Rio Grande do Sul

SAÚDE

Estudo da UFRGS aponta redução de 28% em atendimentos de saúde mental na pandemia

No entanto, atendimentos em emergências aumentaram, indicando agravamento da situação

Sul 21 |
Situação se torna mais delicada porque pandemia pode ter provocado mais casos de problemas de saúde mental - Foto: Pixabay

Um estudo realizado pelo pesquisador Felipe Ornell, doutorando em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que o número de atendimentos de saúde mental pelo Sistema Único de Saúde (SUS) caiu drasticamente nos primeiros meses da pandemia de covid-19. Realizado sob orientação da professora Lisia von Diemen, do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS, “A próxima pandemia: impacto da COVID-19 na assistência à saúde mental em um estudo epidemiológico nacional” aponta que 470 mil atendimentos de saúde mental podem não ter sido realizados entre março e agosto de 2020.

Em conversa com o Sul21, Ornell explica que estudos internacionais apontam o agravamento dos índices de sofrimento psiquiátrico e mental por fenômenos relacionados à pandemia (como o isolamento social, mortes de pessoas próximas, perda do emprego, a própria experiência com o vírus, etc.) e, por outro lado, redução no acesso aos serviços de saúde na área, mas que não havia um estudo de caráter nacional a este respeito até o momento.

Como o sistema DataSUS compila o registro de todos os atendimentos feitos na área, Ornell passou então a analisar, como parte de sua pesquisa de doutorado, as estatísticas de atendimentos entre janeiro de 2016 e agosto de 2020. Ele explica que o corte foi feito em agosto de 2020 porque os dados do DataSUS têm até seis meses para serem atualizados e, como a pesquisa foi iniciada no primeiro trimestre desde ano, era preciso respeitar este intervalo.

Ornell diz que outro fator ponderado é que o número mensal de atendimentos vinha em tendência de crescimento desde 2016 até ter uma queda abrupta na maior parte dos serviços. “Com essa análise estatística, a gente conseguiu prever o que seria esperado caso não tivesse acontecido a pandemia”, diz. “A gente percebeu que tinha uma diferença bastante gritante entre o que se tinha de média de atendimento até o mês de março e o que se passou a ter depois”, diz.


Felipe Ornell, pesquisador responsável pelo estudo / Foto: Arquivo pessoal

Segundo os cálculos da pesquisa, deveriam ter sido realizados 1,668 milhão de atendimentos ambulatoriais no período analisado, mas foram realizados apenas 1,188 milhão, uma diferença de 28%. Além disso, todas as modalidades de internações hospitalares psiquiátricas também apresentaram queda significativa, de uma estimativa de 430 mil internações para um total registro de 289 mil.

O doutorando destaca que nem todos os atendimentos caíram, uma vez que atendimentos de atenção a episódios de crise, que são realizados em emergências, aumentaram. A projeção estatística é que, no período analisado, fossem realizados 20 mil atendimentos do tipo, mas o número verificado foi de 28 mil. O número de atendimentos domiciliares também foi superior ao previsto, 22 mil contra uma estimativa de 14 mil. “Isso nos leva a entender que atendimentos eletivos foram interrompidos, mas que condições extremamente graves continuaram a ser atendidas”, diz.

As internações por tentativa de suicídio permaneceram estáveis, contudo, a orientadora Lisia Von Diemen pondera que a análise dos registros para estes casos é mais difícil. “A pessoa faz uma tentativas de suicídio com medicação e ela é registrada como intoxicação medicamentosa e não como uma tentativa”, exemplifica. “Teria que fazer um estudo específico sobre a questão do suicídio para a gente entender de uma forma mais ampla os impactos nesse sentido”.

Ornell alerta que uma consequência provável da queda no número de atendimentos é que pacientes com depressão grave, transtornos mentais, transtornos causados pelo uso de substâncias, entre outras condições de saúde mental que exigem acompanhamento permanente, podem ter tido o tratamento interrompido e não retornado. Da mesma forma, pessoas que começaram a sentir sintomas podem ter tido dificuldades de acesso aos serviços de saúde mental. “Por motivos óbvios, como o isolamento social, a gente não ter EPIs (equipamentos de proteção individual), não ter protocolos bem estabelecidos e as próprias disparidades socioeconômicas do País, em que fazer um atendimento por vídeo depende do paciente ter acesso, ter um lugar com privacidade, ter crédito no celular, o que muitas vezes não é a realidade da população”, diz.

Ele destaca também que, em 2018, a Comissão Lancet publicou um relatório já alertando para a ocorrência de uma epidemia global de saúde mental e que a maioria dos países, especialmente os em desenvolvimento, tinham dificuldades de gerir e crise e investiam menos recursos do que o necessário.

“A gente precisa considerar que entre uma pessoa começar a desenvolver sintomas de depressão e entrar em processo de depressão mais crônico não é algo que aconteça de um dia para o outro ou de uma semana para a outra. Eventualmente, isso é um processo que demora anos e, às vezes, a pessoa também demora anos para buscar atendimento. Quando elas buscam, já estão em estágios mais graves da doença”, destaca.

Ornell ressalta que o Brasil é um dos países com maiores índices de transtornos mentais do mundo. “Nas últimas décadas, a gente percebe que o número de serviços de saúde mental no Brasil, principalmente os CAPS, vêm aumentando gradativamente e, consequentemente, a busca pelos serviços também”, diz.

Preocupação com a perda de acompanhamento

Orientadora da pesquisa, Lisia Von Diemen, que é vice-diretora do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que sentiu o impacto da redução nos atendimentos em saúde mental na instituição. Por outro lado, percebeu que muitos dos pacientes que chegavam para atendimento apresentavam quadros clínicos mais graves do que o esperado.

A professora destaca que, por um lado, percebeu uma queda abrupta nos atendimentos ambulatoriais nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e, por outro, aumento nos atendimentos de emergência nestas instituições. “São aqueles em que os pacientes não têm consulta agendada e aparecem precisando de atendimento. E os atendimentos nas emergências psiquiátricas também aumentaram bastante”, diz. “O que a gente viu é que aquele atendimento regular de acompanhamento, de revisão de medicação, ajuste de medicamento, sofreu um impacto enorme, o que provavelmente fez com que esses atendimentos de emergência tivessem um aumento.”

Uma preocupação que resulta desta situação é que pacientes que estavam em acompanhamento antes da pandemia em situação estável podem, em função da perda do acompanhamento, ter se desestabilizado. “Por exemplo, o paciente com transtorno bipolar, se perde o acompanhamento, pode parar de tomar a medicação e começar a ter episódios de novo. O paciente com esquizofrenia que estava sem alucinações começa a alucinar e tu não tem aquela consulta parar ajustar a medicação”, diz.

Lisia ressalta ainda que os pacientes da Psiquiatria do SUS são, em maioria, pessoas em situação de vulnerabilidade, não só pela questão financeira, mas também em decorrência das condições de saúde, o que dificulta o acesso a alternativas de atendimento durante a pandemia, como tele-consultas.

A professora diz que, passados 18 meses do início da pandemia, a situação ainda aparenta estar longe do normal e do que era esperado em termos de atendimentos consideradas as projeções. “Se a gente olhar só números de atendimentos, possivelmente já deu uma recuperada grande, mas a questão é que nós ainda estamos, por exemplo, indo atrás de pacientes que se perderam, que perderam o atendimento e ainda não retornaram. A gente sabe que muitos desses pacientes, se estão em dependência química, provavelmente recaíram, pacientes com depressão, transtorno bipolar, provavelmente estão piores e não estão procurando o recurso”, diz, acrescentando ainda que há a previsão de demanda extra por problemas gerados pela pandemia. “A gente vai ter esse represamento dos pacientes, que provavelmente pioraram, e vamos ter que dar conta de pacientes novos em função, inclusive, de luto, da perda de familiares, do isolamento, da perda de desemprego, enfim, uma série de coisas que podem levar ao aumento de transtornos mentais e do uso de substâncias. A gente viu principalmente o aumento do uso de álcool durante a pandemia.”

Edição: Sul 21