“Se o poder público, o Judiciário, não fizerem nada, vai haver um banho de sangue”. O aviso partiu de Deoclides de Paula, coordenador kaingang do Conselho Estadual dos Povos Indígenas/RS, tratando do quadro de tensão e violência na Terra Indígena Serrinha, na região do Alto Uruguai, distante 361 quilômetros de Porto Alegre.
Serrinha tem 12 mil hectares, 1.760 habitantes e registrou um conflito com duas mortes e número impreciso de feridos, resultado do encontro entre partidários e adversários do cacique Marciano Claudino. Os mortos seriam Bruno Batista e Lucas Caetano, ambos do grupo de oposição a Claudino.
Aconteceu no dia 16 quando cerca de 40 índios e brancos, portando armas de fogo e porretes, chegaram atirando contra homens, mulheres e crianças que haviam sido expulsas da reserva. É a versão das vítimas.
Na versão do cacique, ele teria sido a vítima de um atentado - alega que sua camionete Hilux foi alvejada - e não teria envolvimento com as duas mortes. Então, seus apoiadores, agredidos, teriam partido para a desforra.
O papel dos plantadores de soja
O pivô do litígio é o arrendamento da terra para agricultores brancos. A prática é ilegal mas existe há mais de 70 anos com a complacência primeiro do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e hoje da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Defendendo a parceria com os plantadores de soja, Claudino tem afirmado que não há irregularidades nos arrendamentos e que os proventos das terras arrendadas são divididos igualitariamente, sem favorecimentos pessoais.
Não faltaram advertências sobre a iminência do confronto. Em setembro, o Conselho de Anciãos de Serrinha lançou “um pedido de socorro” às autoridades. Em 2020, o mesmo apelo foi dirigido à Funai e ao Ministério Público Federal (MPF) sem resultado algum. “Se nada for feito hoje, haverá sangue indígena derramado amanhã”, profetizaram os velhos da aldeia.
Atrás das mortes, indiretamente implicado, estaria justamente o agronegócio mais predatório, aquele representado por fazendeiros e granjeiros que aliciariam lideranças, minando a boa convivência na comunidade Kaingang. “Não-indígenas financiam indígenas visando que a terra fique na mão de outras pessoas”, acusou Deoclides de Paula. “Criaram-se cooperativas (de indígenas) que servem de fachada para os plantadores de soja mandarem (na terra indígena)”, apontou.
“Algo pior pode acontecer em Nonoai”
“A gente denuncia pra polícia e os órgãos públicos mas a justiça é muito lenta. Enquanto isso, o povo é massacrado. O que acontece na Serrinha também acontece em Nonoai, Ventarra e Ligeiro (terras indígenas da mesma região)", contou, citando a subnutrição das crianças e a expulsão de famílias que contestam o poder local.
Ele lastima a degradação dos relacionamentos e dos costumes que atribui “à ganância” e ao “poder imenso” do agronegócio nas terras indígenas. “Tem tudo a ver com o governo que não diz 'não' (às ilegalidades e à violência)”, denunciou.
“Tenho medo de ser assassinado”
Deoclides de Paula criticou as autoridades pela insistência em legalizar a soja dentro das reservas com os TACs (Termo de Ajustamento de Conduta). Na sua visão, a Funai e o MPF não se cansam de assinar TACs que acabam descumpridos pelo cacique.
Ele advertiu que algo pior poderá acontecer em Nonoai. “Será um banho de sangue maior. Os dois lados estão armados.”
O líder Kaingang deu seu testemunho durante debate virtual promovido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) com o tema “Impactos dos arrendamentos nos modos de ser dos povos indígenas”. O clima de apreensão é tão grande que ele não esconde sua inquietação. “Estou a 80 quilômetros da minha casa e tenho medo de ser assassinado”, revelou.
“Queriam matar nosso cacique”
Sobram razões para receio com Nonoai, a maior terra indígena do estado, com 20 mil hectares e 2.638 habitantes, abrangendo população Kaingang, a maioria, e Guarani.
No dia 11 deste mês, um grupo fortemente armado atacou a casa do cacique Luis Jacinto, da comunidade de Pinhalzinho – uma dos aldeamentos da reserva. Seriam 11 enviados do cacique de Nonoai, José Orestes do Nascimento.
Jacinto estava ausente mas o bando crivou de balas as paredes da sua casa e de mais duas residências, quebrando portas e janelas. Tinham “armas de grosso calibre incluindo pistolas automáticas e disparando em torno de 200 tiros”, indicou o cacique de Pinhalzinho.
“Vieram com armamento pesado. Queriam matar nosso cacique”, reforçou um kaingang de Pinhalzinho, pedindo que sua identidade seja ocultada para evitar represálias.
Os agressores também detiveram quatro líderes da aldeia. Aldori Loureiro, Isaías Fortes, Júlio Fortes e Alexander Gonçalves teriam sido sequestrados e agredidos com coronhadas e torturados pelos captores. Ficaram três dias sem comer nem beber, encarcerados na cadeia controlada por Nascimento situada na localidade de Vila Alegre, também pertencente à reserva.
Filho do cacique já foi prefeito
As raízes da rixa estão na cooperativa Copinai, controlada por Nascimento. Os Kaingang de Pinhalzinho queixam-se de não ver o resultado do arrendamento de 1,2 mil hectares para os fazendeiros. Cada hectare arrendado renderia três sacas de grãos aos índios. Na soma de um ano, são 3,6 mil sacas, representando uma soma aproximada de R$ 600 mil. “A comunidade fica esperando os recursos que não vem”, ponderou o mesmo morador.
A reação de Pinhalzinho, então, foi eleger seu próprio cacique, o que aconteceu em julho. Nascimento não gostou e teria demonstrado seu desagrado do modo mais enfático. Erpone e Marcos Nascimento, filhos do cacique, teriam sido flagrados no atentado por uma câmera de vigilância. Pedindo providências, Jacinto entregou um pendrive com as imagens do ataque à Polícia Federal.
Erpone é ex-prefeito de Gramado dos Loureiros, cidade próxima, eleito pelo antigo PPS, hoje Cidadania. Ele, o pai e um funcionário da Funai foram condenados em 2019 pela 1ª. Vara Federal de Carazinho (RS) e intimados a devolverem mais de R$ 4 milhões à reserva. Através de arrendamentos a não-indígenas teriam se apropriado dos valores cobrados dos arrendatários.
O cacique Nascimento suspeita que seus opositores querem se apropriar da cooperativa hoje sob seu domínio. Jacinto nega, dizendo que sua comunidade não tem nenhum interesse no assunto.
“Se tem não-indígena, não pode”
Criticando a Funai, o procurador do MPF/MT, Ricardo Ardenghi, notou, no mesmo debate promovido pelo CIMI, que a fundação erradamente autoriza “organizações mistas” - integradas por índios e brancos – a abrirem lavouras.
“Se tem não-indígena não pode”, sentenciou. Sublinhou que o artigo 18, do Estatuto do Índio, veda expressamente não só o arrendamento mas a caça, pesca ou coleta em reservas por parte de qualquer um que não seja indígena.
Ardenghi ressalta, porém, que simplesmente acabar com os arrendamentos não resolve nada por si só. Antes será preciso implantar políticas públicas que protejam as comunidades do desamparo. Ele pergunta, aliás, por qual motivo a Funai não emprega a mesma energia que usa ao defender os arrendamentos para trabalhar pela abertura de linhas de crédito rural para as aldeias, permitindo que os próprios indígenas semeiem e colham na sua própria terra.
Enquanto isso, o MPF/RS garante que o policiamento da Brigada Militar continuará em Serrinha “por tempo indeterminado” e que monitora a situação.
A reportagem tentou mas não conseguiu contatar os caciques Marciano Claudino e José Orestes do Nascimento. Quando puderem ser ouvidos, suas versões sobre os fatos serão acrescentadas à matéria.
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Edição: Marcelo Ferreira