Diplomacia brasileira e o histórico Itamaraty estão sendo atingidos tanto por chanceleres inaptos
A reportagem de Jamil Chade “País faz diplomacia paralela com extrema-direita, Opus Dei e negacionistas” é simplesmente devastadora. No texto, nosso grande repórter da editoria Internacional segue os passos das viagens e encontros de Angela Vidal Gandra Martins, secretária nacional da Família, na pasta comandada pela ministra pentecostal Damares Alves. A número dois do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (mdh.gov.br) é filha do renomado jurista conservador Ives Gandra Martins e irmã do ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho. Se me permitem a ironia, Angela dá um “toque de classe” (de classe dominante eu diria) numa das pastas com desempenho mais absurdo dentro do desgoverno Bolsonaro.
A secretária nacional também é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, não por acaso, instituição a qual o ministro da Educação, Milton Ribeiro, faz parte. O titular do MEC, além de filósofo e teólogo, também é bacharel em direito. A agenda conservadora de Gandra Martins tem absoluta coerência com as articulações que ocorrem dentro do país sob os desmandos do governo federal, e com a pregação difusa da extrema direita ocidentalizada. Vejamos as peripécias.
Chade nos informa que a secretária, mesmo estando de férias, participou do evento Prayer Breakfast (Café da manhã de oração), ritual neoconservador estadunidense que rendeu até um documentário, disponível na plataforma Netflix Brasil, The Family – Democracia Ameaçada. Particularmente, assisti a todos os episódios e se trata de um grupo de pressão para formar uma elite dirigente dentro dos EUA. Obviamente, com o excedente de poder gerado através do “cinturão bíblico” e das congregações mais à direita, tais atividades ganham dimensão internacional. Na mescla entre sionismo e protestantismo, alinhados com o neopentecostalismo.
O evento que a secretária participou ocorreu na Ucrânia, onde Angela Gandra encontrou-se com Anna Purtova, deputada nacional do “partido político” Servidores do Povo. Coloquei aspas, porque se trata do mesmo setor do ex-comediante e sionista Volodymyr Zelensky. O presidente ucraniano, além de aliado da entidade colonial que promove o apartheid na Palestina Ocupada, também está conhecido mundialmente por constar na lista mais recente dos Pandora Papers. O presidente foi associado ao oligarca de dupla nacionalidade ucraniana e israelense, Ihor Kolomoisky, um dos multimilionários que caiu em desgraça em Tel Aviv ao se reaproximar do Kremlin. Volodymyr vinha com um pacote de lei taxando os milionários do país e com uma agenda pró-conservadora e sionista. Com a revelação das contas em paraísos fiscais, mais uma vez demonstra que, como político, é um talentoso ator.
A deputada Purtova, além de reproduzir a política do Prayer Breakfast – por sinal, evento do qual o deputado ultraliberal gaúcho Marcel Van Hattem já participou – ocupa importante lugar no Parlamento do Conselho dos Países do Mar Negro, através de delegação do parlamento ucraniano. Logo, para além da pauta de costumes, a política profissional opera com tratados internacionais, os quais podem ser facilitados pelas simpatias mútuas na agenda da extrema direita.
Além de contatos com a extrema direita pentecostal e conservadora oriunda dos EUA, a Ucrânia, segundo Chade, está recebendo a extrema direita católica de origem polonesa da Ordo Iuris. Importante assinalar que tanto Polônia como o seu país vizinho são a fronteira física da OTAN na Europa do Leste e, ambos os países, geram a tensão necessária contra a presença militar russa e as tensões no Mar Negro e no Báltico. A organização que se afirma como “um Instituto Legal” traz a seguinte preocupação:
“Todos os dias as pessoas são confrontadas com várias ideologias radicais que questionam agressivamente a ordem social existente. Essas ideologias não visam melhorar ou curar a sociedade, mas, em vez disso, procuram destruir seus próprios alicerces, incluindo o alicerce para a Polônia que é claramente confirmado e afirmado pela Constituição polonesa” (a tradução é nossa).
Já na Espanha, Angela Gandra Martins esteve, evidentemente, em contato com a Opus Dei. Organização da extrema-direita católica, com ampla e longa presença na América Latina, era o braço oficioso da ditadura fascista de Franco no quesito “pensamento religioso e ordem social”. A jurista brasileira encontrou-se, segundo Chade, com o ministro Andrés Ollero, alguém simplesmente odiado tanto pela esquerda como pela social-democracia espanhola e representante de um pensamento ainda franquista.
Como se não bastasse, tanto a ministra Damares como o filho 02, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP, atendendo pela alcunha de “Bananinha”), como a colega Bia Kicis, assim como o próprio presidente Jair Bolsonaro, estiveram com uma jornalista do portal de extrema direita alemã, Querdenken. Segundo a DW, empresa pública de comunicação da República Federal da Alemanha, o portal negacionista é alvo da inteligência interna e tem vínculos com os neonazistas. Ou seja, o mandatário do Brasil recebe uma emissária de grupo político que é objeto de investigação federal por pregação anti-vacina e contra a Covid-19.
Antes, em julho, Bolsonaro recebe fora da agenda uma deputada alemã que é neta de um ministro de Adolf Hitler. Quando da visita, a política Beatriz von Storch afirmou que “fortalecer suas conexões com o Brasil” e também “defender nossos valores cristãos e conservadores em nível internacional”. Podemos observar que há um padrão no discurso daquilo que a entidade sionista chama de “diplomacia pública”, com enlaces entre entidades privadas, empresas de comunicação social, presença transnacional em redes sociais e, seguramente, formas de apoio para as eleições gerais. Outro padrão é o tipo de “aliado” escolhido pelo bolsonarismo. Assim como o portal que nega a ciência, a AfD (Alternativa para a Alemanha), o partido de von Storch, também é alvo do serviço de segurança interna e classificado como “suspeito de atentar contra os valores constitucionais do país”.
Infelizmente, retirar o ex-chanceler Ernesto Araújo não bastou para que a política externa brasileira seguisse marcada pelas pegadas da extrema direita e do sionismo. Em artigos posteriores seguiremos marcando essa trajetória nefasta e o dano que causa a nosso país. Contudo, cabe ressaltar que a “estética” do Tiozão segue presente. A comitiva de Bolsonaro que o acompanhou para dar vexame na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, contava com a presença do ministro de relações exteriores, Carlos Alberto Franco França. Para não destoar de seu colega Marcelo Queiroga, que fez gesto obsceno para manifestantes, o diplomata preferiu ser mais engajado, fazendo dedo de arminha, um dos símbolos da campanha bolsonarista de de 2018.
Concluímos com mais esta evidência. Infelizmente, a muito respeitada diplomacia brasileira e o histórico Itamaraty estão sendo atingidos tanto por chanceleres inaptos, como por relações paralelas que contaminam e afetam a imagem do Brasil. Se a vontade derradeira de Ernesto Araújo é projetar a imagem do Brasil como um pária, o seu legado está sendo cumprido à risca.
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira