O artista tem e sempre terá responsabilidade sobre o efeito que causa na população
Ser artista não se resume em apenas possuir uma profissão, onde se exerce uma função técnica e se recebe por ela para no fim, pagar contas e viver dentro de um sistema que, até para respirar é gerado um boleto. Ser artista é mais do que se parece, além de ser maior do que a obviedade do entretenimento e do “bater o ponto”. Ser artista é trazer para si a responsabilidade de carregar na memória, nas expressões e nas simbologias a identidade de um povo que transpira, que luta, que sangra.
Ser artista é transcender o que os olhos enxergam e pulsar com a alma trazendo à tona, através da possante criatividade sensível a história e vida daqueles (as) que vieram antes, dos que convivemos e daqueles (as) que estão por vir. Ser artista é observar o mundo com todas as visões que nos são possíveis e interpretá-lo, questioná-lo e encontrar a linha de comunicação que faça com que a população não seja o gado que corre na direção imposta pelo som do berrante, mas se subverta, ande na contramão, vá ao inferno para compreender que o céu é o melhor lugar para si e conheça o céu para sentir saudade do fogo ardente e da paixão de nosso próprio inferno.
A arte, além de ser a forma significativamente simbólica da cultura, nos coloca dentro do comprometimento e responsabilidade para com o ambiente em que vivemos e o ser humano que o habita. Sentimentos, sensações, pulsões, opiniões e desenvolvimento do ser humano, são fatores de extrema relevância para a arte. A arte não permite desigualdade social, muito menos doutrinação política ou religiosa que transforma seres humanos em mortos vivos que andam vagando esperando o sinal do sino tocado por alguém para poder caminhar na direção imposta. A arte mostra as bifurcações dos caminhos, as portas de uma casa e as possibilidades que temos, estimulando o nosso intelecto e acendendo a nossa capacidade de questionar com a sólida base de conhecimento que nos entrega, a partir das nossas próprias observações de fatos e realidades que se apresentam, mas que sempre são contestáveis.
O maior compromisso da arte é ser contra todo e qualquer tipo de poder autoritário, sendo vanguarda em todas as lutas sociais na História da humanidade. Não existe a possibilidade de um artista, sendo agente cultural acreditar que o ser humano deve ser explorado por outro ser humano de forma desigual. Não existe a possibilidade de um artista aceitar qualquer tipo de atentado à democracia. Não existe a possibilidade de um artista sentir-se dono e/ou líder de uma classe ou segmento social e usar essa mesma classe como massa de manobra para alimentar suas vontades contraditórias, roubar um poder que não o pertence e/ou rasgar leis constitucionais que foram construídas através de lutas e reivindicações de trabalhadores (as), camponeses (as), estudantes e população como um todo.
É vergonhoso qualquer tipo de atentado contra nossa democracia ou tentativa de golpe de Estado vinda de um artista/agente cultural que tenta usar de sua influência questionável sobre a população para defender o indefensável. É vergonhoso ver um artista, principalmente desses que cantam o sertão, a cultura popular, os povos tradicionais, o direito à terra e do argumento de indignação pelas injustiças presenciadas por todo o país em suas viagens e/ou turnês para se candidatar a cargos públicos e políticos institucionais, defender aquele que é o maior genocida, o maior miliciano, o maior bandido, o maior irresponsável e o maior autoritário de nossa história. É vergonhoso! Eu, como artista, tenho vergonha de ver um outro artista defender os feitos insanos e doentios de Jair Bolsonaro, um presidente que só estimula ódio, mortes e sofrimento ao povo brasileiro.
Há pouco mais de uma semana, assistimos a um vídeo e tivemos acesso às mensagens onde o cantor e compositor Sérgio Reis manchou mais uma página de um livro chamado Brasil ao atentar contra as instituições de nossa tão jovem democracia, tentando com palavras e tom ameaçador colocar a população, principalmente caminhoneiros (classe que Sérgio não representa) contra o poder Judiciário para dar suporte ao que não se sustenta: a política genocida e golpista do atual presidente da República que vem, cada vez mais perdendo sua máscara e popularidade:
“Nós vamos parar 72 horas. Se não fizer nada, nas próximas 72 horas ninguém anda no país. Não vai ter caminhão para trazer feijão para vocês aqui dentro”, assim teria dito Sérgio Reis. E não parou por aí: “Nada vai ser igual ao que vai acontecer em 7, 8, 9 e 10 de setembro e se eles não obedecerem a nosso pedido, eles vão ver como a cobra vai fumar. E aí do caminhoneiro que furar esse bloqueio”, disse Reis em tom ameaçador.
Não só o Brasil, como grandes artistas deram suas respostas, declinando das participações que iriam fazer no trabalho que o cantor Sérgio Reis iria lançar. Entre eles, a cantora Maria Rita e os cantores e compositores Guilherme Arantes, Guarabyra e Zé Ramalho tomaram suas decisões, porque sim, o (a) verdadeiro (a) artista/agente cultural tem responsabilidade no seu discurso (obra) e tem lado na História.
Dizer que a obra nada tem a ver com a opinião do artista? Impossível. O artista tem e sempre terá responsabilidade sobre o efeito que causa na população, seja através de sua obra ou sua fala. Ele é o artista criador e gerador de conteúdo. Impossível uma obra defender o povo e o autor atacar a democracia. Então, Sérgio Reis que teve sua saúde física e mental abalada pela repercussão do caso, além de estar sendo investigado pela polícia federal por “supostos crimes”, esse que vos escreve, como artista pode afirmar que um crime você cometeu: O crime contra o povo que sempre te acolheu e isso nós, seres humanos podemos no exercício do perdão, perdoá-lo, mas a arte e a História infelizmente não o perdoarão.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko