Esbell integra as diversas vozes que têm nos guiado em direção à tarefa urgente da descolonização
Peço licença para adentrar ao território da linguagem e, em reverência, consciente da nossa condição de aprendiz da palavra, reverberar os efeitos da morte de Jaider Esbell. “Ser corpo e comunidade dentro de um amálgama tão diluído”, nos obriga a encarar sua morte, um provável suicídio, circunscrito na realidade dos muitos povos indígenas de todo o mundo.
No Brasil, estima-se que a taxa de suicídio de indígenas é quatro vezes mais alta que entre não-indígenas, e profundamente relacionada às extensas violências materiais, físicas e simbólicas sofridas. Este amálgama complexo é sintetizado por Myriam Krexu: “a mãe do Brasil é indígena, ainda que o país tenha mais orgulho de seu pai europeu que o trata como um filho bastardo. Sua raiz vem daqui, do povo ancestral que veste uma história, que escreve na pele sua cultura, suas preces e suas lutas” - é necessário, portanto, invocar as mães.
Esbell era filho de Bernaldina José Pedro, liderança macuxi com grande atuação na demarcação das terras indígenas no país, e uma das mais de 600 mil vítimas da covid-19. Vovó Bernaldina não pôde ser enterrada no território pelo qual lutou, e sua comunidade não pôde dedicar a seu corpo, indissociável da própria terra, seus rituais fúnebres.
Jaider entregou seu corpo à Grande Mãe Terra no dia em que a cultura hegemônica, colonialista e necropolítica, celebra a memória dos seus mortos, talvez como última grande performance para não nos deixar esquecer a imensa dívida que o Estado brasileiro tem com seus povos originários.
Para não nos deixar esquecer a dor das mães yanomamis, assim como outras mães indígenas, que não puderam enterrar os corpos dos seus filhos, subtraídos com o genocídio pandêmico e o ecocídio orquestrado por Jair Bolsonaro, crimes de lesa humanidade que deverão ser julgados no Tribunal Internacional de Haia.
Esbell integra o conjunto de diversas vozes contemporâneas que têm nos ensinado, ou melhor, nos guiado em direção à tarefa urgente e complexa da descolonização. Geni Núñez, kunhangue, psicóloga, doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina e integrante da Comissão Guarani Yvyrupa, nos dá a pista: “é preciso reflorestar o imaginário”, processo este que prescinde resgatar e manter saberes tradicionais e constituir novos, conectados à vida, ao corpo e aos territórios.
O corpo, enquanto território, precisa ser descolonizado para emergir em potência, pois, sendo vivo, é vida em si. Os territórios, sendo corpos, precisam ser livres para serem vivos. Esbell, Núñez e sua geração de ativistas têm vocalizado sobre a importância da reflexão, contestação e dissociação dos efeitos de uma socialização binária de gênero, para a compreensão da cosmologia e cosmopolítica indígenas.
Sendo a própria imposição do binarismo de gênero uma das violências estruturais da colonialidade, o exercício proposto aos feminismos é abraçar as identidades não binárias também a partir dessa perspectiva, além de questionarmos a noção de universalidade eurocentrada, introjetada nos modos de perceber, enunciar e narrar.
Assumir a violência de gênero como um dos primeiros efeitos da colonização e, a partir daí, lançar-nos à criação de mundos e possibilidades afinadas com a transformação de nossos modos de vida conectados, profundamente, aos desejos e pulsões vitais que não escapam da dimensão do sagrado, do espiritual. Ao contrário, o refletem, emanam, materializam.
Afirmar o país como terra indígena implica em ampliar nossa percepção e amplificar tais vozes a partir dessa escuta, assumindo o exercício ético de corporificar e coletivizar nossa compreensão do bem viver a tudo o que é vivo, sem distinção de gênero e espécie.
É nessa direção que marcham as mulheres indígenas, e é diante da promessa da terra sem males que nos voltamos, atentas, atentos, atentes, com os mais lindos cantos, rezos e sonhos, ao julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a tese do Marco Temporal. Sem esquecer que a mãe do Brasil é indígena, e ela pode ser, também, muito mais do que conhecemos como mulher.
* Lara Werner, sanitarista em formação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko