As políticas públicas para o enfrentamento ao HIV e Aids têm negligenciado de forma importante as questões relacionadas às desigualdades de gênero e seus impactos no cenário da epidemia. Ao longo dos anos, estamos assistindo à desconexão da agenda proposta pelo governo federal com as questões relacionadas às garantias dos direitos humanos e em especial, os direitos humanos das mulheres e o enfrentamento às violências de gênero.
No último ano, com o advento da pandemia de covid-19, ficaram mais evidentes a importância de compreendermos o impacto das desigualdades de gênero, de raça/cor, econômicas e sociais no processo de adoecimento e/ou risco dos sujeitos.
A epidemia de Aids e a tuberculose, há muito já nos apontavam o quanto as epidemias não são democrática e atingem, de forma desigual, grupos historicamente excluídos e minorias, entre elas, as mulheres. A pandemia de covid-19 tem exposto de forma singular esta situação.
Segundo o Conselho Nacional de Saúde, as mulheres estão entre as mais afetadas. Isso porque elas são as mais expostas ao risco de contaminação e às vulnerabilidades sociais como desemprego, violência, falta de acesso aos serviços de saúde e aumento da pobreza.
Nesta seara observamos um recrudescimento da violência contra as mulheres, um aumento do número de feminicídios, um ataque sistemático aos direitos sexuais e reprodutivos, o cerceamento ao aborto legal, um incremento do desemprego e do trabalho precário entre as mulheres, a fragilidade das políticas sociais e a ausência de resposta governamental articulada e comprometida com o enfrentamento desta conjuntura.
Além disto, as mulheres estão na linha de frente do cuidado, tanto nos serviços de saúde quanto no trabalho doméstico, remunerado ou não remunerado. Segundo o Conselho Nacional de Enfermagem, as mulheres correspondem à 85% das contaminações por covid-19 entre profissionais de enfermagem e 64% dos óbitos nesta categoria.
A Aids tem classe e raça/cor no Brasil atual!
Mas, afinal, o que a epidemia de HIV e Aids tem a ver com isto?
O impacto da pandemia nas políticas públicas de HIV e Aids no Brasil é inquestionável. Os dados do levantamento “O impacto da epidemia de Covid 19 nos serviços de TB, Hiv e Aids no Brasil” apontam redução de 18% nos recursos financeiros destinados às políticas HIV e Aids e superior a 50% nas equipes técnicas dos serviços. Consequentemente, temos retrações importantes na oferta de diagnóstico e nos serviços de assistência às pessoas que vivem com HIV e Aids bem como nas ações de prevenção.
E qual a relação deste cenário no enfrentamento ao HIV e Aids entre as mulheres?
O desmantelamento de serviços para a garantia os direitos sexuais e reprodutivos, que levaram ao aumento da mortalidade materna e o cerceamento das mulheres a métodos contraceptivos e insumos de prevenção combinados com o agravamento das violências e a crise econômica ampliam a vulnerabilidade das mulheres para uma infecção ao HIV.
Ainda, segundo o levantamento, os dados refletem o quanto acesso aos insumos de prevenção nos serviços de saúde é desigual. Enquanto 92% dos homens têm acesso a preservativo externo (camisinha masculina) e 34% a gel lubrificante, no cotidiano dos serviços, este percentual se reduz, respectivamente, para 71% e 23% para mulheres. O acesso ao preservativo interno ainda é reduzido, somente 35% das entrevistadas relatam que têm acesso ao preservativo interno (camisinha feminina) e destas 20% ao de borracha nitrílica.
Além do acesso reduzido aos insumos de prevenção, os dados do levantamento também demonstram o quanto as mulheres que estão vinculadas aos serviços de saúde estão alijadas das informações relacionadas às “novas estratégias de prevenção”. Os dados indicam que 49% das entrevistadas desconhecem a Profilaxia Pós Exposição (PEP) e 51% nunca ouviu falar em Profilaxia Pré Exposição (PrEP). Importante ressaltar que a PEP é uma política consolidada há mais de 15 anos na rotina dos serviços do SUS e a PrEP, embora não seja de acesso universal e não esteja disponível para a maioria das mulheres cisgêneras, foi incorporada nos serviços de saúde em 2016.
Este cenário fica mais complexo com o aumento da violência doméstica. Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2020, houve incremento no número de feminicídios e de chamadas de urgência por agressão, o que indica o quanto o isolamento social intensificou a violência doméstica. Esta situação expressa menos possibilidades de gerenciamento de suas vidas sexuais, na adoção de métodos contraceptivos e negociação de práticas sexuais seguras.
A similaridade de alguns indicadores evidencia a correlação entre as duas epidemias. O Brasil ostenta 77% dos óbitos de gestante por covid-19 do mundo, sendo a taxa de mortalidade entre mulheres negras o dobro da taxa das mulheres brancas. Quando comparamos este cenário com o retratado pelo Boletim Epidemiológico de HIV e Aids 2020, percebemos similaridades importantes. Segundo o Boletim, houve um crescimento de 21,7% nas taxas de detecção de HIV entre gestantes nos últimos dez anos, sendo que destas 49,5% se autodeclaram pardas e 13,7% pretas. Ainda, apesar das infecções entre mulheres terem demonstrado um decréscimo nos últimos anos, desde 2009, os casos de aids são mais prevalentes em mulheres negras e a proporção de óbitos entre mulheres negras foi de 62%. A convergência destes cenários tangibiliza o quanto os contextos de vulnerabilidade são determinantes no processo de adoecimento e morte das mulheres.
A crise abancada pela pandemia de covid-19 têm ampliado os retrocessos no campo da saúde, promoção e garantia de direitos, especialmente das meninas e mulheres negras. Este fenômeno está sincronizado com a avalanche conservadora e fundamentalista que tem assolado o Brasil e deve repercutir num recrudescimento da epidemia de Aids entre as mulheres.
Em tempo, o Brasil é o quinto país com maior número de feminicídios, sendo que no primeiro semestre de 2020, 75% das mulheres vítimas de feminicídios eram negras. Ainda, segundo o relatório 2021 da Trangender Europe, o Brasil continua sendo o país com o maior número de assassinatos de pessoas trans do mundo, correspondendo a 41% de todos os dados.
Este cenário evidencia que quando falamos desta tríade - mulher, HIV/Aids e violências - percebemos que esta pauta além de gênero, tem raça e classe social! Precisamos de uma análise atenta para estas intersecções, ampliando o debate sobre seus desdobramentos no cotidiano e as dinâmicas sociais que se estabelecem a partir deste paradigma.
O apagamento social das pautas das mulheres nas políticas de HIV/Aids é mais uma manifestação das violências de gênero.
O MACHISMO MATA E MATA TAMBÉM DE AIDS!
O Dezembro Vermelho, assim como os 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres , são momentos para reafirmarmos e intensificarmos nosso compromisso com a construção de políticas que sejam feministas, antirracistas e que fomentem a emancipação e o protagonismo das mulheres.
* Carla Almeida é ativista dos movimentos sociais de luta contra aids e tuberculose, presidenta do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA RS) e Conselheira do Fórum Ong Aids RS.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira