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Cozinha Solidária da Azenha resiste contra a volta da fome no Brasil da pandemia

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Em Porto Alegre, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) instala sua 21ª Cozinha Solidária - Foto: Heitor Jardim/ Amigos da Terra Brasil
O que vemos hoje é a omissão Estatal no atendimento emergencial para atenuar a fome

A dor da fome é dificilmente compreendida por aqueles que sempre tiveram seus pratos cheios. O aumento da desigualdade e a ampliação da população em condição de insegurança alimentar é uma realidade vivida por 9% da população que passa fome hoje no país, quadro aprofundado pela pandemia de covid-19 e pela crise econômica. 

De acordo com relatório da Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Alimentar e Nutricional, mais de 116,8 milhões de pessoas vivem hoje sem acesso pleno e permanente a alimentos. Os números revelam um aumento de 54% no número de pessoas que sofrem com a escassez em sua alimentação, se comparado a 2018. 

Com a taxa de desemprego em 14,1% no segundo trimestre de 2021, atingindo 14,4 milhões de brasileiros, e a inflação a 10,25% (IPCA), o maior índice para setembro desde o início do plano real, o quadro não é surpreendente. Especialmente para quem está vivendo essa realidade. 

Vemos ao longo dos últimos anos o aumento do valor dos alimentos nos mercados, a troca da carne por restos de ossos e os jornais fazendo malabarismos narrativos para apresentar como pautas positivas o aumento da inflação e da escassez no acesso aos alimentos. Somado a isso, o valor do botijão de gás, a cerca de R$100,00, torna o retorno do uso do fogo à lenha uma saída comum para boa parte parte dos lares do país, com a lenha de graça na queima de resíduos de madeira.

Nesse contexto, torna-se cada vez mais urgente a atuação do Estado na assistência social. Mas não é o caso do Brasil de Bolsonaro. O que vemos hoje é a omissão Estatal no atendimento emergencial para atenuar a fome. Com a inação ideológica do governo, a rede de solidariedade dos movimentos sociais está tomando essa frente.  

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, contabiliza 5.000 toneladas de alimentos doados desde o início da epidemia de covid-19, atendendo periferias urbanas e rurais de todo o país. Com o mesmo objetivo de solidariedade em rede, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) inaugurou, até agora, 21 Cozinhas Solidárias pelo Brasil, sendo a mais recente em Porto Alegre (RS).

Inspirado nas cozinhas comunitárias criadas nas periferias de Buenos Aires, na Argentina, que com apoio popular se tornaram política pública, o MTST já trabalhava com este modelo em suas ocupações desde 2017. Com a pandemia, buscou intensificar a atuação para além dos territórios em que já é presente. 

A coordenadora nacional do projeto, Ana Paula Perles, coordenadora nacional do MTST, conta que inicialmente foram doadas cestas básicas durante cerca de três meses em periferias de todo o país. Com o aprofundamento da pandemia, o movimento entendeu a urgência de aprimorar o trabalho realizado, e cruzou os aprendizados das cozinhas comunitárias para criar as Cozinhas Solidárias.

O projeto iniciou, neste ano, a partir das primeiras em Alagoas, Roraima e São Gonçalo (RJ). A iniciativa garante atendimento de 100 marmitas por dia, em média, em todas as 21 unidades espalhadas pelo país, custeadas com a arrecadação mensal pelo Apoia.se, por meio de doações de voluntários e editais. Além dos três estados já citados, também há cozinhas solidárias em São Paulo, no Distrito Federal, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Sergipe e Rio Grande do Sul. O plano é chegar a 26 locais de alimentação popular.


Uma das características do projeto Cozinhas Solidárias é o plantio de hortas para aproximar as comunidades dos cuidados e usos dos alimentos / Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil

Assim como desenvolvido em outras cozinhas espalhadas pelo país, em Porto Alegre o projeto surge a partir das experiências desenvolvidas nos espaços de atuação do movimento: na ocupação Povo Sem Medo, no bairro Sarandi; no Condomínio Sr. do Bonfim, também no Sarandi; e no condomínio Irmãos Maristas, no Timbaúva - locais afetados pela remoção da comunidade da Vila Nazaré para ampliação da pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho. 

A estimativa é que cerca de 10.500 pessoas foram atendidas nesses sete primeiros meses de funcionamento das cozinhas no Brasil. Ao todo, 109 toneladas de refeições foram entregues, com a parceria de associações, sindicatos, MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), MST, grupos religiosos e institutos.

Ana conta que a cozinha tem esse primeiro papel de alimentar e de conscientizar criticamente para o momento que vivemos: “Por que tem fome? Por que a gente tem um trabalho solidário? Por que a comida vem do MPA, vem do MST? A gente faz todo esse trabalho de politização e também de atendimento jurídico, de saúde, psicológico, também trabalha reforço escolar com as crianças, então é um trabalho que avança para além da alimentação”, explica Ana. Algumas cozinhas implementaram bibliotecas comunitárias, além de hortas para cuidado e uso da comunidade.

Cozinha Solidária em Porto Alegre é despejada para atender aos interesses da especulação imobiliária. Mas a luta continua!

Na manhã dessa quarta-feira (13), a Polícia Federal, com apoio da Brigada Militar, realizou o despejo da Cozinha Solidária da Azenha, numa área central da capital gaúcha. A medida entrega à iniciativa privada, via leilão, a área e o prédio da União, que estava ocupado pelo MTST desde o dia 26 de setembro para a implementação da iniciativa. Nesses 18 dias de ocupação, a Cozinha Solidária serviu cerca de 3 mil refeições, uma média de 150 a 200 marmitas por dia, a mulheres, mães-solo, pessoas em situação de rua e trabalhadores, em especial, de aplicativos.


Despejo da Cozinha Solidária da Azenha em Porto Alegre (RS) / Foto: Heitor Jardim/ Amigos da Terra Brasil

O imóvel da União não era usado há anos e estava praticamente abandonado. Para deixá-lo em condições de uso, integrantes do MTST e apoiadores realizaram mutirões para roçar e limpar o terreno, onde instalaram um gazebo que abrigou a cozinha. Também já tinham dado início a uma pequena horta com o plantio de temperos, verduras e legumes. O pedido de reintegração de posse da União partiu da Secretaria Especial de Desestatização e Desinvestimento do governo Bolsonaro, e foi prontamente atendido pela juíza da 10ª Vara Federal de Porto Alegre (TRF4), Ana Maria Wicket Theisen.

O MTST apresentou recurso ao Tribunal de Justiça e diversos pedidos de reconsideração à juíza, mas o último deles foi negado na terça-feira (12). “O imóvel, que estava, há décadas, em estado deplorável e sem cumprir sua função social, apenas aguardando o momento para servir aos conchavos da especulação imobiliária porto-alegrense, agora se tornou um reduto de combate à fome, à carestia e à pandemia neoliberal que se disseminou pelo país no governo Temer-Bolsonaro-Guedes”, criticou em nota a organização Amigos da Terra Brasil, que apoia ativamente a Cozinha Solidária da Azenha. Mais uma vez, Estado e Justiça cederam aos interesses do mercado e transformaram um terreno, que tinha passado a cumprir sua função social, em mais uma propriedade para especulação imobiliária.

Logo após o despejo, a Cozinha Solidária foi montada provisoriamente num imóvel cedido por uma moradora do bairro que apoia e fez doações ao projeto. Mesmo ontem, apoiadores já entregaram os almoços na praça Princesa Isabel, no próprio bairro, com o apoio de taxistas do ponto que fica no local. O MTST está pressionando prefeitura e governo estadual para cederem um imóvel em definitivo a fim de seguir com o trabalho de alimentar quem tem fome.

Quem tem fome tem pressa! Contribua com a Cozinha Solidária da Azenha!


Cozinha Solidária da Azenha precisa da tua ajuda para seguir funcionando / Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

O Estado brasileiro permanece omisso frente ao aumento da fome, mas é implacável ao defender os interesses daqueles que colocam o lucro frente à vida. A Justiça, por sua vez, segue criminalizando a fome no país, como pudemos ver na prisão de mãe de cinco filhos, acusada de furtar uma Coca-Cola de 600 ml, dois pacotes de massa Miojo e um pacote de suco Tang em um supermercado da Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo.

Em tempos sombrios como o que vivemos, nossa saída é nos organizarmos e nos apoiarmos entre nós mesmos. A rede de solidariedade à Cozinha da Azenha é grande. A comunidade do entorno, movimentos sociais, organizações de trabalhadores e religiosas abraçaram o projeto, em uma rede de apoio que tem se fortalecido e ampliado dia após dia.

Mas precisamos ampliá-la! Colabore com alimentos, ajudando na cozinha ou com doações em dinheiro de qualquer valor pelo PIX [email protected] (e-mail).

Pelo cumprimento da função social, pela solidariedade e pelo combate a todas as indignidades que assolam nosso país, entre elas a fome, conclamamos que a sociedade se una em defesa da Cozinha Solidária do MTST! 

*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira