Rio Grande do Sul

DESIGUALDADE

Artigo | Duas pandemias?

"Enquanto a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não se beneficiou de uma simples dose"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso" - Dimitri Korczak / AFP

No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado cinco novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por covid-19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.

Cientistas sul-africanos foram capazes de detectar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização da qual agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceito com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não se beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.

O continente europeu, que se proclama o berço da ciência, esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.

Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.

* Mia Couto é escritor, poeta e jornalista de Moçambique

** José Eduardo Agualusa é jornalista, escritor e editor angolano

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira