Rio Grande do Sul

Coluna

Afeganistão: uma abordagem compreensiva, primeira parte

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Comboio do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA viaja ao longo de uma estrada de terra estreita no Afeganistão conduzindo uma patrulha de reconhecimento veicular - Foto: The U.S. National Archives
Nenhum 'avanço democrático' pode vir através de invasões imperialistas ou da arrogância

Na terça feira dia 31 de agosto o aeroporto de Cabul, capital do Afeganistão teve sua autoridade totalmente transferida para o controle do novo governo. A administração do partido Talibã assume o país ganhando a guerra de resistência, após a expulsão de invasores estrangeiros comandados pelos Estados Unidos. A retirada caótica de forças ocidentais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, VER a missão da Aliança) não cumpriu um plano de escalonamento e negociações. Logo, a sensação de “caos e instabilidade” é o que vai permanecer, ao menos nos noticiários dos países ocidentalizados, como o Brasil.

O parágrafo acima pode soar distinto dos típicos lides jornalísticos que estamos acostumados a receber, mas praticamente inicia com os fatos mais relevantes, pela ordem de hierarquia sócio-política do território devido. Podemos separar a análise em duas dimensões: o acionar externo de longo prazo e as interações regionais. Neste artigo, a ênfase maior é na primeira dimensão.

Infelizmente, não é o que se percebe, nem nos conglomerados de mídia (a primeira dimensão) e tampouco nas correntes políticas mais “à esquerda” (a ausência da segunda dimensão). Na função autodeterminada de dizer – de forma rápida e rasteira – como os processos se realizam e como os seus seguidores devem se posicionar, tanto empresas de comunicação como partidos políticos do Ocidente simplesmente negam a complexidade real das sociedades afegãs.

O problema não se encontra apenas neste item, o de “criar narrativa” compatível com o sistema de crença do emissor. Outro fator importante é confundir teoria com doutrina e buscar as supostas “essências” culturais de “sociedades arcaicas”. Não há espanto na repetição da asneira preconceituosa, embora realmente se trate de outra vergonha intelectual, mais uma dentre tantas no Brasil atual. É vergonhoso por se tratar de conteúdo de primeiro semestre do curso de relações internacionais, por vezes até da primeira aula do semestre em disciplinas como Estudos Regionais, Orientalismo e Ocidentalismo ou mesmo Geopolítica.

Tanto o sul da Ásia como a Ásia Central e o chamado Grande Oriente Médio são e estão sendo moldadas pela ação externa, ou ao menos a projeção de poder além do continente asiático. Ao mesmo tempo, as interações são cada vez mais dentro da projeção de poder da Superpotência asiática (China) e as potências regionais (Paquistão, Irã e Turquia) e a com dimensões globais, a Índia (Hindustão, parcela maior de território do antigo Rajastão Britânico).

É preciso compreender, tentar ao menos interpretar, qual o papel da projeção de poder das potências ocidentais, desde o chamado Grande Jogo dos impérios britânico e russo no século XIX, e como esse processo de longo prazo afetou profundamente a região. Estamos falando de formas sócio-culturais muito antigas, mas ao mesmo tempo bastante complexas. Grupos étnicos com instituições, territórios, rotas, formas de interação com os demais agrupamentos étnico-culturais, religião e juridicidade com elevado grau de autonomia. Ao mesmo tempo em que o território do Afeganistão – e de todo o antigo “Rajastão Britânico” (1858-1947) – era influenciado por guerras de conquista, disputas interimperialistas e formas de vassalagem e dependência, os povos e suas formas políticas concretas deste pedaço de mundo foram se moldando e tentando responder.

O Afeganistão moderno é um mosaico de territórios descontínuos com pontos de passagem – rotas milenares dentro de regiões de difícil acesso – e todas as formas de vida absolutamente influenciadas por algum tipo de guerra de resistência. A relação direta entre ancestralidade, especificamente na cultura pashtun (e o código pashtunwali) e formação doutrinária de um Islã que refuta a presença do invasor ocidental, forma a base para as formas de luta contemporânea.

Podemos traçar um paralelo entre doutrinas e lideranças sunitas do final do século XVIII e ao longo do XIX que passaram por trajeto intelectual em condições semelhantes. Isso se nota em escolas distintas e até antagônicas, como a criação do wahabismo na Península Árabe e a figura central do líder sufi de formação naqshbandi Imam Shamil (1797-1871), figura inconteste na rebelião do Norte do Cáucaso contra a invasão do Império Russo (1834 – 1859).

Algo parecido ocorre na formação da escola Deobandi, já com a presença britânica e em especial de uma companhia de exploração colonial operando como governo de fato e subordinando sociedades inteiras, incluindo as enormes parcelas da população do Hindustão seguidoras do islã. O “deobandismo” em todas as suas trajetórias é central no papel da independência da Índia assim como foi inspirado na guerra de libertação – infelizmente derrotada – contra a Companhia Britânica das Índias Orientais. Como tem dito o historiador Tufy Kairuz em repetidas ocasiões, há uma temporalidade nestas escolas de pensamento, na tentativa de “reviver” os dias de resplendor do Islã, as sociedades influenciadas pela cultura árabe e pelo islamismo chegaram a respostas possíveis através das relações sociais concretas e não imaginárias. E nem sempre estas saídas apontam para posições com as quais concordamos. Mas, nem a pior das alternativas autóctones pode ser melhor do que a mais sofisticada das sociedades ocidentais invadindo territórios e países e violando soberanias e direito ancestral.

Sim, é fato, este que escreve tem profunda desconfiança de qualquer organização que possa ter um dia flertado com o salafismo, mesmo que hoje seja inimiga estratégica do também odioso takhfirismo do Daesh. Nunca neguei e jamais negarei a formação pan-arabista e minha vinculação com o Eixo da Resistência. E é justo por isso que não podemos simplesmente repetir supostas “virtudes” de invasores ocidentais e menos ainda “acreditar” em missão civilizatória de serviços de inteligência cuja parte do financiamento vem da administração do tráfico de ópio.

Neste tema, o internacionalista Thales Valenti e eu, produzimos uma série para o portal Carta Maior abordando essa complexidade. No segundo artigo, a Economia Política do Ópio, demonstramos apenas através de consulta por fontes abertas e públicas o que “comentarista especializado” algum dos grupos de mídia do Brasil querem demonstrar. Duas décadas de invasão e a escalada do narcotráfico em todas as etapas da cadeia se tornaram endêmicas. Ninguém fala isso? É como a fantasia do “pós-conflito” colombiano, onde camponeses, indígenas e quilombolas simplesmente são assassinados em maior número e se defendem com menos capacidade?! Isso é jornalismo “equilibrado”? Evidente que não.

Considerações finais

Desde a segunda metade de agosto do corrente ano, quando a administração Joe Biden anuncia a retirada do Afeganistão, que acompanhamos infinitas estupidezes na cobertura midiática para a audiência brasileira. Já vi repórter pedindo mais tropas estadunidenses, outro transmitindo de dentro da base militar de Manama (dos EUA, mas localizada no Bahrein) e outros falando em renovar a “guerra ao terror”. Por ignorância, manipulação editorial ou desinformação, o efeito é igualmente nefasto. Nem a configuração multiétnica do país é colocada e menos ainda o importante papel do Paquistão para a vitória contra os Estados Unidos.

É preciso ter a dignidade de defender um Afeganistão soberano e independente e que este país autônomo respeite o direito das mulheres e tenha pluralismo jurídico, incluindo as interpretações de distintas escolas corânicas. Nenhum “avanço democrático” pode vir através de invasões imperialistas ou da arrogância.

* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio

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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira