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O que ainda falta para a Lei Maria da Penha?

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"A Lei Maria da Penha, que em agosto de 2021 completou 15 anos, é conhecida por quase toda a população brasileira e é considerada a terceira melhor legislação no combate à violência contra as mulheres no mundo"
"A Lei Maria da Penha, que em agosto de 2021 completou 15 anos, é conhecida por quase toda a população brasileira e é considerada a terceira melhor legislação no combate à violência contra as mulheres no mundo" - Divulgação
Devemos exigir que os diferentes níveis do Estado cumpram com seu papel preventivo e protetivo

Alice casou e teve filhos. Sofria violência do marido: ele controlava onde estava e que roupa usava, exigia vídeo-chamada pra saber se ela falava a verdade, forçava relações sexuais quando ela não queria. Ela não sabia que isso era violência até que teve atendimento especializado. Decidiu romper. Registrou B.O., obteve uma Medida Protetiva de Urgência. Ele foi afastado de casa. Na Justiça, fixaram-se dias de visita e pensão alimentícia dele aos filhos. Ela obteve creche para os filhos e um emprego. Está se capacitando para ter uma profissão. Inscreveu-se em programa de moradia e está reconstruindo sua vida, com autonomia. Parece ficção - e é: o roteiro após a ocorrência de violência doméstica poderia ser mais ou menos este, mas não se concretizou ainda.

A Lei Maria da Penha (LMP), que em agosto de 2021 completou 15 anos, é conhecida por quase toda a população brasileira e é considerada a terceira melhor legislação no combate à violência contra as mulheres no mundo. Mas o que de fato se sabe sobre essa lei?

A LMP mudou totalmente a forma como o Brasil lida com a violência doméstica. Antes dela, as denúncias acabavam nos juizados especiais criminais e os agressores, quando muito, eram condenados ao pagamento de cesta básica. Por isso, um enorme avanço da lei é a criação de Juizados de Violências Doméstica e Familiar, nos quais não apenas tramita o processo criminal, mas também podem ser concedidas as Medidas Protetivas de Urgência, com atenção às especificidades da situação. Por meio delas, o agressor pode ser afastado do lar, proibido de se aproximar da mulher - e preso se descumprir essas ordens. A mulher pode ter acompanhamento policial preventivo e ser encaminhada para locais protegidos.

Mas esta é apenas uma parte da LMP - e a única já de fato implementada. A lei foi redigida por organizações de mulheres que já discutiam há décadas os desafios multifatoriais do enfrentamento à violência. Por isso, ela não se limita à ação policial ou penal. Ela prevê o fortalecimento da ação integrada de várias políticas públicas, pois é necessário que a mulher tenha acesso à renda, cuidado em saúde, moradia, educação para si e para os filhos para, com autonomia, superar a situação. Além disso, ela também prevê a criação de serviços especializados: Centros de Referência (para acolher, orientar, apoiá-la na tomada de decisão e ação), casas abrigo (para mulheres em risco de morte), defensorias públicas e delegacias especializadas.

E, ainda, a lei tem como diretriz a educação, fundamental para a transformação da nossa cultura machista, por meio da capacitação de agentes de segurança, atendimento para homens autores de violência e ações de educação preventiva para o público em geral e nas escolas - a formação das novas gerações.

Em todo o mundo, uma a cada quatro crianças com menos de 5 anos (177 milhões) vive com a mãe vítima de violência doméstica e cerca de 15 milhões de meninas entre 15 e 19 anos já foram vítimas de relações sexuais ou outros atos sexuais forçados*. Dessas, apenas 1% afirmou ter buscado ajuda. Os números alarmantes demonstram a urgência de revermos as formas de enfrentarmos o problema.

A Lei Maria da Penha é uma fundamental e importante conquista, mas ainda não vemos a aplicação dessa legislação em seus diferentes âmbitos. O Brasil vem priorizando muito a esfera do combate policial-penal e pouco a esfera preventiva, assistencial e de direitos.

Devemos exigir que os diferentes níveis do Estado cumpram com seu papel preventivo e protetivo das vidas de meninas e mulheres para que casos como o de Alice não sejam reais só no aspecto da violência, mas também na garantia de direitos.

* Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial. Fundação Oswaldo Cruz - Escola Fiocruz de Governo e Ministério do Desenvolvimento Social - Secretaria Nacional de Assistência Social, 2018.

Artigo de Cristina Schwarz, psicóloga e feminista, e Maíra Freitas, psicóloga e feminista.

** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko