Educação popular, realidade brasileira, feminismo, história e sociologia do trabalho são alguns dos temas com que lida a socióloga Eliane de Moura Martins. Para ela, o patronato local não tem disposição democrática, nacional e soberana, preferindo as vantagens e a “riqueza fácil” propiciada pela entrega do patrimônio público construído por gerações.
Também da coordenação nacional do MTD, o Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores por Direitos, ela ataca o senso comum elaborado pela mídia empresarial que descreve a gestão pública como ineficiente. Eliane indica os reflexos negativos das privatizações e enfatiza a importância do Plebiscito Popular sobre as Privatizações do RS. É o que vamos conferir aqui em uma versão bem mais ampliada da sua entrevista à versão impressa do Brasil de Fato RS. Acompanhe:
Brasil de Fato RS - Existem pessoas que acham que o fato de um governo vender patrimônio público não as afeta. Como convenceria alguém que concordar com a venda de bens públicos construídos por gerações acaba sendo um péssimo negócio para a imensa maioria?
Eliane de Moura Martins - Um caminho para estabelecer essa conversa pode partir de uma revisão das últimas contas domésticas, das tarifas de energia, água, gás, o preço da gasolina. Fazendo as contas junto com as pessoas de como estas tarifas sobem as vésperas da venda destas empresas, como os serviços pioram e como esses custos ligados à reprodução de nossas vidas, não entram no cálculo de nossos salários. Ou seja, uma conversa que exige um certo tempo e que precisa partir dessa base real, concreta, se possível com os boletos das contas nas mãos.
Precisamos introduzir os porquês desta situação e aí é sempre importante ouvirmos com atenção a análise. Como o cidadão explica essa situação? É do interior dessa explicação que precisamos pegar os ganchos para irmos com as pessoas reconstituindo os reais argumentos.
A militância precisa se preparar para esse tipo de diálogo. Precisa ter a habilidade de partir de uma visão de senso comum, que foi martelado por anos e intensificado nos últimos meses pela mídia burguesa, justificando os argumentos dos governos vendilhões, camuflando o fato óbvio de que nenhum empresário se coloca em um negócio ruim, falido, que não dá lucro.
Uma cooperação entre duas redes
BdFRS - Em 2002, mais de 10 milhões votaram no plebiscito que barrou a adesão do Brasil à Alca, a Área de Livre Comércio das Américas. Com base nisso, é possível pensar que, agora, a população pode repetir aquele feito?
Eliane - É possível, mas o plebiscito que barrou a adesão do Brasil à Alca foi uma grande articulação nacional que envolveu diferentes setores progressistas da sociedade brasileira. Agora estamos travando uma luta em nível estadual e, sim, um dos fatores fundamentais é uma rede de articulações em dois níveis. O nível das redes das instituições estruturadas dos ciclos de lutas anteriores como as sindicais, partidárias, dos movimentos populares, das matrizes religiosas, da cultura, das artes, personagens dos esportes, artistas. O outro nível são as redes dos novos protagonistas, novos movimentos, grupos, associações de mulheres, negras, negros, LGBTQI+ os novos influenciadores digitais. Estas duas redes podem se colocar o desafio de viver a experiência de cooperação político-pedagógica em trabalho de denúncia como é a concepção de um plebiscito sobre os impactos da venda da riqueza coletiva.
O trabalho do governador Eduardo Leite é facilitar a vida dos patrões
BdFRS - O governador Eduardo Leite (PSDB) e sua base de sustentação na Assembleia Legislativa/RS cassaram o voto dos gaúchos ao aprovarem uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), retirando a obrigação de consultar o povo antes de vender uma empresa pública. Estão “passando a boiada” ao tentarem vender algo que não lhes pertence e sem consultar os donos?
Eliane - O governador Eduardo Leite é um quadro político a serviço da classe dominante. Suas ideias liberais são explícitas e seu trabalho é facilitar a vida dos patrões. A classe patronal no Brasil não tem energia sequer para desenvolver o próprio capitalismo, que exige mercado de consumo interno, logo precisa ter a grande massa da força de trabalho assalariada para poder consumir e dinamizar a economia. Não, eles não têm a menor disposição democrática, nacional, soberana, popular. São fracos, sempre em busca da riqueza fácil. Por isso, privatizar patrimônio público é sempre uma bandeira liberal. Para essas mentes colonizadas, o abastecimento de água e energia elétrica não são vistos primeiro como serviços essenciais à vida humana e sim regidos pela lógica do mercado.
Não é possível privatizar sem colocar em risco a soberania
BdFRS - É curioso que a ideia do plebiscito (decreto da plebe) remonta à Roma lá do ano 287 A.C., quando os plebeus se revoltaram contra a opressão da nobreza e conquistaram esse direito. De alguma maneira, a cassação do voto popular pelo governador e seus deputados nos devolve à Antiguidade?
Eliane - Temos séculos de lutas contra o silenciamento, a cassação, a interdição da participação popular na tomada de decisões públicas importantes. Mas também temos uma história de resistência diante das velhas e das novas formas de silenciamento. O plebiscito feito por nós, assim como aquele feito pelos plebeus em Roma é uma forma de organizarmos a nossa voz, denunciando que a superexploração sobre nosso trabalho e nossos poucos recursos, tem limites.
BdFRS - Governantes como Jair Bolsonaro e Eduardo Leite estão vendendo empresas públicas sem relacionar esse negócio com o fato de, agindo assim, estarem abrindo mão dos destinos do estado e do país. É possível privatizar sem colocar em risco a soberania?
Eliane - Não é possível. A soberania vem sendo atacada, sem tréguas, desde o começo dos anos de 1990, com a primeira onda neoliberal. Estamos em momento histórico em que o modelo de produção capitalista elevou os valores e as práticas da concorrência agressiva à máxima potência, ao ponto de nem poder garantir a esperança de um trabalho assalariado para a maioria.
Vivemos um retorno via agronegócio à velha fazenda do monocultivo, do latifúndio, exportando grãos e com eles a fertilidade do nosso solo, esgotando as reservas de água, a biodiversidade, gerando uma pobreza econômica, social, política, cultural, insuportável.
Onde anda a pauta dos interesses da classe trabalhadora?
BdFRS - A mídia empresarial construiu uma imagem das empresas públicas vinculada à ineficiência e ao prejuízo. Mas o governo federal e os estaduais também vendem empresas altamente lucrativas. Como se justifica que o estado e a União desistam de suas empresas e do seu lucro em favor do investidor privado?
Eliane - Estes governos não desistem das empresas e de seus lucros, ao contrário, eles lutam por elas. A diferença é que eles lutam para que a riqueza que elas geram sejam direcionadas ao setor privado, do qual eles são sócios menores ou maiores. Isto também é reflexo do quanto nós, classe trabalhadora, enfraquecemos os nossos debates políticos. Onde anda a pauta dos interesses da classe trabalhadora? Como estamos dialogando com os nossos representantes? Como estamos fortalecendo a construção de nossas forças, de base sindical popular, partidária, para participar de modo orgânico dos debates?
Os ataques à gestão pública são um capítulo da luta de classes
BdFRS - Ao longo das últimas décadas, a gestão pública foi atacada e criminalizada pela mídia empresarial. Por que isto aconteceu e continua acontecendo e por que o Estado e suas estatais são essenciais para o processo de desenvolvimento do país?
Eliane - Ataques e criminalizações da gestão pública são um capítulo da luta de classes. Pensemos na imagem do estádio e do jogo de futebol. O time patronal. A grande mídia, setores conservadores de todas as igrejas, enfim a burguesia, joga contra o enorme time dos trabalhadores. Em tese, o Estado deveria ser o juiz desse jogo e garantir as suas regras, as leis combinadas a gravadas na Constituição. Nas últimas décadas, a estratégia de jogo do time dos trabalhadores, colocou todas as forças no jogo institucional, eleitoral. Essa estratégia levou uma goleada, em especial desde o golpe de 2016. O time da burguesia atacou o trabalho, acusando-o de muito caro, cheio de direitos. Então, para ter empregos, era preciso largar os direitos. Qualquer espaço coletivo que tenhamos, e o plebiscito é um grande espaço, temos de debater a estratégia do jogo, a reorganização desta nossa imensa, fragmentada e precarizada classe trabalhadora. Estamos em condições adversas, mas também temos muitas ferramentas de luta. São tempos de afiá-las.
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Edição: Katia Marko