O Brasil é um país que, infelizmente, há que se reconhecer, tem uma tradição golpista. 1822, 1889, 1930, 1937, 1964, 2016. Em 2021, bravatas e ameaças da bolsonariedade e seus aliados reavivam essa triste história. As elites alimentam e prezam essa excrescência de, a seu bel prazer, ignorar quaisquer parâmetros e regramentos legais e ético-políticos para impor sua lógica de controle econômico, político e ideológico na gestão do Estado. E novembro não está sendo diferente. Ontem e hoje.
15 de novembro de 1889. Golpe. Deodoro da Fonseca, um militar e monarquista convicto, participa de um movimento civil-militar com o objetivo de depor o então Imperador do Brasil, D. Pedro II, que foi dormir no poder e acordou deposto.
12 de novembro de 2021. Golpe. Sexta-feira, 17h, véspera de feriado e do aniversário do golpe de 1889. Em um comunicado sumário, via redes sociais, Janaina Audino, Secretária de Educação de Porto Alegre, com um canetaço dá um golpe na tradição democrática da Rede. Impõe uma mudança curricular, desconsiderando comunidades e conselhos escolares, sistema municipal de educação e trabalhadoras/es em educação.
25 de novembro de 2021. Golpe. Quinta-feira. Janaina anuncia, a partir de uma reunião de gabinete com representantes do Fórum dos Diretores e uma parlamentar de oposição, nos últimos minutos, que resolveu fazer uma concessão, depois de ter decretado a primazia de Matemática e Português na grade curricular: joga algumas migalhas ao chão, enquanto a boiada passa.
Hoje, 26 de novembro, dispara na mídia oficial: “Acordo permite manutenção da Filosofia na grade curricular das escolas municipais”. Acordo com quem? “Manutenção” da Filosofia sob quais condições? Era essa a demanda das e dos professoras/es de Filosofia organizados? Quem falou por elas/es? Já não estava justificado publicamente o declínio do Coletivo de Filosofia nesse espaço justamente pela não submissão a mais uma provável capitulação tal qual ocorreu em todos os demais supostos diálogos com a secretária, como mostra seu texto publicado?
A Filosofia quer, ou deve estar, subsumida à Religião como disciplina, tal o resultado anunciado como vitória dessa reunião? E as demais demandas de tantas representações de demais coletivos que vêm lutando há meses contra essa reforma, como a necessidade de um congresso, foram levadas a essa reunião? Teve ata?
Você confiaria seu patrimônio e suas reservas a uma golpista?
A prudência recomenda uma dose de ceticismo diante de uma gestora que mente, engana e deturpa. Que rasga a própria palavra empenhada, amplamente publicizada, ignora o processo democrático na própria rede, e mesmo o simulacro de processo democrático, com acolhimento de propostas alternativas e votação por ela proposto e dá golpes como quem troca de camisa.
Ou seja, não há o que comemorar. Não há vitória alguma. Permanece a imposição monocrática. Permanece o autoritarismo da reorganização, exclusão e diminuição da carga horária de componentes curriculares, como História, Geografia, Espanhol, Francês. Permanece a obsessão por avaliações externas, a cegueira da necropolítica que teima em ignorar o contexto pandêmico. Permanece a falta de diálogo e o desrespeito às organizações autônomas e representativas das/dos trabalhadores em educação.
Em nosso nome?
Que diálogo sabem fazer as golpistas e os ditadores, senão o de imposições de suas verdades inexoráveis, a custa da mentira sistemática, da censura, das regras e leis adequadas ao seu capricho, manobradas a seu favor, da força institucional e bruta que coage e ameaça, com sofrimentos sem fim?
Na versão oficial de Audino, no site da PMPA, diz a secretária: "Como há consenso com a rede de que esses objetivos podem ser trabalhados no componente curricular da Filosofia, todos ganham, pois esse resultado é fruto de um diálogo importante com os nossos diretores”. Consenso com quem?
Um golpe sempre tem desdobramentos. Alguns imediatos, outros que se revelam aos poucos e invariavelmente acabam contando com parcela que os legitima. Seja por ignorância, seja por alinhamento programático, seja por interesses mesquinhos. Não admira que a história dos golpes no Brasil tenha invariavelmente um tom de conciliação de interesses civis, religiosos e militares. Há sempre aliados que, em diferentes graus, acabam gravitando em torno dos interesses hegemônicos. Deveríamos ter aprendido com a história essa lição. Mas, sempre, entre os próprios dominados há mecanismos autoilusórios.
Mais uma das infinitas tentativas de matar de novo Sócrates, mas dessa vez, só os da quebrada
Há cerca de 2.400 anos, Sócrates, o grande filósofo grego, foi condenado pelos poderosos de Atenas, injustamente, a tomar cicuta, veneno muito comum na época. Tornara-se um perigo, mesmo aos 70 e tantos anos, pois fazia a juventude pensar. Ontem, 25 de novembro, Janaina Audino, para agradar à bancada da bíblia, alinhada a Melo e ao bolsonarismo, a submete ao cercadinho de um período semanal e a obrigatoriedade de ministrar o Ensino Religioso, tão reivindicado pelos neopentecostais em suas pautas fundamentalistas e ultraconservadoras.
Audino, com mais um copo de cicuta a oferecer entre as mãos, volta a tão escancarada e pouco inteligente tentativa de matar a Filosofia novamente, fazendo sumir as e os filósofos da escola - mas com uma peculiaridade nefasta porém clara: só na periferia, porque nas escolas particulares, a Filosofia seguirá como disciplina! Mal sabe (claro, não pisa nas escolas) que o pensamento autóctone da quebrada é também uma forma de vida (e de defesa) nas comunidades periféricas (atendidas pela rede municipal de ensino) e que tem sua vazão - e reconhecimento - quando essas meninas e meninos encontram a Filosofia nas salas de aulas.
Portanto, há o que comemorar? Para a disciplina “voltar” para o currículo deve contemplar objetivos da área de Ensino Religioso? Ou seja, dobrar-se aos senhores e senhoras de engenho da dor?
Síntese possível
Enquanto as/os trabalhadoras/es em educação, cientes de seu papel, reescrevem novembro na história, celebrando a luta da República independente de Palmares, a luta de Zumbi e de Dandara, Oliveira Silveira, o Grupo Palmares e os 50 anos do 20 de novembro, ainda nos deparamos com golpes e com golpistas. Ainda enfrentamos a necessidade de lutar por movimentos efetivamente coletivos. Ainda precisamos dizer que consenso e/ou conciliação não se faz entre poucos/as, quando muitos/as encontram-se envolvidos/as e desejam ter suas vozes escutadas. Ainda necessitamos expressar que mentira, deturpação, conchavos espúrios e falsas promessas não serão aceitas. Ainda nos vemos na obrigação de continuar resistindo, veementemente, aos ataques que estamos sofrendo; na esperança de nos mantermos vivos e vivas, porque nossa opção é por uma outra história. E ainda precisamos reafirmar que permanece a negligência às reais necessidades das comunidades escolares.
* Os autores são professoras/es, coordenadoras/es pedagógicos e vice-diretora/es da Rede Municipal de Educação de Porto Alegre
** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira