País mais populoso do planeta com seus 1,4 bilhão de habitantes, a China tem números que parecem rivalizar com os da astronomia pelo gigantismo. 850 milhões de chineses – o maior processo de ascensão social da história da humanidade – deixaram a linha da pobreza e 653 milhões – o triplo da população do Brasil – emigraram para as cidades.
Mas da China e dos seus números o Ocidente sabe pouco. Quem sabe mais sobre eles é a historiadora Isis Paris Maia, que trabalha em pesquisa de mestrado sobre a erradicação da pobreza no país de Xi Jinping.
Governada desde 1949 pelo Partido Comunista, a China adotou o que chama “socialismo com características chinesas” e é fortíssima candidata à maior potência do mundo. Com suas respostas, Isis conta das vitórias, contradições e percalços da revolução iniciada por Mao Tsé-Tung há sete décadas e que, hoje, prossegue em transformação.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato RS - Oitocentos e cinquenta milhões de pessoas – quatro vezes toda a população do Brasil – saíram da linha da pobreza na China. É possível dizer que, pelo fato de ter decorrido em pouco mais de 30 anos, é o mais rápido e maior processo de ascensão social da história da humanidade?
Isis Maia - Certamente. Digo mais: não somente a erradicação, como a mobilidade social em seu conjunto ocorrida na China tem sido inédita na história. Por exemplo, o IDH, principal indicador de desenvolvimento humano, passou de 0,410 em 1978 para 0,761 pontos em 2020.
Merece destaque também a China ser o único país do mundo a mudar da categoria de IDH baixo para alto desde a criação do indicador, em 1990. Lembrando que o IDH inclui variáveis de renda, educação e saúde. Isso deve-se a uma combinação de crescimento econômico com políticas públicas de combate à pobreza. Assim, o país contribuiu para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, representando mais de 70% da redução da pobreza mundial.
Todos os avanços, desde água potável, saúde e transporte até internet e TV a cabo
BdFRS - Em termos objetivos, o que estes 850 milhões não possuíam e passaram a possuir como resultado do processo em questão?
Isis Maia - O Banco Mundial definiu para a China o valor de US$2,3 dólares por dia como régua para a linha de pobreza. A título de curiosidade, o valor para a linha de pobreza global é US$1,90. Obviamente, o governo tem visado ações mais abrangentes de bem-estar, tais como bens e serviços públicos. Por exemplo, a proporção da população rural pobre com água potável aumentou de 81% em 2013 para 89,2% em 2017.
Em termos de infraestrutura, a proporção de famílias pobres em aldeias com TV a cabo aumentou de 79,6% para 96,9% entre 2013 e 2017. Além disso, a proporção de pessoas pobres em áreas rurais com acesso à Internet cresceu de 41,5% para 87,4% entre 2013 e 2017.
Em relação aos serviços públicos, a proporção da população pobre nas aldeias com acesso a serviços de transporte como ônibus, aumentou de 56,1% para 67,5% entre 2013 e 2017; a proporção de pessoas rurais com acesso à escola primária avançou de 79,8% em 2013 para 88% em 2017; e a proporção da população rural pobre com acesso a clínicas de saúde aumentou de 84,4% em 2013 para 92,2% em 2017.
Demonização via “vírus chinês” e “ameaça comunista” trava percepção do Ocidente sobre a realidade chinesa
BdFRS - Apesar destes números impressionantes, poucos brasileiros, mesmo aqueles melhor informados, sabem disso. Qual é o papel da mídia ocidental na ocultação desse processo e porque age assim?
Isis Maia - A combinação de velocidade do ciclo das notícias, a precária formação científica e as abordagens etnocêntricas formam um campo fértil para todo tipo de teoria conspiratória e negacionismo. Assim, tornaram-se comuns narrativas anti-chinesas como “ameaça comunista”, “trabalho escravo”, “ditadura”, “violações dos direitos humanos”, “campos de reeducação uigur”, “vírus chinês”, “destruição ambiental”, entre outras.
Tais narrativas se sustentam ao invisibilizar alguns feitos da China, tais como a erradicação da pobreza, crescimento seminal do IDH, a conversão no maior exportador mundial de vacinas e EPI’s em época de pandemia e a condição de líder na nova fronteira de tecnologias no ramo da sustentabilidade. O misto de silenciamento com distorção faz parte, em última instância, de disputas sistêmicas decorrentes da dificuldade do hegemon (EUA) e seus aliados em lidar com a potência emergente (China).
653 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade em 40 anos
BdFRS - Ao mesmo tempo, nos últimos 40 anos, os chineses deixaram o campo e foram para as cidades de forma maciça. Mas, segundo sua pesquisa, não houve um processo de favelização como ocorreu no Brasil e outros países capitalistas. O que ocorreu?
Isis Maia - A China tem experimentado um dos maiores processos de urbanização que se tem notícia. O país tinha 189,9 milhões de cidadãos urbanos em 1978, chegando a 842,9 milhões em 2019, passando sua taxa de urbanização de 19,3% para 60,3%. Em termos quantitativos, implica dizer que a China urbanizou 653 milhões de habitantes em quatro décadas – ou o contingente de três vezes a população brasileira.
Todo esse processo foi gerido por políticas de migração tais como o Hukou, instaurado logo após a revolução em 1949, bem como pelo planejamento urbano com forte investimento das prefeituras em infraestrutura e habitação. Outro fator a ser destacado é que a terra não está submetida à lógica de especulação imobiliária tal como nos países capitalistas.
A China é um país desenvolvimentista de orientação socialista
BdFRS - Mas nenhum processo assim, que movimenta imensas massas humanas, acontece sem também deixar sequelas. O que deu errado e é preciso consertar?
Isis Maia - Ao urbanizar 650 milhões e ver seu PIB crescer 100 vezes, o país acumulou contradições, como o aumento das desigualdades sociais, fruto dos contrastes entre o nível de produtividade agrícola e a industrial e da heterogeneidade setorial do mercado de trabalho urbano, relacionada à segmentação entre o trabalhador com registro urbano e o migrante sem registro. O índice de Gini (*) passou de 0,30 na década de 1980 para 0,491 em 2008, além de crise ambiental. Contudo, o aprofundamento do desenvolvimento chinês e a ampliação de políticas sociais têm feito a desigualdade declinar. O indicador já estava em 0,465 em 2019.
Cabe lembrar que a trajetória chinesa não difere de outras experienciadas pelo mundo desenvolvido. Os períodos de arrancada industrial combinaram contradições diversas, incluindo crescimento das desigualdades, seguido por políticas de extensão de direitos, paralelamente à construção institucional. Assim, o país revisou suas estratégias e passou a trabalhar o conceito de civilização ecológica. Entre as inúmeras políticas públicas voltadas à questão ambiental, pode-se destacar, por exemplo, o Plano Nacional de Desenvolvimento Agrícola Sustentável (2015-2030) e o Plano de Combate à Pobreza no Setor Florestal (2013-2020) – em articulação com a ONU.
BdFRS - Atribui-se essas mudanças às diretrizes dadas pelo Partido Comunista Chinês (PCCh). Em que medida a ideia do controle da economia e do planejamento, que o PCCh não dispensa, é responsável pelo sucesso das medidas?
Isis Maia - Historicamente não há exemplo de desenvolvimento sem a centralidade do Estado, bem como políticas industriais, comerciais e tecnológicas. Isso inclui os países capitalistas desenvolvidos e não menos os autodenominados liberais, como Grã Bretanha e Estados Unidos. Nesse sentido, a China é um país desenvolvimentista de orientação socialista.
Aliás, muitos acreditaram que a política de Reforma e Abertura liderada por Deng Xiaoping a partir da década de 1970 tratava-se de simples processo de liberalização. Ledo engano. A modernização e o desenvolvimento da China é fruto de planejamento e projeto nacional de desenvolvimento, com um arsenal amplo de políticas públicas voltados aos mais diversos campos. Não menos importante foram as lições tiradas do colapso do socialismo real.
75% das empresas chinesas listadas nas 500 maiores do mundo são públicas ou estatais
BdFRS - O que seria o “socialismo com características chinesas”, denominação à reinterpretação do socialismo feita pelo governo da China?
Isis Maia - O conceito surgiu em 1º. de setembro de 1982, quando Deng Xiaoping, o idealizador do termo, o apresentou na abertura do 12° Congresso Nacional do PCCh, mencionando o propósito de “construir um socialismo com características chinesas”. Sendo este a prática de governo na condução do país, baseado nos princípios científicos do marxismo e sob as condições impostas pela realidade concreta da China. Ou seja, o controle político do país está sob a égide do Partido Comunista (PCCh).
Os setores chaves da economia, de indústria de base a setores tecnológicos, estão sob direção governamental. Cerca de 75% das empresas chinesas listadas nas 500 maiores do mundo da (revista) Fortune são públicas ou estatais. O setor financeiro é outro crucial sob orientação governamental. A terra também não obedece exclusivamente a lógica de mercado.
O país, de fato, difere da economia totalmente estatizada ao estilo soviético. A China tirou lições, inclusive de suas disfunções. Sendo então o socialismo de mercado um método para solucionar a contradição primária característica na sociedade chinesa: o atraso de suas forças produtivas. Estaria o país, pois, enfrentando seu desafio básico, sem o qual outros se tornam impossíveis. Não quer dizer que não restem inúmeros outros desafios pela frente.
BdFRS - Em que consistem as “políticas públicas direcionadas”, aquelas aplicadas no 13º. Plano Quinquenal no governo de Xi Jinping? Em outros termos, quais os próximos passos da China no sentido de combate à desigualdade?
Isis Maia - Coube ao último Plano Quinquenal (2016-2020) erradicar a fome das últimas 43 milhões de pessoas, cerca de 4,5% da população. Para alcançar este ambicioso desafio, o governo empreendeu uma força tarefa realizando o programa de políticas públicas direcionadas. Isto é, políticas personalizadas para famílias as quais, por algum motivo, não se encaixaram nas ações governamentais anteriores nem foram alcançadas pelo crescimento econômico das últimas décadas. Em outras palavras, o programa chinês procurou lidar com desafios de famílias e grupos sociais segundo suas necessidades específicas.
Foi, pois, essa mobilização de recursos (financeiros e burocráticos) públicos que conseguiu dar conta das mais variadas particularidades étnicas, sociais e regionais para lograr a erradicação da pobreza. Para se ter uma ideia da sua abrangência em números, é possível citar que o investimento financeiro, em 2016, nos fundos especiais para redução da pobreza alocados pelos governos central e local excederam 100 bilhões de RMB (N.R.- Renminbi, moeda oficial da República Popular da China) pela primeira vez, um aumento anual de 56,1%. O governo chinês enviou um total de 775.000 funcionários para viverem nestas aldeias por um período de 1 a 3 anos, um para cada família. Houve também um trabalho de motivação das empresas, indivíduos, ONGs e até mesmo militares para realizar este desafio de ajudar as populações mais vulneráveis.
(*) O Índice de Gini é usado para calcular a desigualdade. Situado entre zero e 1, nele zero corresponde à completa igualdade, enquanto 1 corresponde à completa desigualdade.
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Edição: Marcelo Ferreira