“Como então? Desgarrados da terra? Como assim? Levantados do chão? Como embaixo dos pés uma terra. Como água escorrendo da mão?”
Era domingo. O sol aquecia a terra conquistada em 1998. Fruto da luta coletiva. Na sede do Grupo Bem Viver, na rua Florestan Fernandes, do Setor D do Assentamento Filhos de Sepé, assentados, quilombolas e ciganas se encontram para contar suas histórias.
O dia, 14 de novembro, foi escolhido para lembrar a madrugada de 1844 quando ocorreu o massacre de Porongos. Uma emboscada que vitimou soldados negros desarmados, acampados no Cerro de Porongos, no Rio Grande do Sul. O episódio ainda pouco conhecido faz parte da Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos (1835-45).
Na abertura não poderia faltar a mística, presente em todos os encontros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A trilha sonora trazia a canção Levantados do Chão, de Chico Buarque e Milton Nascimento. Nas mãos, as ferramentas para a lida na terra, a enxada, o facão, a foice. A leitura de um trecho do livro Torto Arado, do escritor baiano Itamar Vieira Junior, sintetizou o sentimento que unia os presentes: “Essa terra mora em mim. Podem me arrancar da terra, mas nunca vão arrancar ela de mim”.
O encontro contou com a colaboração do Grupo Construir; UFRGS – Nexus II; IEJC – Instituto de Educação Josué de Castro; EMATER; IFRS-EcoViamão; SINVIA - Sindicato dos Municipários de Viamão; ATAPIV – Associação dos Trabalhadores, Aposentados, Pensionistas e Idosos de Viamão.
Maior produtor de arroz orgânico da América Latina
Cerca de 30% da produção do arroz orgânico do RS é cultivada no Assentamento Filhos de Sepé. Localizado no Distrito de Águas Claras, município de Viamão, fica a 36 km de Porto Alegre. Com uma área de 9.450 hectares, o Assentamento é organizado em quatro setores de moradia.
Em sua apresentação do Assentamento, Marthin Zang destacou que o Filhos de Sepé é uma conquista da luta coletiva pela terra. Com 36 anos, ele está desde os 13 anos no MST, quando seus pais, Leonildo e Julieta, resolveram participar do acampamento Santo Antônio das Missões.
“Há 23 anos nós estamos construindo um território livre de transgênico e agrotóxico, nesta área que foi uma desapropriação da Fazenda Santa Fé. As famílias assentadas vieram de 115 municípios do RS. Também se encontram assentadas famílias de trabalhadores da fazenda desapropriada. No nosso país, 1% possui mais da metade das terras e 99% ficam com o restante. Hoje nós somos 376 famílias”, destacou.
A produção orgânica de arroz irrigado é atualmente a principal atividade agrícola promotora de renda no Assentamento, considerado o maior produtor de produtos orgânicos da América Latina em termos de área contígua. O Assentamento produz também uma grande quantidade de gado de corte e de leite, de hortaliças, frutas, ovos, pequenos animais, dentre outros cultivos para subsistência e mercado local, feiras e programas de compras institucionais. Além de possuir duas agroindústrias de processamento de alimentos, sendo que uma é para o beneficiamento de vegetais e outra de panifícios.
“Viamonense não conhece o seu próprio território”
Mobilizar e organizar. Articular assentados, quilombolas e comunidades urbanas organizadas, como sindicatos e associações. “Colocar elas pra dialogar, porque elas estão cada uma no seu canto isoladas.” Segundo Marthin, esse foi o principal objetivo desse primeiro encontro.
“A gente acredita que o assentamento é uma referência, justamente pelo potencial de mobilização, de organização. Então vamos organizar. A maioria não conhecia o assentamento, e a maioria das pessoas que estão aqui, por exemplo, não conhece o quilombo da Anastácia, não conhece o quilombo Cantão das Lombas, não conhece o quilombo dos Botinhas. Aliás, o morador de Viamão não sabe que Viamão tem três quilombos, tem três aldeias indígenas, um assentamento de Reforma Agrária que é enorme, o maior do estado, que tem unidade de conservação integral, que faz parte de uma outra unidade de conservação que é de uso sustentável”, ressaltou
A História Negra de Viamão
O dia foi de contação de histórias. Uma delas do foi da cigana, nascida em Viamão, Candida Laila da Costa Machado, filha de Pedro Lagranha Machado, que esteve na Coluna Prestes, ao lado de Luiz Carlos Prestes. Como lembrou Candida, com orgulho, andou de braços dados com o “Velho”, quando este visitou Viamão. “Nossa história precisa ser revisada. Lutei muito pra divulgar nossa cultura cigana. O cigano é humano, verdadeiro. Não somos ladrões. Somos um povo que vem lutando para viver. Viamão é terra de cigano, de negros que lutam.”
Também foi conhecida a história do quilombo Anastácia. Dona Berenice que participa do filme Olhos de Anastácia, exibido no encontro, agradeceu emocionada e falou dos problemas enfrentados, como a dificuldade de acesso, a falta de escola e trabalho. No documentário de Jhonatan Gomes, bisneto de Anastácia, é apresentada a vida de Anastácia Souza Reis, nascida poucos anos após a Lei Áurea. O filme dá voz a quatro mulheres, representantes das comunidades dos quilombos Anastácia e Manoel Barbosa.
Representando a Associação dos Trabalhadores, Aposentados, Pensionistas e Idosos de Viamão, o seu Martin Martins, completa 100 anos em julho de 2022. Natural de Erval do Sul, mora há 25 anos em Viamão. Há 12 anos completou o ensino médio e só não foi pra faculdade porque enfrentou uns problemas pessoais. Quando tinha 18 anos, na década de 1940, se filiou ao Partido Comunista e participou da luta sindical, o que lhe rendeu algumas prisões. “Eu era reconhecido na minha cidade como um revolucionário.”
“Só temos saída com o povo se unindo”
Conduzido pelos assentados Leonildo Zang e Ana Heloísa, o encontro contou ainda com as presenças do árbitro Márcio Chagas, que falou do massacre dos Porongos, da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL/RS) e da vereadora de Viamão Fátima Maria (PT), além de outras integrantes do seu mandato coletivo. E foi finalizado com uma roda de capoeira angola, composta pelos próprios assentados.
Ao recordar sua própria história, Leonildo Zang contou que foi expulso do campo pelo agronegócio e foi pra cidade. Depois optou em lutar pelo direito que é seu. “Depois de muita luta, hoje estamos felizes aqui. A gente só conquista isso pelo coletivo, pela organização. Nós estamos indo pra 23 anos de assentamento. Tudo isso que vocês estão vendo aqui, isso é tudo uma luta coletiva, ninguém consegue as coisas sozinho.”
Seu Zang, como é conhecido, afirma que o sistema é muito forte, muito pesado. “Só o povo se unindo, se organizando, para achar uma saída. Com saídas individuais, a sociedade não consegue resolver seus problemas. A sociedade só consegue resolver o seu problema por luta de classe, se organizando coletivamente.”
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Edição: Marcelo Ferreira