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Ainda longe da democracia: Moro e Dallagnol na política

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"Todo esse processo protagonizado por Moro, Dallagnol e Bolsonaro, se inscreve no processo de desdemocratização, sem rompimento formal, em curso em todo o globo" - Divulgação
Moro e Dallagnol protagonizaram a instrumentalização do sistema de justiça contra a democracia

Democracia é um conceito polissêmico. Trata-se de um conceito global, ou seja, onde quer que se vá o conceito circula, seja nas relações políticas, nas esferas científicas ou no senso comum. Contudo, talvez em razão disto, não circula com um único e preciso sentido. Assume distintos valores e distintas variáveis. Pode ser invocada tanto por inúmeras tradições teóricas das ciências sociais quanto por distintas e divergentes correntes ideológicas e políticas.

Para muitos está relacionada às questões substantivas vinculadas à ideia de distribuição de poder e igualdade política e social. Para outros está relacionada à razão procedimental dos sistemas normativos que garantam algumas premissas. Há ainda os que consideram que ela está relacionada à existência de uma cultura política cívica preexistente em determinadas sociedades.

A concepção hegemônica, tanto nos meios acadêmicos quanto no das relações de poder, é a que relaciona democracia à sua dimensão procedimental, como existência de eleições, separação de poderes e reconhecimento normativo do valor constituinte dos indivíduos. Essa concepção hegemônica está assentada nas teorias liberais clássicas vinculadas à economia capitalista de mercado.

Esse sentido de democracia, contudo, vai de encontro à realidade. A dinâmica real da economia capitalista, de concentração de riqueza e eliminação da igualdade substantiva, implode este esquema argumentativo de que quanto mais mercado e capitalismo mais se solidifica a democracia. A realidade é a negação dessa premissa. O mundo neoliberal é um mundo de profunda crise do sistema democrático liberal.

A dinâmica concentradora do neoliberalismo revelou a contradição material entre aquela razão econômica e a ideia substantiva de democracia, entendida como o sistema que permitiria avanços graduais dos mais pobres na perspectiva de conquistar proteções sociais, direitos fundamentais e a apropriação social da renda pública. A dinâmica concreta da última década no mundo expõe a incapacidade do sistema democrático liberal em reverter a hiperconcentração de riqueza e a consequente explosão da pobreza no mundo. Como, igualmente, de impedir através de seus mecanismos, a emergência da extrema direita autoritária para exercer o papel de governo dessa grande regressão social. Foi pelos sistemas democráticos que emergiram, eleitos, Donald Trump, Viktor Orbán, Mateusz Morawiecki, Rodrigo Duterte, Tayyip Erdogan, Narendra Modi e Jair Bolsonaro, entre outros neo e protofascistas.

Mesmo adeptos de que o sistema democrático liberal teria mecanismos de autodefesa reconhecem a realidade do definhamento do liberalismo político. Amartya Sen, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1998, reconhece que “A desigualdade e a assimetria do poder têm o potencial de corroer as vantagens da democracia.” 

Os limites dos sistemas democráticos liberais, restritos à sua dimensão de igualdade apenas normativa entre os indivíduos, mostraram toda sua inoperância ao se tornaram um mecanismo de legitimação da desigualdade. O processo político hegemônico retirou da agenda a causa maior da crise de empobrecimento - a concentração de riqueza e a apropriação privada da renda pública - para colocar em seu lugar pautas diversionistas como a corrupção, imigração, direitos sociais em excesso, desestatização, austeridade e responsabilidade fiscal. O resultado disto é que inúmeros governos e partidos de extrema direita foram eleitos para salvar o neoliberalismo e proteger os super-ricos e seu capital. Na exata medida do aumento do autoritarismo, por via democrática, e da diminuição dos direitos políticos no planeta cresceram também a pobreza, os genocídios e a eliminação de políticas públicas sociais e a proteção ao emprego e ao salário.

Essa grande regressão[1] é o que Antonio Gramsci chama de “claro-escuro”. A situação onde grandes monstros se criam para em nome da restauração de melhores condições de vida a destruir efetivamente. O ingresso formal do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol no sistema político, através de suas filiações partidárias, é a tipificável situação a que se refere Gramsci.

O sistema democrático liberal, realmente existente no Brasil, foi utilizado em toda sua extensão contra a democracia e em favor da concentração da riqueza. Moro e Dallagnol protagonizaram a instrumentalização do sistema de justiça contra a democracia quando deram curso a investigações e julgamentos ilegais através da “Lava Jato”.  As investigações jornalísticas levadas a cabo pelo The Intercept Brasil[2] desnudaram a dimensão política do que deveria ser um processo judicial. A decisão de ambos se filiarem é fato evidente de seu ingresso no sistema eleitoral, mas não no sistema político. A condição de altos burocratas do sistema de justiça já os havia colocado dentro do sistema político, porém em uma condição de impunidade em relação ao controle social, o que, em alguma medida, sofrerão se eleitos e desde a campanha eleitoral.

Sem controle e com apoio da grande mídia nacional, da CIA e FBI e do empresariado brasileiro, Moro e Dallagnol atacaram a ideia de democracia substantiva por dentro do próprio sistema democrático. Tal operação serviu para inviabilizar, sem romper formalmente o sistema político, a candidatura do então líder nas pesquisas de intenção de voto, Lula da Silva, tido como um estorvo para as necessidades de ampliação da política de austeridade já em aplicação pelo governo Michel Temer. Essa operação foi essencial para levar ao governo um sujeito de extrema direita, autoritário, com o plano de ampliar o processo de “limpeza de direitos” já em curso.

Todo esse processo protagonizado por Moro, Dallagnol e Bolsonaro, se inscreve no processo de desdemocratização, sem rompimento formal, em curso em todo o globo. Processo esse que se aprofunda na proporção direta do crescimento da pobreza no mundo. O fato é que a fração financeira hegemônica na razão neoliberal não abre mão de um centavo sequer de sua riqueza para combater a pobreza e a fome.

Governos, maiorias parlamentares e juízes de extrema direita são essenciais para garantir que o Estado conserve seus mecanismos de concentração de renda. No claro escuro desta grande regressão, o controle do Estado é fundamental para tal grau de expropriação de riqueza. A legitimidade conferida pelo sistema democrático liberal torna seu caminho menos difícil para manter tal dinâmica e deslegitimar ou eliminar a resistência.

Moro e Dallagnol no sistema eleitoral são a forma legal de manutenção do papel que já cumpriram no sistema judicial. O sistema democrático sendo usado contra a própria democracia.


[1] Branco, Jorge. A grande regressão: introdução para argumentos pós-neoliberais. In: BITENCOURT, Sandra. Trabalho, partido e mercado na crise neoliberal. Canoas: Consultor Editorial, 2021. p 11 – 28.

[2] Duarte, Letícia. Vaza a jato: os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil. Rio de Janeiro: Mórula, 2020


* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko