O Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha, localizada no norte do Rio Grande do Sul, divulgou nesta sexta-feira (24) um “pedido de socorro” e um alerta sobre um iminente conflito na região em função de irregularidades envolvendo o arrendamento de terras e plantio na reserva. Segundo a nota divulgada pelo Conselho de Anciãos, há 14 meses essas irregularidades foram denunciadas à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Ministério Público Federal e à 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, conhecida como 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria da República, sem que nenhuma medida fosse adotada pelas autoridades para proteger os membros do Conselho e suas famílias. Agora as famílias dos integrantes do Conselho de Anciãos estariam sendo ameaçadas de expulsão pelo grupo ligado ao atual cacique da Terra Indígena. A Terra Indígena Serrinha está situada em uma área que abrange os municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Velho, e tem uma população de cerca de 3.500 pessoas, divididas em 650 famílias da comunidade kaingang.
A nota assinala que 59% da população da Terra Indígena Serrinha não tem terras, enquanto o Cacique Marciano Claudino e sua liderança arrendam toda a área agricultável. “O arrendamento das terras indígenas é realizado por uma Cooperativa denominada Cotrisserra, que recebe 3 sacas de soja por hectare, dos plantadores não indígenas, para um Fundo de Transição que deveria executar projetos sustentáveis que nunca saíram do papel”, afirma a nota do Conselho de Anciãos. Os recursos recebidos pelo arrendamento estariam sendo utilizados exclusivamente para o plantio de monoculturas e para a compra de maquinários, deixando no abandono 387 famílias, em plena pandemia.
Ainda segundo a nota, o arrendamento das terras indígenas é ilegal e tem gerado problemas, inclusive de corrupção, desde sua implementação pelo governo federal há décadas. De acordo com os integrantes do Conselho de Anciãos, a Funai e o MPF teriam respondido que se trata de “conflitos internos” às terras indígenas. “A Funai e o Ministério Público assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta com a Cotrisserra, que nunca foi fiscalizado e nunca foi divulgado para toda a comunidade”, protesta o Conselho. A nota acrescenta:
“A população da Terra Indígena pede transparência! As famílias do Conselho de Anciãos estão ameaçadas de serem expulsas, por terem denunciado a má gestão das terras a que todo indígena teria direito! O Vice Presidente do Conselho de Anciãos, Dorvalino Fortes, adoeceu e morreu, fulminado por um ataque cardíaco, por ter sido alvo de ameaças desde julho de 2020, porque Funai, MPF e Justiça Federal não adotaram providências e não protegeram as famílias que fizeram a denúncia! Serrinha pede Justiça! Se nada for feito hoje, haverá sangue indígena derramado amanhã!”
Representantes das famílias ameaçadas realizaram, na tarde desta sexta-feira, uma manifestação em frente à Procuradoria Regional da República, em Passo Fundo, cobrando providências protetivas e de apuração do que está ocorrendo na Serrinha. Uma das filhas de Dorvalino Fortes criticou o que considera ser omissão da Procuradoria em relação ao que está ocorrendo na Terra Indígena e alertou para as consequências (ver vídeo aqui).
Arrendamento de terras indígenas é ilegal, diz advogado
Segundo Pablo Henrique Bulgos de Andrade, advogado das famílias ameaçadas, o arrendamento de terras indígenas é um problema que precisa ser encarado de frente pelas autoridades. “O arrendamento é o principal causador dos conflitos violentos e das mortes que têm ocorrido nas aldeias do Rio Grande do Sul. A Constituição Federal estabelece que as terras indígenas demarcadas são de usfruto exclusivo das comunidades que habitam aquele local. Isso significa que aquela área se destina à posse permanente de quem mora lá e somente quem mora na área pode usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos que existem nela”, destaca.
O arrendamento é absolutamente ilegal, defende o advogado. Para Pablo de Andrade, por meio do arrendamento se possibilita que terceiros (agricultores brancos), que não vivem na área, explorem a terra em troca do pagamento de um percentual pelo lucro que é obtido com aquela exploração. No Rio Grande do Sul, acrescenta, a maior parte das terras indígenas é explorada para o plantio de grãos e isso acabou dando origem a um ciclo de conflitos. “Os caciques começaram a perceber que poderiam ganhar dinheiro com isso e passaram a cobrar comissão tanto do agricultor branco quanto do ingígena que detinha uma parcela de terra cultivável dentro da aldeia para autorizar o arrendamento. Foi assim que começaram os conflitos pela liderança das terras indígenas. O poder passou a trazer riqueza”.
No dia 23 de setembro, a procuradora da República Fernanda Alves de Oliveira indeferiu um pedido de reunião para mediação do conflito na Serrinha pelo MPF, solicitado por Dorvalino Fortes, alegando que se trata de um “conflito interno” da comunidade. “O MPF vem se abstendo de participar diretamente da mediação de conflitos internos indígenas, por entender que, além de não ser sua atribuição, esse tipo de interferência acaba por fortalecer/enfraquecer um dos grupos em disputa, ainda que de forma indireta e não planejada”, diz a procuradora em seu despacho. No final da tarde desta sexta, ela recebeu duas integrantes das famílias que estariam sendo ameaçadas para conversar sobre o caso.
Cacique Marciano Claudino nega ameaças
O Sul21 entrou em contato com o cacique Marciano Claudino para ouvir sua posição sobre o caso. Segundo ele, não há risco de conflito nem há ameaça de expulsão de famílias da Terra Indígena. “Agora, as pessoas que fazem coisas erradas têm que ser responsabilizadas pelo que fazem. Essas pessoas que se intitulam anciãos venderam terras, venderam casas e agora ficam sempre querendo mais. Depois, perante vocês (imprensa), são os bonzinhos. Tudo o que contam bonito pra vocês, vocês acham maravilhoso…vocês, o Ministério Público, a Polícia Federal. Chegou bonito aí…pros antropólogos então é uma beleza”.
“Ninguém tem maldade contra ninguém”, acrescentou o cacique. “Eu perdi meu pai nestes conflitos. Hoje sou cacique e represento a comunidade. Não tenho maldade contra ninguém. Porque o que acontece é que hoje se faz, amanhã se paga….Tem pessoas que sempre ficam fazendo as coisas erradas. Uma hora ou a Justiça pega ou as medidas aqui dentro da área vão ser tomadas”.
O cacique rebateu também as críticas feitas ao modelo de arrendamento. “Vão ver nas áreas onde não têm arrendamento, como é. Hoje, na verdade, existe uma parceria entre nós e os brancos. Tudo dentro da Serrinha é repartido de forma igualitária. Ninguém é beneficiado mais ou menos. Todo mundo é igual. Agora quem não quer ser ajudado e não quer trabalhar nunca vai ter nada. Quem trabalha vai para frente, quem não trabalha vai ficar para trás. tem muita gente que quer que as coisas caiam do céu e se cair do céu tem que cair na mão ainda”, disse ainda Marciano Claudino. “O índio não tem cultura de criar patrimônio, ele vive o momento. Mas a gente tem que ver que o mundo está mudando e nossos filhos querem viver igual aos filhos do branco, querem estudar, querem trabalhar, querem ter um carro pra andar um celular, as mesmas coisas que os brancos querem”, acrescentou.
Edição: Sul 21