja maior no mundo de fala espanhola, já que não se faz necessária a tradução. Debater com suas ideias é um imperativo no momento atual. Por isso, estou muito contente com a publicação de meu livro em seu país.
É de conhecimento público que Vargas Llosa, de maneira mais ou menos ativa, tem mostrado um compromisso político desde sua juventude. Pertence a uma geração de escritores latino-americanos que foram contemporâneos à efervescência da Revolução Cubana (1959), às lutas anti-coloniais em África e a muitos outros eventos vinculados a movimentos emancipatórios. Como classifica, ou diferencia a inflexão política de Llosa frente a outros intelectuais que se afastaram da esquerda no mesmo período?
É um erro pensar que foi o único que se afastou da esquerda. Há muita gente que se foi que se desiludiu. São poucos os que passaram a exercer uma influência como a que tem exercido Llosa, durante, eu diria que uns 40 anos. E isso não é um dado menor. Como muitos no Brasil, e também na Argentina, que tiveram o mesmo percurso.
Para não ir muito longe, José Serra era um intelectual da esquerda marxista dura, foi meu professor na França. Dava aula de Teoria Econômica, e o que passava era O Capital. Se você perguntasse a ele se não iria ensinar algo mais, ele qualificaria tudo que não fosse O Capital como uma merda burguesa que se negaria a lecionar. Fui aluno dele e digo isso de maneira responsável. Depois ele foi se afastando, é claro.
Mas Serra nunca exerceu uma influência cultural, de caráter mundial, como é o caso de Vargas Llosa. Na Argentina houve muitos escritores, intelectuais que começaram pela esquerda e terminaram no neoliberalismo ou, no melhor dos casos, em uma social-democracia light, meio descafeinada; no Chile alguns dos mais importantes neoliberais contemporâneos escreveram um livro duro sobre seu trânsito do Partido Comunista e do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) ao neoliberalismo. O fizeram orgulhosamente. Jorge Luis Sigal, na Argentina, um homem que era militante do Partido Comunista, passa para o outro lado e agora é um anticomunista ferrenho.
Na Europa e nos Estados Unidos isso também aconteceu. Nos EUA, entre as décadas de 1930 e 1940, muita gente passou da esquerda à direita. Daniel Bell, por exemplo, que foi um grande sociólogo, estava militando na esquerda na década de 1930 e, depois, escreveu o famoso O fim da ideologia (1960). Régis Debray, um de nós, passou pelo cárcere na Bolívia, foi torturado, maltratado durante anos e, bom, não virou um neoliberal, mas, claramente, abandonou as ideias fundamentais da esquerda. Nenhum dos citados obteve a projeção mundial de Vargas Llosa. Primeiro porque, em língua espanhola, é um grande escritor; minha crítica não é ao Vargas Llosa escritor, me encantaria escrever como ele, mas... colocou suas ideias a serviço do pior!
Vou lhes dizer uma coisa: não o fez por dinheiro, muitos fazem uma crítica personificada, o acusam de ter se vendido assim. Não foi isso. Vargas Llosa começa a ter problema e critica a Revolução Cubana entre 1967 e 1968. A partir de um famoso caso de um escritor inexpressivo, trazido à luz pública com uma grande propaganda. Há que se levar em conta que a CIA e outros organismos ingerencistas norte-americanos estão permanentemente trabalhando em cima dos intelectuais. Hoje mesmo, na Argentina ou no Brasil, estão trabalhando ativamente para captar intelectuais, sobretudo os de esquerda. Não se incomodam com os da direita, por que já os têm. O prêmio maior, a cabeça que eles querem mostrar, é a de um intelectual de esquerda. O apóstata, aquele que era da esquerda e se foi para a direita.
Vargas Llosa, até meados de 1971, fazia uma ardorosa defesa da Revolução Cubana. Faz uma defesa que eu escreveria hoje. O que aconteceu depois? Acredito que houve um período de uma certa decepção. Vargas Llosa é um homem tremendamente egocêntrico, de um egocentrismo fenomenal. Não sou um crítico literário, mas digo isso como uma hipótese, é o único autor que conheço que escreveu três livros autobiográficos. Tia Julia e o escrevinhador (1977) é uma grande novela, muito linda, muito agradável, sobre a história de paixão com sua tia; Peixe na água (1993), onde também fala de sua situação pessoal, sua vida política, é um livro centrado nele. É um grande escritor, que frequentemente escreve sobre si mesmo. O mais recente e mais importante é o Chamado da Tribo, que origina minha resposta. Neste já há um voo teórico importante, afinal, trata-se de um homem muito culto, de muita leitura. Relata como foi sua conversão ao neoliberalismo.
As Ciências Sociais no Brasil e na América Latina vivem outra experiência de ataques, provenientes de grupos conservadores e movimentos reacionários. O atual governo brasileiro, por exemplo, tem eliminado uma parte considerável dos recursos políticos e financeiros das instituições federais de pesquisa e ensino. Esta medida tem afetado, principalmente, o campo das Humanidades. Neste momento, ressurge um velho debate sobre o papel do intelectual, especialmente na relação entre as Ciências Sociais e a sociedade em geral. Este, de fato, foi um dos pontos abordados em algumas partes de seu livro. Diante desse cenário, como enxerga o papel dos intelectuais e das Ciências Sociais na América Latina?
Vejo com uma certa preocupação, pois, desgraçadamente, em toda a América Latina, as Ciências Sociais têm sido muito influenciadas pelo pensamento majoritário nos Estados Unidos. A maioria dos que estão envolvidos com o ensino e a pesquisa nas Ciências Sociais o fazem sob os paradigmas, os modelos e o estilo de trabalho praticado nos EUA. Neste não há espaço para um pensamento crítico, há um pensamento muito convencional, que não reflete a complexidade, os desafios e a realidade histórica latino-americana. São, portanto, Ciências Sociais de escasso valor, não servem para um projeto emancipatório. Acredito que a América Latina, com seus cientistas sociais e demais intelectuais, precisa posicionar-se de maneira crítica frente à recepção de todas essas teorias e métodos de pesquisa que vêm dos Estados Unidos. Fundamentalmente incapazes de serem adaptados às nossas circunstâncias, de serem incluídos em nossas agenda de pesquisa.
Em geral, falo aqui da Ciência Política e da Sociologia, as abordagens temáticas são as mesmas dos EUA, um país com realidade distinta da nossa. Isso tem ligação com o processo de estruturação imposto às nossas universidades nos últimos 40, 50 anos. Submetidas a um ataque permanente por parte da direita, através de instituições como o Banco Mundial. A UNESCO, por exemplo, que anos atrás já tinha entrado em crise nos anos 1980, com a saída de EUA e Reino Unido, voltou a ser debilitada, com novo afastamento estadunidense, para que não aceitem a Palestina como Estado.
A ortodoxia, em termos do que vem a ser um projeto universitário, vem do Banco Mundial. Este dispunha, até antes dos anos 1980, de um departamento dedicado à questão das universidades. De lá saíram diretrizes a serem seguidas pelas universidades latino-americanas no que toca a responder aos problemas da pobreza, do estancamento econômico etc. E a resposta a ser dada era muito clara: privatização das universidades, cobrança de tarifas, a implantação de um modelo de trabalho em Ciências Sociais que desalenta o pensamento crítico... Já estamos acostumados, por exemplo, quando queremos publicar algo, à política editorial das revistas. Seja no Brasil, na Argentina, no Chile ou na Colômbia, há uma equipe editorial que decide se seu escrito é científico ou não, ou ainda se este não passa de uma loucura. Dessa maneira se estabelece um elemento de censura ideológica muito forte, onde só pode ser publicado aquilo que é aceitável pelo saber dominante.
Como o saber dominante é quem tem o dinheiro, quem permite a concessão de bolsas e subsídios para pesquisa, os acadêmicos se vêem obrigados a, de alguma maneira, trabalhar sob os marcos teóricos provenientes dos Estados Unidos. Dentro das prioridades definidas lá, não das prioridades que surgem das lutas de nosso povo. E isso leva às Ciências Sociais o caráter neocolonial. Por isso, uma das nossas tarefas mais importantes é a descolonização das Ciências Sociais, algo urgente, imprescindível, que não vem sendo encarado com a seriedade que merece. Me parece que é preciso dar uma grande batalha nesse sentido. A universidade é fundamental. Desgraçadamente, não temos a universidade sonhada por Darcy Ribeiro nos anos 1960. Darcy, que foi um grande intelectual, defendia a universidade brasileira como a grande consciência crítica da sociedade.
Com o passar do tempo, as universidades se converteram em meras reprodutoras da ideologia dominante, desgraçadamente. Sabemos que, em cada universidade brasileira, existem pequenos grupos que procuram fazer algo diferente, distanciar-se do modelo hegemônico, trabalhar com outros modelos teóricos buscando fontes de pensamento crítico no marxismo, em diferentes ramos do ecologismo e do feminismo radical, tentam elaborar hipóteses, esquemas e interpretações da realidade brasileira a partir de novos caminhos. No entanto, são setores minoritários, por isso a necessidade de criar uma grande batalha de ideias na universidade, lugar onde o neoliberalismo avançou de maneira extraordinária. Penso que se trata de uma grande tarefa pendente em nosso tempo.
Este é um trecho da entrevista. Para ler a versão completa, clique aqui e acesse o site da Revista Inter-Legere da Pós Graduação em Ciência Sociais da UFRN.
Edição: Marcelo Ferreira