Rio Grande do Sul

Coluna

Denúncia, anúncio, profecia, utopia e sonho

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Paulo Freire: "Os partidos progressistas não podem emudecer, renunciando à sua tarefa de dizer a palavra utópica, palavra que denuncia e anuncia" - Foto: Reprodução
Os desafios são de ontem, são de hoje. Paulo Freire está falando para todas e todos em 2021

“Não há possibilidade de pensarmos o amanhã, mais próximo ou mais remoto, sem que nos achemos em processo permanente de ´emersão’ do hoje, ‘molhados’ do tempo que vivemos, tocados por seus desafios, instigados por seus problemas, inseguros ante a insensatez que anuncia desastres, tomados de justa raiva em face das injustiças profundas que expressam, em níveis que causam assombro, a capacidade humana de transgressão da ética. Ou também alentados por testemunhos de gratuita generosidade à vida, que fortalecem, em nós, a necessária, mas às vezes combalida, esperança.

A própria ética do mercado, sob cujo império vivemos neste fim de século, é, em si, uma das afrontosas transgressões da ética universal do ser humano. Perversa pela própria natureza, nenhum esforço de diminuir ou amenizar sua malvadez a alcança. Ele não suporta melhorias. No momento em que fosse amainada sua frieza ou indiferença pelos interesses humanos legítimos dos desvalidos, o de ser, o de viver dignamente, o de amar, o de estudar, o de ler o mundo e a palavra, o de superar o medo, o de crer, o de repousar, o de sonhar, o de fazer coisas, o de perguntar, o de escolher, o de dizer não, na hora apropriada, na perspectiva de permanente sim à vida, já não seria ética do mercado. Ética do lucro, a cujos interesses mulheres e homens devemos nos submeter, de formas contraditoriamente diferentes: os ricos e dominantes, gozando; os pobres e submetidos, sofrendo. O pragmatismo neoliberal não tem nada que ver com formação.”  

O texto acima é de novembro de 2021, como parece ser? Não, é de dezembro de 1996, tempos de neoliberalismo socialdemocrata. É de algum economista de esquerda? Não. É de um educador popular. É Paulo Freire puro, na veia, o Patrono da Educação Brasileira. Está no livro ´Pedagogia da Indignação´. Lendo-o hoje, em 2021, compreende-se por que querem banir ou exilar Paulo Freire de novo. E porque foi necessário, em 2019, lançar a Campanha Latino-americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire.

´Mudar é difícil, mas é possível´, repete Paulo Freire mais de uma vez no livro. Com denúncia, anúncio, profecia, utopia e sonho. “Para mim, ao repensar nos dados concretos da realidade, sendo vivida, o pensamento profético, que é também utópico, implica a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio de como poderíamos viver. É um pensamento esperançoso, por isso mesmo.”

A partir desta visão profética de 1996, há 25 anos, Paulo Freire diz que “gostaria de começar a análise de alguns dos desafios que nos instigam hoje e se alongarão pelos começos do século que vem”, como bem o sabemos hoje, na terceira década dos anos 2000.

Primeiro desafio proposto por Paulo Freire em 1996: A negação atual do sonho e da utopia e a briga por eles, agora e no começo do século que vem.

Segundo desafio: A História como determinação, o futuro como um dado inexorável versus a História como possibilidade, o futuro problematizado.

Terceiro desafio: Ética do mercado versus ética universal do ser humano.

Quarto desafio: A questão da violência.

Os desafios são de ontem, são de hoje. Paulo Freire está falando para todas e todos em 2021. Denuncia fortemente o mercado e sua ética do puro lucro, como vemos todos os dias, mesmo em tempos de pandemia e morte. Fala da violência hoje mais que nunca presente, especialmente entre os pobres, a população negra, os indígenas e o povo LGBTQIA+.

Fala também, profeticamente, da construção do inédito viável e da urgência da utopia e do sonho. Um outro mundo possível, urgente e necessário.

Termino com as sábias palavras de Paulo Freire, de dezembro de 1996: “A questão fundamental na prática política não é o puro fazer as coisas, mas em favor de que e de quem fazer coisas, que implica, em certo sentido, contra quem fazer coisas. É preferível, às vezes, perder uma eleição, mas continuar fiel a princípios fundamentais e coerentes com os sonhos proclamados. Os partidos progressistas não podem calar. Os partidos progressistas não podem emudecer, renunciando à sua tarefa de dizer a palavra utópica, palavra que denuncia e anuncia. E não porque tenham raiva incontida dos chamados bem-nascidos, mas porque faz parte de sua própria natureza a briga contra as injustiças.”

Falou e disse.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko