Rio Grande do Sul

Alternativa

Projeto propõe ‘ocupação cultural’ do Cais Mauá como alternativa à privatização

Estudos técnicos apontariam que há viabilidade econômica para revitalização do Cais voltada para ocupação cultural

Sul 21 |
Proposta prevê revitalização dos armazéns para ocupação cultural do Cais - Foto: Luiza Castro/Sul21

Professores de três departamentos diferentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e representantes do Coletivo Cais Cultural Já apresentam na tarde desta terça-feira (23), em coletiva de imprensa, uma proposta para que a revitalização do Cais Mauá seja destinada para a promoção de atividades culturais e para que não seja necessária a privatização da área.

O estudo “Diretrizes Gerais – Proposta de Ocupação Cultural do Cais do Porto de Porto Alegre” foi apresentado pelos professores Eber Pires Marzulo e Inês Martina Lersch, da Faculdade de Arquitetura, por Luciano Fedozzi, do Departamento de Sociologia, e por Pedro de Almeida Costa, da Escola de Administração. Eles destacaram que o estudo é resultado do trabalho de diversos projetos de extensão desenvolvidos na universidades: o Projeto de Extensão Ocupação Cais do Porto Cultural (coordenado por Marzulo), o Projeto de Extensão Práticas de Patrimônio Insurgente (coordenado por Lersch), o Projeto As Metrópoles e o Direito à Cidade – Observatório das Metrópoles (o qual Fedozzi faz parte) e o Núcleo de Estudos em Gestão Alternativa (do qual Costa faz parte).

O trabalho começou a ser desenvolvido após a rescisão do contrato pelo Governo do Estado com o consórcio privado Cais Mauá do Brasil S.A., que ocorreu em 2019 após o consórcio apresentar reiterados problemas e nunca ter conseguido realizar a revitalização. Contudo, apesar de a rescisão ter partido de uma decisão do governo de Eduardo Leite, o Estado e a Prefeitura de Porto Alegre seguem apostando na privatização como solução para a revitalização do Cais. O governo estadual, inclusive, contratou o BNDES para formular um modelo de privatização do Cais e espera realizar a licitação em 2022.

Na coletiva, os professores destacam que buscam uma alternativa para a área. A proposta apresentada traz soluções que poderiam garantir recursos para a realização da revitalização dos armazéns do Cais Porto e para viabilizar a manutenção da estrutura posteriormente. O projeto prevê a exploração comercial da área por empreendimentos econômicos e de forma comercial, como restaurantes e bares, mas também prevê que os espaços sejam ocupados por uma série de outras atividades e setores ligados à economia criativa.

No âmbito desta “ocupação cultural”, pretende aliar:

a) um conjunto de atividades gratuitas (no campo da arte/educação/conhecimento);

b) atividades culturais de diversas modalidades em forma de hospedagem (passageira) no uso de espaços e equipamentos de pequeno, médio e grande porte;

c) atividades artísticas, de entretenimento e de lazer comercializadas, para fins de remuneração dos eventos e contribuição com a autossustentabilidade dos armazéns;

d) empreendimentos econômicos baseados em práticas cooperativas e na sustentabilidade ambiental, a exemplo da economia solidária, das feiras agroecológicas e do artesanato;

e) empreendimentos gastronômicos de médio e pequeno porte, com destaque para culinária local e sociobiodiversidade, além de outros;

f) eventos de grande porte, tais como a Feira do Livro, Bienais de Artes, Festivais Culturais, Congressos Científicos e outros eventos;

g) polo de economia criativa, segmento que se apresenta nos últimos anos como de grande crescimento no RS51, com significativo número de postos de trabalho (130.079), estabelecimentos (27.645) e renda média com potencial de crescimento (R$ 2.655,94), cuja polarização tende a estar em Porto Alegre e região metropolitana.


Professores Luciano Fedozzi, Eber Marzulo, Inês Martina Lersch e Pedro Costa participam de apresentação do projeto na sede do IAB / Foto: Divulgação

Pelo projeto, os armazéns seriam divididos em dez módulos: direitos humanos e literatura; cultura e memória; eventos; cênico e dança; cultura afro e indígena; gastronomia, economia solidária, artesanato e antiquário; artes visuais e plásticas; e música e audiovisual.

Uma das formas propostas para viabilizar a revitalização dos armazéns é a alienação do setor das Docas do Cais do Porto em troca de compensações econômicas. Estudos realizados no âmbito das faculdades apontaram que a venda da área das Docas pelo governo do Estado para a construção de empreendimentos comerciais, habitacionais ou hotéis poderia render, em valores de mercado, entre R$ 64,3 milhões e R$ 94,2 milhões. Eles destacam que o Consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. prometia recuperar os armazéns com R$ 45 milhões.

Já em um segundo momento, a manutenção da estrutura, incluindo armazéns e os projetos propostas, viria de uma “cesta de atividades”, que incluiriam a locação e permissão de usos de espaços para restaurantes e conveniência, de taxas de permissão de uso por coletivos e grupos culturais, da captação de recursos de leis de incentivo à cultura, da exploração publicitária da área, da locação de espaços abertos e fechados para atrações culturais de maior público, da exploração de bicicletário e outros meios de transporte, de aporte de recursos públicos para conservação do espaço, de aporte anual do empreendedor privado que explorar a área das docas e do IPTU gerado pelas edificações privadas no setor das docas.

Para os professores, essa ampla gama de fontes de recursos seria suficiente para garantir a manutenção da área em condições adequadas e, ao mesmo tempo, permitir que atividades culturais que não tenham viabilidade econômica própria possam contribuir com valores menores ou sejam isentas de contribuição. “A gente não precisa de um lugar 100% privado para que ele seja viável do ponto de vista econômico e financeiro”, disse o professor Pedro Costa.

Costa pondera, por outro lado, que Porto Alegre teria dificuldade de demanda para a ocupação de todos os espaços dos armazéns por restaurantes e atividades culturais de exploração privada. “Naquele espaço cabem vários Araújos Vianna. Tem espaço para tudo. Não queremos roubar de ninguém a possibilidade de empreender”, afirmou.

Por sua vez, Marzulo destacou que o projeto surge da oposição à ideia de privatização dos espaços públicos da cidade. “É contra esse movimento que apresentamos um projeto de viabilização do conjunto de armazéns do Cais do Porto para a ocupação por atividades culturais”, disse.

Para Marzulo, a iniciativa dos professores também tem por objetivo denunciar que o patrimônio público tem sido abandonado em uma estratégia para justificar a posterior privatização e negar que seria possível alcançar uma solução em que a governança da área continue pública, como propõe o projeto apresentado por eles. Ele ponderou também que o trabalho buscou referências internacionais que seriam mais modernas do que o Puerto Madero, de Buenos Aires, que é constantemente citado como referência para a revitalização do Cais Mauá.

“O loteamento do Cais é inspirado no Puerto Madero. Trata-se de um projeto absolutamente defasado e o mundo nos oferece outros projetos muito mais interessantes de área público defronte à água para a utilização pública e não para a utilização privada. Nesse ponto de vista, a nossa proposta se encontra em articulação, não só com a história do Cais, mas também com as experiências mais avançadas de reutilização de áreas públicas, particularmente, de frente a água”, disse.

Luciano Fedozzi salientou que o projeto considera como fundamental que a área do Cais seja devolvida para a população de Porto Alegre a partir de uma lógica do direito de todos à cidade, e não em uma lógica de privatização e elitização do espaço que eles consideram que seria a consequência da privatização para exploração cultural de toda a área.

“Essa devolução, nós entendemos, deve se dar para toda a população da cidade, sem seleção de público ou de frequentadores por recorte socioeconômico, racial, de gênero ou outros. Simplesmente, trata-se de implementar aquilo que a legislação já prevê no Estatuto das Cidades em termos de direito à cidade”, disse.

Fedozzi destacou que uma das consequências da revitalização do Puerto Madero, em Buenos Aires, foi a de transformar a área em um dos dois bairros mais caros da América Latina, ao lado de Ipanema, no Rio de Janeiro, o que seria um exemplo de movimento excludente.

Por outro lado, ponderou que a revitalização da Orla do Guaíba, considerado um case de sucesso pelas últimas gestões da cidade, só foram possíveis porque, no passado, movimentos da sociedade civil se levantaram contra projetos que permitiriam a exploração comercial e privatização daqueles espaços.

Fedozzi ressaltou também que os estudos técnicos evidenciam que a ocupação cultural do Cais pode ser viabilizada pensando da priorização do caráter público e que o trabalho apresentado serve como contraponto a ideia de que a privatização seria inevitável, o que, segundo ele, é a ideia que prevalece desde os anos 1980.

“Há alternativa, mas depende de um projeto que, evidentemente, deve partir da boa vontade dos governos estadual e municipal, e que o diálogo seja aberto, o que não houve até agora. Houve várias tentativas, desde o final do ano passado, pedindo audiências para o governo do Estado e município e, lamentavelmente, não houve abertura ao diálogo. Nós temos oferecendo um estudo técnico que demonstra a viabilidade prática de efetivar um projeto que realmente devolva o Cais do Porto para a cidade, não a partir de um perfil altamente elitizado, segregacionista, onde apenas 25% da população teria acesso”, diz.

Edição: Sul 21