Desde o início da semana o repórter Pedro Nakamura, 24 anos, do Matinal Jornalismo, de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, vem sofrendo ameaças e assédio nas redes sociais após a divulgação de uma reportagem que revelou que cerca de 50 pacientes com Covid-19 receberam experimentalmente uma droga sem a autorização de órgãos regulatórios, entre eles a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA) sob a autorização do endocrinologista Flávio Cadegiani e do infectologista Ricardo Zimerman. O Matinal ainda sofreu um ataque cibernético nesta terça-feira (24/8).
Na reportagem, Nakamura aponta que a proxalutamida era utilizada no hospital de forma experimental e que “o ‘estudo’ foi conduzido no HBMPA sem que houvesse cadastro da instituição na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), responsável por autorizar pesquisas clínicas com seres humanos”. O medicamento nem sequer é autorizado pela Anvisa para ser importado do Brasil.
Fora isso, os pacientes declararam ao repórter que não receberam cópias dos termos de consentimento assinados por eles para tomarem o medicamento. Uma senhora que ficou internada no hospital disse na reportagem ter sido orientada a utilizar a proxalutamida em casa, mesmo após alta.
Zimerman depôs na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 a convite do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), com o objetivo de justificar o uso de medicamentos ineficazes contra o coronavírus, de antiparasitários a antimaláricos. Segundo a reportagem, os dois médicos são influenciadores digitais e questionam a eficácia de vacinas e o uso de máscaras.
Ainda de acordo com a reportagem, o médico Ricardo Zimerman foi procurado pelo jornalista, que buscava informações sobre o suposto Comitê de Ética em Pesquisa para o estudo realizado em Porto Alegre, mas o infectologista não respondeu às tentativas de contato do jornal. Quando tentou entrar em contato com Zimerman via redes sociais, o médico “publicou em seus perfis que havia sido procurado por ‘militantes disfarçados de ‘jornalistas’”, diz o texto. Ele ainda expôs as mensagens do jornalista em suas redes sociais, acusando-o de assédio e injúria.
Ainda antes da publicação, o infectologista passou a atacar o Matinal e o repórter. Já a assessoria de imprensa de Flávio Cadegiani declarou que os dados sobre o estudo eram confidenciais.
Após a divulgação da reportagem os ataques cresceram, conforme relatou Nakamura à Ponte. “Recebi várias mensagens ao longo do dia, mas as mais graves foram as de segunda.” Ele se refere a uma publicação no Instagram na qual ,em uma foto do cachorro do repórter, uma pessoa comentou que ele “merecia ser empalado em praça pública na frente de seus filhos”.
Além disso, uma foto do repórter com textos que o atacavam começou a circular nas redes sociais. “Não senti medo, mas me senti ansioso. Como os ataques são virtuais, a gente sabe que do virtual para se materializar na vida real é um passo grande. Mas o apoio de colegas jornalistas, da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), dos leitores foi uma espécie de abraço que trouxe conforto”, diz.
Os perfis do Matinal Jornalismo foram tomados por comentários com xingamentos, ameaças de morte e violência física, segundo publicação no Twitter do veículo. Além disso, o website vinha sendo alvo de “ataques de negação de serviço”, ou DDoS, que sobrecarregam um servidor para impedir o acesso do público às informações nele contidas.
Marcela Donini, 39 anos, editora-chefe do grupo Matinal Jornalismo, que também editou a reportagem, lamenta a situação. “É muito lamentável que um profissional da saúde venha atacar jornalistas nas redes, que prefira levar esse debate para uma arena muito contaminada por discursos de ódio em vez de responder devidamente os nossos questionamentos.”
Donini aponta que a partir das publicações de Zimerman vieram muitos comentários de ódio. “Ele mesmo foi claramente intimidador e ameaçador, então a gente acha muito lamentável, sempre que acontece um ataque a um jornalista, ou a um veículo de jornalismo de qualquer porte, sempre é um ataque à liberdade de imprensa, à democracia. Isso acaba fazendo parte de um contexto maior, vivemos num país onde o presidente é um das pessoas que mais fazem ataques ao jornalismo e aos jornalistas.”
Diante disso, a jornalista reitera o papel do Matinal. “Reafirmamos o nosso compromisso com o interesse público e com uma democracia, vamos seguir o nosso trabalho e tomar as providências na Justiça contra quem ameaçou o repórter.”
Marcelo Träsel, presidente da Abraji, lamentou o ocorrido com o repórter. “Infelizmente as ofensas e ameaças a repórteres no desempenho de suas funções se banalizaram no país nos últimos anos. A situação nunca foi tranquila, mas o monitoramento da Abraji mostra uma escalada acentuada das violações. Casos como este evidenciam táticas adotadas sobretudo pela extrema direita para intimidar jornalistas.” A entidade publicou uma nota de repúdio aos ataques contra o jornalista.
Segundo ele, muitos dos defensores de “tratamentos” sem base científica contra a Covid-19 “têm preferido expor repórteres em redes sociais a prestar contas de sua atuação à sociedade. O objetivo deste tipo de exposição é muito claro: mobilizar seguidores para ameaçaram e assediarem os jornalistas nas redes sociais”.
A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, apontou que o caso é muito grave, porque expõe a “atuação organizada de grupos de militares em verdadeiras milícias digitais, que buscam intimidar, ameaçar pessoas e instituições que contrariam seus interesses.”
Segundo ela, Pedro Nakamura está sendo agredido por ter cumprido seu dever profissional. “Do mesmo modo, o Matinal foi vítima de um ciberataque, como retaliação e ameaça. O país está vivendo um grande retrocesso democrático e os ataques à liberdade de imprensa fazem parte desse retrocesso, que precisa ser interrompido”.
A Associação de Jornalismo Digital (Ajor) também apoiou o repórter em uma nota divulgada em seu site. “A Ajor acompanha o caso e avalia em conjunto com o Grupo Matinal diferentes medidas para proteger o profissional, a empresa jornalística e o direito de os cidadãos se informarem”.
Após a reportagem do Matinal Jornalismo, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul abriu inquérito civil público para investigar a possibilidade dos estudos clandestinos com a proxalutamida. Em reportagem d’O Globo, a procuradora da República Suzete Bragagnolo, responsável pelo inquérito, disse que “os fatos relatados são assustadores”. À Ponte, o MPF informou que o prazo para respostas aos ofícios enviados para a Anvisa e Conep é dia 31.
Ela explicou que o órgão pediu informações ao Conep e a Anvisa. “No âmbito cível cabe provocar a atuação da Conep e da própria Anvisa, que têm o poder de polícia administrativa no sentido de apurar”. Além disso, a procuradora também “notificou formalmente o núcleo criminal do MPF-RS e o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers)”, conforme a publicação.
Em entrevista à Ponte o conselheiro e coordenador da Conep, Jorge Venâncio afirmou que não foi pedida a autorização do estudo com o medicamento. “Não foi solicitado nada, não sabemos nada sobre esse estudo, a não ser o que saiu na imprensa”.
O coordenador do Conep esclarece que no caso de estudos multicêntricos – quando tem vários centros realizando um estudo ao mesmo tempo, tanto o centro que coordena a pesquisa quanto os centros participantes devem ser avaliados. “Tem que avaliar em cada centro se o pesquisador tem experiência para ser coordenador da pesquisa naquele centro, se tem condições de acompanhamento e atendimentos adequados aos participantes de pesquisa. Tem uma série de questões locais que precisam ser avaliadas, por isso todos os centros tem que ser informados. O que a outra parte está afirmando que existe uma autorização nacional não existe, não tem base normativa nenhuma para essa afirmação deles”.
Venâncio ainda reitera a irregularidade da pesquisa. “A primeira coisa que declaramos é que o estudo está irregular, mas vamos ter que provavelmente entrar em contato com o MPF ele mesmo já está tomando a iniciativa. Vamos conversar e passar as informações necessárias. Para fazer uma pesquisa precisa respeitar a condição humana de quem está participando dela, o fato de estar em uma situação grave da pandemia não justifica fazer a pesquisa de qualquer jeito, isso não tem lógica. Precisa fazer com respeito as pessoas, não dessa maneira.”
A Anvisa esclareceu que “não foram solicitadas importações do medicamento proxalutamida para condução de pesquisa clínica (quando há testes em humanos) no Brasil”. A agência ainda disse que “avalia apenas pedidos de autorização para estudos clínicos com finalidade de registro do produto.” E que até o momento, aprovou apenas dois pedidos de estudo clínico, com fins regulatórios, para o medicamento proxalutamida. Os estudos são patrocinados pela empresa Suzhou Kintor Pharmaceuticals, sediada na China.
Outro lado
A reportagem tentou contato com o médico Ricardo Zimerman por meio do Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA) e no telefone de seu consultório para falar sobre a exposição e acusações contra o repórter do Matinal Jornalismo e sobre as informações trazidas na reportagem do veículo. A Ponte perguntou como ele se posiciona frente a classificação do episódio como uma afronta à liberdade de imprensa e de expressão pela Abraji. O médico não respondeu às questões.
Ao endocrinologista Flávio Cadegiani também foi questionado se o experimento com a proxalutamida não era autorizado pela Anvisa e Conep, se os pacientes que aderiram ao tratamento receberam uma cópia do termo de consentimento assinado e se ele respondeu às questões enviadas pelo repórter quando questionado. Em publicação em sua conta no Twitter, o médico disse que o estudo foi aprovado pelo Conep em janeiro de 2021.
Em outra postagem ele afirma que há liberação da Anvisa desde agosto de 2020. “Foram ‘só’ algo perto de 30 liberações (podem pedir informação à Anvisa a partir do número de processo da anuência). Além disso, tivemos reunião com a Anvisa contando os resultados. Isso há quase 6 meses.”
A reportagem ligou no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA) para pedir explicações acerca das informações contidas na reportagem do Matinal Jornalismo e não conseguiu retorno.
Edição: Ponte Jornalismo