Localizado no bairro Santana, em Porto Alegre, na avenida de mesmo nome, o Condomínio Princesa Isabel, abriga em sua estrutura cerca de 200 apartamentos, onde habitam famílias de baixa renda, em sua maioria negras.
O residencial fica entre outras grandes e importantes avenidas da Capital: João Pessoa, Ipiranga e Bento Gonçalves. Cercado por terminais de ônibus, é muito próximo do Parque da Redenção e do Palácio da Polícia. Nas últimas semanas, moradores relatam constantes ações da Brigada Militar. A reportagem do Brasil de Fato RS fez uma visita para contar um pouco de sua história.
O condomínio de moradias populares foi construído pelo poder público municipal de Porto Alegre, através do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), durante a gestão do prefeito João Verle (PT), no ano de 2004.
Segundo o estudo “Produção da habitação social: adequação espacial e estratégias de geração de trabalho e renda”, o conjunto residencial consiste de oito blocos, com quatro andares cada. O acesso é controlado por portões e há espaços coletivos, como brinquedos para crianças e bancos.
Uma das moradoras do Princesa Isabel é Vitória Santana, de 26 anos, que vive no condomínio “desde que começou a se entender por gente”. Atualmente ela é presidenta da Associação de Moradores do Princesa Isabel e relatou para nossa reportagem que aquele Condomínio é fruto de “uma luta muito grande pela moradia”.
A construção do Princesa Isabel começou com a mobilização da comunidade da extinta Vila Cabo Rocha, que ficava numa região próxima, no bairro da Azenha. A vila era popularmente chamada de Vila Zero Hora, devido ao fato do terreno onde estava estabelecida a comunidade ser de propriedade da empresa de comunicação de mesmo nome.
Segundo Vitória, a mobilização começou na década de 1990, quando a ameaça das pessoas da Vila Cabo Rocha perderem suas casas se tornou uma realidade.
Construção do condomínio é fruto da resistência e organização popular
O relato de Vitória foi acompanhado e confirmado pela senhora Eurides Terezinha, de 78 anos, que atualmente é vice-presidente da Associação de Moradores. Ela recebeu a nossa reportagem em seu apartamento e contou um pouco da sua história e do condomínio.
Eurides lembrou que começou a mobilização para lutar pela moradia junto de outras cinco moradoras da Cabo Rocha, quando a desocupação da comunidade se tornou uma ameaça.
"Nós éramos do Orçamento Participativo (OP). Quando a Zero Hora começou a brigar que queria nos tirar dali a gente começou a correr”, conta.
Dessas cinco moradoras da Cabo Rocha que participaram das articulações, somente ela ainda está viva. Foi através da estrutura do Orçamento Participativo que foi possível organizar a comunidade e exigir a construção da moradia popular.
“Não queriam nos deixar aqui, queriam nos levar para a Restinga. A gente fez uma briga muito grande”, contou com orgulho Dona Eurides. Ela relatou ainda que o processo de expulsão foi “um abuso”.
"A gente tinha casa lá. ‘Maloquinha’ ou não, todo mundo tinha a sua, daí queriam que a gente saísse. Pensam que a gente é um lixo!", relata.
Segundo ela, a intenção do poder público na época era levar aquela comunidade para o bairro da Restinga, no Extremo Sul da Capital, distante cerca de 20Km do Centro.
À época (início dos anos 2000) aquela região encontrava ainda o processo de urbanização em estágio muito diferente do atual, com extensa área verde e rural. A Restinga, por exemplo, era um bairro novo, pois a lei que tornaria oficial a sua criação é de 1990.
A região era um destino comum para comunidades e vilas em situação irregular que não conseguiram resistir e foram sendo expulsas das áreas mais próximas ao Centro, como o caso de parte da vila Campos do Cristal, que foi realocada no Bairro Vila Nova, também no Extremo Sul.
O Extremo Sul é uma extensa região da Capital que ainda hoje desperta o interesse da especulação imobiliária por conta do espaço disponível. Porém, a região é muito afastada do Centro. Diferente do Princesa Isabel, que fica a apenas alguns minutos de caminhada do Parque da Redenção e da Cidade Baixa, por exemplo.
Dona Eurides relata que, no local onde foi construído o Princesa Isabel, já havia uma pequena comunidade, onde moravam alguns caminhoneiros. Ela conta que foi a partir do diálogo com aquelas pessoas que se decidiu pela construção do Condomínio de moradias populares naquele local.
Inclusive, os primeiros 50 apartamentos entregues foram ocupados por moradores dessa comunidade, que receberam sua moradia antes das famílias da Cabo Rocha.
“Aqui tinha uma vila, que eram 50 famílias, fizemos um acordo com eles, nós daríamos 50 apartamentos e eles nos deixariam construir, e foi o que aconteceu.”
Segundo Eurides, foram cerca de 15 anos para conquistar a construção do terreno, através do Demhab. Vitória explicou que, inicialmente, a luta foi por regularização fundiária para permanecer naquele local.
A comunidade da Cabo Rocha estava inserida em um contexto, nos anos 1990, onde várias vilas tentavam resistir à perda de seus territórios. O Condomínio Princesa Isabel é uma das poucas comunidades que conseguiu permanecer nas regiões centrais da cidade, mas, de acordo com Vitória, isso acontece com um preço.
Apelido "Carandiru" traz consigo um estigma
Com o passar do tempo, o condomínio passou a ter destaque nos veículos de comunicação de uma forma negativa, chegando a ser apontado como a “fortaleza para o tráfico em Porto Alegre”.
As constantes abordagens policiais e a presença no noticiário acabou fazendo com que o local fosse apelidado de Carandiru, em referência à Casa de Detenção de São Paulo, demolido em 2002. Dez anos antes, o presídio paulista havia sido o local de uma grande chacina, por conta de uma intervenção da Polícia Militar. Sob o pretexto de conter uma rebelião, foram mortos 111 detentos.
O modo como o lugar é tratado pelos meios de comunicação foi tema do trabalho de conclusão de curso do estudante de Biblioteconomia, Flávio Bonfligio, em 2018. O estudante analisou diversas edições do jornal Correio do Povo e concluiu que a utilização do termo “Carandiru”, para se referir ao Princesa Isabel, era usada de uma forma negativa e contribuía para criar um estigma também negativo do local.
Conforme pontuou Flávio, entre os anos de 2013 e 2015, Alexandre Goulart Madeira, o “Xandi”, morador da antiga vila Cabo Rocha e um dos líderes do tráfico de drogas da região, teve seu nome e imagem vinculados ao território.
“Isto se deu por meio de notícias que apontavam seus familiares residindo no condomínio e envolvimento de moradores com a logística e distribuição de drogas da região”, escreveu Flávio.
Presidente da Associação durante sete anos, Dona Eurides conta que, no início da ocupação dos apartamentos não haviam esses problemas. Com o passar do tempo, a realidade foi se transformando. “Infelizmente tem esse trafico, que eles [a Polícia] não conseguem combater. E eles querem que a gente 'dê' as pessoas, os cabeças. Como a gente vai fazer isso?”, questiona.
A forma como a Brigada Militar atua no local é outro fator muito criticado pelos moradores do condomínio. Conforme comentou um morador que não quis se identificar, é comum abordagens policiais e invasões de apartamentos sem mandato judicial. Além disso, reclamou que a Brigada Militar “não faz distinção”:
“Não se pode ter dinheiro em casa porque se a gente tiver eles acham que é do tráfico, já dizem que o teu apartamento é uma “boca”. Não temos outro lugar, onde vamos morar? Sempre houve repressão, mas agora está pior”, relatou.
Dona Eurides cita um episódio em que a Brigada Militar ordenou que se arrancasse o portão de entrada do Condomínio, para facilitar o acesso da polícia. Foi necessário apelar. “Fui na Corregedoria e disse que aqui temos crianças pequenas, cerca de 350 dentro do condomínio, como vai arrancar o portão? O corregedor disse que não era para tirar”, relata.
Vitória diz que cresceu entendendo bem esse estigma e o preconceito contra a comunidade do Condomínio Princesa Isabel. Ela relata que sente a falta de outras formas de atuação do Estado, como a saúde e a educação.
“Hoje o Estado só entra aqui com a força, com a violência policial invadindo nossas casas”, frisa. Segundo ela, todos esses fatores acabam por gerar um olhar desumanizado sobre as pessoas que moram ali.
“Isso se expressa quando a gente chama de Carandiru uma comunidade que teve o condomínio construído por luta, por organização comunitária, que conseguiu resistir à remoção. E o que foi o Carandiru? Foi um presídio onde teve um massacre de mais de 100 pessoas”, complementa.
Dona Eurides e Vitória ressaltam o desrespeito que sofre uma comunidade de pessoas de baixa renda que moram numa região valorizada da cidade.
“A gente mora na região central, mas isso não significa nada, não temos direito a conviver. Somos desrespeitados, nos humilham. Estamos no Centro, achamos que um diploma ou que alguma coisa vai nos munir de não sofrer a violência, só que não, só pelo fato de morarmos aqui somos marginalizados”, afirma Vitória.
A mais recente ação da BM ocorreu em agosto deste ano, que teve como foco o combate ao tráfico de drogas na região. Na ocasião, segundo relatam as dirigentes da Associação, a creche que funciona no local teve o portão arrombado. Os moradores, após o episódio, realizaram uma caminhada nas mediações do Condomínio parar denunciar o ocorrido e a forma como são tratados.
“O tempo todo estamos denunciando. Temos crianças, temos uma creche, é muito difícil. É uma violência sem tamanho, realizamos mês passado um protesto, formalizamos as denúncias, mas é difícil ver consumado”, desabafa Vitória.
Comunidade se organiza para suprir necessidades
“Ter uma comunidade que resistiu a higienização, a remoção da região central e que permaneceu aqui nos trouxe estigma, preconceito. Porque são famílias pobres que estão morando a poucos metros de pessoas que compraram imóvel e que acham que têm direito de não conviver, ver, lidar com pessoas de baixa renda, pobres”, aponta Vitória.
Fundada em 2004, a Associação de Moradores gerencia e administra a creche comunitária que existe dentro do condomínio, com recursos oriundos de um convênio com a Secretaria Municipal de Educação.
A creche atende mais de 70 crianças e os professores são contratados pela Associação. Além da creche, o condomínio tem uma biblioteca comunitária. Durante a pandemia, a entidade fez diversas ações de solidariedade, com entrega de cestas básicas para as famílias.
Em 2020 foram doadas 150 cestas básicas durante três meses para as famílias em situação de vulnerabilidade. Assim como auxiliaram as crianças em idade escolar que não estavam conseguindo acessar o ensino remoto.
Além do convênio com a Prefeitura que garante os professores da creche comunitária, os moradores do Princesa Isabel têm pouco auxílio do Estado para outras necessidades básicas.
Precisam organizar entre si as garantias para atender os mais vulneráveis economicamente. De certa forma, a luta constante que travam hoje pela sobrevivência é uma continuidade da luta que foi travada mais de 20 anos atrás pela moradia e por permanecer perto do Centro.
“Temos uma luta não reconhecida. Aqui é um projeto de moradia e habitação que impacta as próximas gerações. Só que temos esse desafio muito grande que é a criminalização e o estigma que vêm com isso”, conclui Vitória.
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Edição: Katia Marko