Rio Grande do Sul

Coluna

Burguesia em transe

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"Representantes do agronegócio justificam seu apoio a Bolsonaro, ainda que com diferenças, devido às regularizações fundiárias e à facilitação na concessão de licenciamentos ambientais" - Foto: Reprodução/CNA
Os bancos e os demais setores internacionalizados lucraram muito com a política de Bolsonaro/Guedes

“Os frutos nascidos da planta espúria em suas cabeças acabaram por suplantá-los. E eles, os criadores, curvaram-se diante de suas criaturas” Karl Marx, em A ideologia alemã.

Nesta semana, em entrevista muito didática concedida ao Poder 360, o muitas vezes ministro dos governos de Costa e Silva e João Figueiredo, Delfim Neto afirmou que, para o “mercado financeiro” (sic), a possibilidade de um governo Lula é melhor do que a continuidade de Bolsonaro no governo. O ex-ministro explica com precisão como chegou à essa conclusão. Segundo ele, Lula teria mais chances de aproveitar as oportunidades globais.

No mesmo sentido, Maria Alice Setubal, sócia proprietária do Banco Itaú, em entrevista para o UOL afirmou que votará em Lula contra Bolsonaro, cenário que hoje parece ser o mais provável para o segundo turno de 2022. Da mesma forma que Delfim Neto apresenta as razões para sua opinião: “como cidadão e como figura pública, vejo que Lula tem um compromisso com a defesa da democracia e com todas as instituições”.

Em sentido inverso caminha outra parte do empresariado. Em matéria da FSP o presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS), Gilberto Petry, reafirmou seu apoio ao governo Bolsonaro. Segundo ele “os empresários sempre vão ser a favor de um presidente que entrou para combater a corrupção e acabar com aquilo que havia antes".

Antônio Galvan, presidente de Associação Brasileira de Produtores de Soja, reafirma constantemente seu apoio a Bolsonaro, sendo um dos investigados no inquérito sobre os ataques ao STF. Em matéria no Terra mantém seu apoio, inclusive operacional, aos atos contra a Constituição Federal e em apoio a Bolsonaro marcados para o 7 de setembro. Em vários momentos Galvan tem justificado o apoio do agronegócio, ainda que com diferenças, devido às regularizações fundiárias e à facilitação na concessão de licenciamentos ambientais. Evidentemente, contrariamente à legislação brasileira, em favor dos grandes latifúndios e em prejuízo da preservação ambiental.

Em abril deste ano, Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil, hospedou um encontro de empresários em apoio a Bolsonaro. Segundo matéria da Rede Brasil Atual, Flávio Rocha, dono da rede de roupas Riachuelo, e André Saraiva, da rede de alimentação Habib’s, também estavam presentes.

Essa fragmentação de opiniões políticas entre empresários diz muito dos rumos tortuosos das opções adotadas pela burguesia nos últimos tempos. Se observarmos um período maior da política brasileira e compararmos esta situação a situação encontrada em 2002, iremos identificar uma inversão de posições bastante significativa entre as diversas frações da burguesia no país.

Autores de sólidos artigos na área de ciências políticas, Tatiana Beringer e Armando Boito organizam teoricamente a burguesia brasileira entre as frações mais vinculadas ao circuito global do rentismo e às frações mais distantes desta esfera internacional. Na primeira esfera estariam os bancos e aquelas empresas relacionadas ao mercado de ações. Na segunda, as empresas periféricas e de baixa aquisição tecnológica como o agronegócio e o comércio.

Em 2002, exauridos pela política de Fernando Henrique Cardoso, as frações menos internacionalizadas do capital aderiram ao bloco político que levou Lula à vitória, enquanto as frações mais globalizadas mantiveram apoio ao bloco tucano. Duas décadas e muitos lucros e erros depois, parecem iniciar um processo de inversão de posições.

Os setores menos internacionalizados e com menores valores agregados, nos aspectos do trabalho, inovação e tecnologia - como o grande comércio e o agronegócio exportador - se alinham ao Bolsonaro, enquanto a fração mais internacionalizada se aproxima da oposição em geral e de Lula especialmente. Várias podem ser as explicações para essa reversão de posições. Os próprios protagonistas expõem grande parte das motivações.

Esta burguesia periférica teve em Bolsonaro dois grandes ganhos econômicos com a remoção de grandes grupos da legislação protetiva. Uma, que favoreceu diretamente o agronegócio exportador, foi a política ambiental do “passar a boiada’ permitindo a anexação de novas áreas de terras, regularizando atividades ilegais como o desmatamento, o garimpo e a mineração em áreas indígenas e protegidas. A outra foi a destruição, iniciada no governo Temer, da legislação trabalhista que favoreceu diretamente a burguesia periférica que baseou seus grandes lucros, no último período em especial, à redução constante do custo do trabalho através do alto desemprego funcional e de sua precarização.

Os bancos e os demais setores internacionalizados, igualmente lucraram absurdamente com a política de Bolsonaro/Guedes. A reforma do sistema de Previdência, pública e privada, articulada ao “teto dos gastos” e à Lei de Responsabilidade Fiscal, garantiram enormes transferências de capital para o sistema rentista, o famoso e sem rosto “mercado financeiro”. Mas Neto e Setúbal nos dão as pistas para o desembarque de Bolsonaro. É preciso lembrar que em 2018 todas essas frações burguesas se uniram em torno de Bolsonaro, mas esses ganhos se esgotaram e a política geral de Bolsonaro, fundamentalmente reacionária, antidemocrática e anticientífica, isolou o país das modernas grandes economias centrais, como Alemanha e Estados Unidos, e deixou a relação com a China instável e subdimensionada.

A ideia de que Bolsonaro cria instabilidade à democracia e não aproveita as oportunidades globais está vinculada à essa política sectária e isolacionista. É ruim para a continuidade dos negócios, dizem eles. Em certa medida, este realinhamento é análogo ao que acompanhamos nas últimas eleições estadunidenses, entre Biden e Trump. Com o primeiro se alinharam as frações mais progressistas do neoliberalismo e com o segundo, os mais reacionários. A socióloga Nancy Fraser é precisa nesta distinção.

A burguesia brasileira está em transe. Há diferentes interesses e interpretações sobre Bolsonaro. Para a grande burguesia internacionalizada, assim como Trump, Bolsonaro significa risco exagerado aos negócios. Para a burguesia periférica, Bolsonaro é a garantia de remover os obstáculos democráticos e protetivos. A aventura golpista e neofascista expôs suas fraturas e suas divergências de interesses.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko