No dia 1º de setembro, a Casa de Referência Mulheres Mirabal, que acolhe mulheres vítimas de violência, teve a energia elétrica cortada pela CEEE Equatorial em razão da falta de pagamentos da conta. Quase 40 dias depois, representantes do projeto participaram de uma reunião na manhã desta quarta-feira (6) com representantes da companhia de energia e da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS) para negociar um acordo que permita o religamento da luz.
A Casa de Referência Mirabal surgiu inicialmente como uma ocupação que abrigava mulheres vítimas de violência na Av. Duque de Caxias, no Centro de Porto Alegre, em dezembro de 2016. Após a Justiça determinar a reintegração de posse do primeiro imóvel, as representantes do projeto e as mulheres acolhidas ocuparam, em setembro de 2018, um prédio que pertencia à antiga escola estadual Benjamin Constant, no bairro São João, que foi fechada durante o governo Sartori e o seu terreno devolvido para a Prefeitura, proprietária original da área. Após a ocupação da antiga escola, a Prefeitura perdeu em primeira instância o pedido de reintegração de posse e ainda aguarda o julgamento do recurso em instâncias superiores.
Defensora do Núcleo de Defesa da Mulher, Tatiana Kosby Boeira explica que a duas questões que envolvem o corte de energia da luz: a falta de pagamento das contas e o débito que o imóvel tem com o sistema de energia. Um dos problemas está relacionado ao fato de que não se sabe exatamente de quem é a reponsabilidade pelo consumo de energia nos últimos anos, uma vez que a Mirabal ocupa apenas um prédio anexo da antiga escola, que hoje é ocupada por dois policiais militares cedidos pelo governo do Estado para fazer a segurança da área e que moram no local. Proprietária do terreno, a Prefeitura se recusa a pagar a conta em razão da ocupação.
Atualmente, a Mirabal acolhe cinco mulheres e nove crianças. “A gente sem a luz está tendo vários gastos com gelo, Uber para transportar as crianças para tomar banho, as atividades de geração de renda estão todas paradas. Isso acaba sendo um ataque ao serviço e às mulheres que moram aqui e dependem da Casa”, diz Nana Sanches, da coordenação da Mirabal.
Segundo Tatiana, a CEEE Equatorial apresenta um histórico de contas em atraso que geram um débito de R$ 40 mil. Como encaminhamento da reunião desta quarta, ficou acertado que a companhia de energia deve apresentar ainda nesta semana, possivelmente hoje, uma proposta inicial de parcelamento dos débitos para que a Mirabal possa pagar e ter a energia religada.
“A nossa esperança é que eles façam uma proposta que elas possam pagar de entrada. O restante do parcelamento vai depender de uma vistoria para ver quem é realmente o titular do débito. Talvez tenhamos que chamar o Estado para pagar parte desse débito, porque nos parece que não é todo da Mirabal. E, a partir do momento que pagar a primeira parcela desse acordo, eles mandam religar a luz, o que a gente espera que seja o mais rápido possível”, diz a defensora.
Outro encaminhamento da reunião foi a decisão de que a Mirabal poderá instalar um novo relógio medidor de consumo que seja referente apenas ao prédio ocupado, separando do restante da escola, para que seja possível aferir o consumo relativo ao centro de referência.
Nana Sanches afirma que a Mirabal sequer recebia a conta de luz. “A gente recebeu uma, faz bastante tempo, e chegou a pagar. Veio no nome da Prefeitura ainda. A gente pagou e apresentou para a Prefeitura”, diz.
Segundo ela, com a separação dos relógios, a Mirabal poderia assumir a responsabilidade pelas contas futuras. “Com certeza, a gente consegue pelo menos fazer o nosso planejamento, ver quanto a gente gasta, e consegue pagar”, diz.
Negociação para a permanência
Paralelamente à discussão sobre o religamento da energia, a Defensoria Pública do Estado também está mediando junto a Prefeitura a negociação sobre a posse do imóvel ocupado. Na última segunda-feira (4), foi realizada uma reunião com a Procuradoria-Geral do Município (PGM) em que ficou definido que a DPE irá protocolar ainda nesta semana junta à Prefeitura um Termo de Permissão de Uso Gratuito do Terreno.
“A nossa intensão é legalizar a situação do prédio onde a Mirabal está instalada”, diz a defensora Tatiana. “A Prefeitura entrou com uma ação de reintegração de posse e perdeu em primeiro grau, o juiz reconheceu a boa fé delas e manteve a posse. Isso está pendente de recurso e um dos assuntos da reunião com a PGM foi tentar mantê-las na posse daquele imóvel. E aí a primeira condição imposta pela Prefeitura foi a legalização da situação. A gente está encaminhando, elas têm estatuto, elas têm CNPJ, estão fazendo as inscrições nos órgãos de assistência social e também estamos encaminhando esse Termo de Permissão do uso gratuito do imóvel para que elas fiquem lá”.
Ela avalia que um possível empecilho para a cessão do prédio para a Mirabal é a possibilidade da Secretaria Municipal de Educação (Smed) reivindicar o prédio da antiga escola, mas pondera que isso também não precisaria ser um impeditivo, pois a Mirabal está sediada apenas no prédio anexo. Ela ressalta que o termo de cessão de uso se refere apenas à área do anexo. “Agora que o diálogo abriu, vamos ver se progride para a gente deixar de conviver com o fantasma da reintegração de posse, que é o que a gente tem mais medo”, diz Nana Sanches.
Procuradora-geral em exercício, Eleonora Serralta avalia que há quatro questões importantes relacionadas à Mirabal: a posse do imóvel, a situação da luz, a atividade desempenhada pelo movimento e a situação das mulheres vítimas de violência. “Para mim, de todos os assuntos, o último é o mais importante”, diz. “Com relação às mulheres acolhidas, o município coloca e sempre colocou à disposição as nossas instituições, como a Casa Lilás. Se as pessoas quiserem sair, quiserem ir para alguma casa do município, tem vaga”, complementa.
Sobre o corte de luz, a procuradora diz que, como a posse do imóvel foi concedida pela Justiça, a Mirabal já poderia ter solicitado a transferência da conta para o nome da entidade. Além disso, afirma que a decisão de pedir o corte nunca passou pela Prefeitura.
A respeito da iniciativa em si, Eleonora afirma que a discussão na PGM não passa por aprovar ou não a continuidade da Mirabal e que, a nível pessoal, tem simpatia pelo projeto, mas que o problema é o fato de ser uma iniciativa de prestação de serviços totalmente informal, uma vez que não é credenciada em nenhuma entidade que regula a prestação do serviço de acolhimento de mulheres em situação de violência.
“Eu não tenho nenhuma capacidade de dizer se a Mirabal é uma boa instituição ou não. Eu só posso dizer que não é regular. Se fosse uma casa noturna, seria uma casa noturna sem alvará e sem PPCI. Pode ser linda e maravilhosa, mas não está apta para funcionar”, diz. “Para que elas possam ser reconhecidas pelo poder público, elas têm que vir ao mundo da formalidade. Eu parto do princípio que elas sejam do bem, mas se não forem, como eu vou fiscalizar?”, pondera.
Por outro lado, a procuradora afirma que, a partir da reunião de segunda-feira, as partes conseguiram avançar no caminho de uma possível solução para regularizar o projeto. Ela destaca que qualquer entidade que presta um serviço social pode requerer a utilização de um próprio municipal para a realização do trabalho, o que pode ser feito de forma gratuito ou onerosa e trata-se de um procedimento até mesmo corriqueiro da administração local. “Para isso, precisa pedir, e não ocupar na calada da noite. A divergência que nós temos é essa”, diz.
Eleonora diz ainda que, uma vez que o termo de cessão do uso seja apresentado, a PGM irá conversar com os demais órgãos interessados, como a Smed, para avaliar a possibilidade da Mirabal permanecer no local. Caso isso não seja possível, ela destaca que poderia ser avaliada a utilização de outro imóvel da Prefeitura.
Edição: Sul 21