Os mecanismos que possibilitam a extrema mobilidade de capitais têm uma licitude relativa
O termo “regime de acumulação predominantemente financeiro” é objeto de estudo de relevantes economistas heterodoxos. Neste artigo, dando sequência no anteriormente publicado na mesma temática, realizamos um diálogo já clássico analisando o movimento do capital no sentido da hegemonia financeira, localizado na primeira década após o fim da Bipolaridade, também chamada de Guerra Fria. Para tal, trazemos uma leitura básica de Alain Chesnais e de José Carlos Braga.
Sobre regime de acumulação e domínio financeiro, para Chesnais (2000, p.16) este conceito designa dois fenômenos. “O primeiro é a reaparição maciça, junto ao salário e ao lucro e, ao mesmo tempo, fazendo pagar acréscimo de impostos, das receitas resultantes da propriedade de títulos de dívidas e de ações”. Já o segundo fenômeno está diretamente ligado ao papel representado pelos mercados financeiros “na determinação das principais grandezas macroeconômicas (consumo, investimento, emprego).” Tal determinação se dá no:
“papel regulador” das finanças é exercido de múltiplas maneiras: pela fixação do nível das taxas de juros; pela determinação da parte dos lucros que é deixada aos grupos para investir sem medo de sofrer a sanção dos acionistas ou de dar aos rivais os meios para fazerem oferta pública de ações; pela força dos mecanismos que ela faz pesar sobre os governos para lhes impedir de sustentar as taxas de investimentos e para empurrá-los à privatização e à desregulamentação. (CHESNAIS, 2000, p.16)
O que se entende aqui por dominação financeira da acumulação capitalista, ou ainda “financeirização”, implica uma definição do padrão sistêmico Sobre o conceito de financeirização, Braga (1997, p. 196) afirma que:
[…] trata-se de um padrão sistêmico porque a financeirização está constituída por componentes fundamentais da organização capitalista, entrelaçados de maneira a estabelecer uma dinâmica estrutural segundo princípios de uma lógica financeira geral. Neste sentido, ela não decorre apenas da práxis de segmentos ou setores – o capital bancário, os rentistas tradicionais – mas, ao contrário, tem marcado as estratégias de todos os agentes privados relevantes, condicionado a operação das finanças e dispêndios públicos, modificado a dinâmica macroeconômica. Enfim tem sido intrínseca ao sistema tal como está atualmente configurado.
Podemos assim apontar que a “mundialização da economia” e a “vitória do mercado” formam a materialização da presença cada vez maior das trocas entre empresas Transnacionais (TNCs, na modalidade B-2-B) e também nas trocas intra-grupos, dentro de conglomerados, entre matrizes e filiais. De acordo com Chesnais (2000, p.8), após vinte anos de concentração, aquisições e fusões, o domínio do capital financeiro como força motriz da mundialização capitalista se dá através de algumas instituições-chave:
As instituições em questão compreendem os bancos, mas sobretudo as organizações designadas com o nome de investidores institucionais: as companhias de seguro, os fundos de aposentadoria por capitalização (os Fundos de Pensão) e as sociedades financeiras de investimento financeiro coletivo, administradoras altamente concentradas de ativos para a conta de cliente dispersos (os Mutual Funds), que são quase sempre as filiais fiduciárias dos grandes bancos internacionais ou das companhias de seguro. Os investidores institucionais tornaram-se, por intermédio dos mercados financeiros, os proprietários dos grupos: proprietários-acionários de um modo particular que têm estratégias desconhecidas de exigências da produção industrial e muito agressivas no plano do emprego e dos salários. São eles os principais beneficiários da nova configuração do capitalismo.
A financeirização implica também na perda de capacidade de tributação dos Estados e a mobilidade dos capitais, operando através das vantagens comparativas oferecidas por bancos e legislações pró-mercado. Neste sentido, qualquer coincidência com as reclamações e pressão infinita dos rentistas e parasitas financeiros sobre as propostas de “reforma tributária” não são nenhuma coincidência.
Outro problema permanente é o de fiscalização. No momento exato em que escrevemos este texto está ocorrendo a CPI da Pandemia no Senado Federal. O contrato sob a suspeita da vacina de origem indiana seria pago, em parte, para uma terceira empresa localizada em “paraíso fiscal” ou em uma Jurisdição Especial, com sigilo fiscal quase absoluto. Não se trata de exceção e sim de regra. Há permanente desconfiança que uma parcela relevante das reservas, títulos e obrigações resgatáveis, depositadas nas Jurisdições Especiais, poderiam ser de procedência duvidosa. Outra possibilidade aventada é o emprego do sigilo fiscal no país de origem, complementado pelo segredo bancário no país de destino, como forma lógica de ocultação de riquezas, evasão e elisão fiscal ou de divisas. Assim, podemos afirmar que os mecanismos que possibilitam a extrema mobilidade de capitais têm uma licitude relativa e podem ser classificados como uma forma genérica de evasão de divisas.
A globalização dos conglomerados, a mundialização capitalista tem na sua origem etimológica nas escolas de negócios, business school dos EUA cerca do ano de 1980, dando outro sentido do que havia na preocupação, por exemplo, do aquecimento global. Esta globalização referia-se “aos parâmetros pertinentes à ação estratégica do grande grupo industrial e à necessidade deste adotar uma aproximação e uma conduta ‘globais’, dirigindo-se aos mercados de demanda solvente, às fontes de abastecimento e aos movimentos dos rivais oligopólios” (CHESNAIS, 2000,P.12).
Se no início da década de ’80 do século XX, o termo se referia à projeção global de conglomerados econômicos transnacionais (TNCs), a dominação financeira também avança sobre a definição do conceito. De acordo com Chesnais (2000, p.12) “Mais tarde, com a globalização financeira, ele estendeu-se até a visão do investidor financeiro e suas estratégias mundiais de arbitragem entre as diferentes localizações financeiras e os diferentes tipos de títulos.” Chesnais também nos recorda que “para um industrial e um financista anglo-saxão, a “globalização” é realmente a “mundialização do capital” e ele não vê porque deveria se esconder disto”.
A luta política vitoriosa dentro da Superpotência reflete a vitória da dominação financeira em escala sistêmica. A mundialização capitalista não aboliu a existência concreta de Estados, territórios, povos, ordenamentos jurídicos, sociais e as soberanias conquistadas formalmente através da Organização das Nações Unidas. Mas, com o fim da Bipolaridade e o triunfo da OTAN frente ao Bloco Soviético, o espelhamento da vitória política conservadora de domínio financeiro dentro dos EUA ganhou ainda mais espaço de reprodutibilidade em países fortes e aliados, como os membros do G7 na década de ’90 do século XX. Segundo Chesnais (2000, p.16), o ordenamento social dos Estados Unidos reflete uma profunda hierarquização social mesmo sob ordem democrática-liberal:
É nos Estados Unidos que se vê uma adequação, mais perfeita do que em qualquer outro grande governo “civilizado”, do sistema político e da filosofia social em relação às necessidades de uma valorização do capital livre de qualquer freio. Foram eles, no entanto, que tomaram a iniciativa, mais do que outros membros do G7, de publicar em editais, antes de tudo, as políticas de ajuste estrutural e mais tarde de liberalização e desregulamentação financeira e comercial. Estas políticas são aquelas que melhor correspondem tanto a seus interesses de grande potência, quanto àqueles de seus lobbies.
O fenômeno da mundialização do capital tem uma temporalidade que não se inicia no final da Guerra Fria, mas ganha contornos “globais” com a ideia difundida de “vitória do mercado” em todo o planeta. O neoliberalismo aplicado através da revolução conservadora nos EUA e Inglaterra traz um paradoxo para esses países, onde o avanço dos direitos sociais ocorrido progressivamente a partir da década de 1930, vai perder a infraestrutura material através da captura do Estado capitalista pelos capitais dominantes e também no avanço da legislação que libera o pleno movimento desses mesmos capitais, privatizando serviços públicos e tributando regressivamente sobre o salário e o consumo. O modelo é mundializado, mas sua aplicação encontra diferentes formas de resistência nos territórios onde tenta se estabelecer como “novo normal” destas sociedades na década de 1990 do século XX.
O pleno movimento dos capitais após a vitória na Guerra Fria opera com uma estrutura já pré-existente, retro-alimentando a “economia paralela”: os Paraísos Fiscais ou Jurisdições Especiais (JE). No Brasil do tempo presente, o uso destas formas pouco ortodoxas de pagamento em se tratando de compras de governo pode resultar em um gigantesco imbróglio político, policial e judicial. Infelizmente, tal não se trata de exceção e sim de regra do regime de acumulação sob o domínio financeiro.
REFERÊNCIAS
BRAGA, José Carlos. Financeirização Global in: TAVARES, CONCEIÇÃO, Maria da. & FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização, Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997, p. 195-242.
CHESNAIS, François. Mundialização: o capital financeiro no comando. In Revista Outubro, Número 05 – edição de fevereiro de 2001. Disponível em: <http://outubrorevista.com.br/mundializacao-o-capital-financeiro-no-comando/>. Acesso em: 15 jun. 2020.
Obs: O texto de Alain Chesnais foi publicado em Les Temps Modernes, 607, 2000 e reproduzido com a permissão do autore da revista. Tradução de Ruy Braga.
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Revista Manutenção.
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira