Podemos esperar muita obstrução no STF à restauração democrática que se anuncia com Lula
Democracia e sistema democrático não são sinônimos. Democracia é um termo com vários conceitos e significados distintos. Em sentido amplo podemos relacionar democracia à uma ideia substantiva de partição de poder. Modernamente também à ideia de participação e, fruto da luta e dos avanços dos trabalhadores e movimentos sociais, de direitos fundamentais, individuais e coletivos. Um certo avanço da lógica da igualdade, como disse Robert Dahl[1], insuspeito clássico da ciência política.
Ainda nas palavras de Dahl “nada proporcione confusão maior do que o simples fato de democracia referir-se ao mesmo tempo a um ideal e a uma realidade”. Tomemos por realidade a forma concreta com que o regime estabelece o funcionamento da hegemonia política. O sistema político democrático, neste sentido, diz respeito à “realidade”, ou seja, à forma objetiva que um regime político assume consagrando ao menos alguns procedimentos democráticos. Tal sistema, tanto pode se referir a um regime político de escolha ampla de governo por sufrágio universal, por exemplo, quanto pode se referir a um regime político oligárquico onde uma fração da sociedade apenas escolhe seu governo excluindo a maioria da população por renda, raça, gênero, ou por escolaridade ou ainda por confissão religiosa.
É essencial para o bloco hegemônico o controle do sistema político. Daí deriva a ideia da democracia organizada pelo sistema legal, democracia como norma. E uma das ideias essenciais para o pensamento liberal é a do controle sobre o governo. Neste campo que se situa o modelo de poderes independentes que funcionam como contrapontos uma ao outro. A democracia é objetivada de múltiplas formas, em diferentes sistemas, depende da correlação de forças entre as classes sociais. O sistema político que se organiza a partir do axioma dos três poderes é, portanto, um modelo concreto aplicado à realidade e não uma ideia universal de democracia.
As razões, confessadas e não confessadas, da nomeação de André Mendonça ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal são expressões da crise do sistema político como se desenhou na Constituição Brasileira de 1988. O sistema de autocontrole pelos três poderes - ou pesos e contrapesos no vocabulário da disciplina do direito - já havia expressado sua disfunção no episódio do impeachment da presidenta Dilma associado ao da “Operação Lava Jato”. Naqueles episódios o poder não eleito, controlado diretamente pela fração dominante, interferiu no processo democrático. Fez isso ao corroborar com a deposição de um governo eleito e eliminar da disputa o candidato favorito à eleição. Com isto, o sistema de justiça diminuiu o poder decisório da massa de trabalhadores sobre o governo.
As razões confessadas para a indicação de André Mendonça ao STF, apontam para uma investida contra o que seriam os “excessos’ da democracia: os direitos civis e sociais que, através do sistema democrático, as grandes maiorias foram conquistando. É explícito que o novo ministro será um guardião e feitor da sociedade tradicional e seu papel planejado é defender os valores da sociedade hierárquica. Os conceitos de família, casamento, pluralidade de expressão cultural, Estado laico, liberdade religiosa e de opinião estarão sob fogo com a bancada reacionária no STF, que receberá o reforço de peso aprovado pelo Senado Federal nesta última semana.
Mas há as razões não confessadas, aquelas que nos permitimos inferir e deduzir, mas não são anunciadas pelos protagonistas do infeliz evento. Elas são a ampliação da aliança reacionária e neoliberal também no STF. Os setores conservadores preparam-se para, na eventualidade muito material da vitória da candidatura de Lula à presidência, garantir que os pilares macroeconômicos do neoliberalismo, que foram colocados em prática pelos governos Temer e Bolsonaro, não sejam molestadas pelo eventual governo de centro-esquerda de Lula. O STF está sendo montado para se colocar como a “trincheira” institucional de resistência a eventuais investidas em favor de programas de aumento de investimentos públicos, em políticas sociais e econômicas distributivistas, em políticas soberanas nas relações internacionais. Podemos esperar muita obstrução no STF à restauração democrática que se anuncia com Lula.
As duas tipologias de razões para a nomeação de Mendonça ao STF dão conta de um paradoxo produzido pelo domínio de classe e pela hegemonia política neoliberal. O sistema democrático se torna o instrumento institucional e normativo para dilapidar e diminuir a democracia. Podemos, inclusive, cogitar que no capitalismo e sob a hegemonia neoliberal quanto mais avance a democracia mais o sistema democrático opere para contê-la. Essa é a crise real que o mundo e o país atravessam.
[1] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko