Após destruir seus meios de vida, as corporações submeteram as pessoas à humilhação
É inaceitável que há quase 6 anos de um dos maiores crimes socioambientais do mundo, as centenas de milhares de famílias atingidas sequer estejam perto de achar que poderão obter justiça e reparação mínima de um crime irreparável.
A situação, porém, não é inexplicável, as pessoas atingidas pelo crime da Samarco, BHP Billiton e Vale sabem muito bem porque continuam injustiçadas: elas vem sendo deliberadamente ignoradas, não participando ativamente do processo decisório que envolve suas vidas
Nesses seis anos, as pessoas que sofreram danos incomensuráveis com o rompimento da barragem de Fundão continuam sendo revitimizadas pelas empresas: desde a negação do próprio direito a serem reconhecidas como atingidas até o silenciamento em audiências por parte da própria Justiça.
A demora injustificável, sob qualquer ponto de vista, das empresas em cumprirem seus deveres é tanta que, após terem seus lares destruídos, 55 pessoas já morreram sem que a Fundação Renova entregasse as casas que deve a elas.
Em meio à situação de estancamento de justiça para atingidos e atingidas, surge o anúncio de uma “repactuação” entre Estado e empresas, mas novamente sem a devida inclusão das comunidades impactadas.
Essa repactuação vem sendo organizada sob a mesma lógica de controle por parte das corporações, implementada desde o início do processo, como denuncia Thiago Alves, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
“Isso já aconteceu no acordão em 2016, que criou a Fundação Renova, seguiu com os acordos seguintes, sobretudo com o chamado TAC Governança em 2018, que teoricamente organizou o sistema de participação dos atingidos com a presença de assessorias técnicas e o funcionamento de uma complexa teia de governança, mas feito sem os atingidos de fato serem ouvidos", explica o dirigente do MAB.
"O único acordo que foi feito com alguma participação da sociedade civil e que garantiu a contratação de assessorias técnicas independentes para todas as cidades atingidas da Bacia do Rio Doce assinado em 2017 foi desconsiderado, desrespeitado, ignorado, seja pelas empresas, seja pelos governos e principalmente pela própria justiça federal que homologou esse acordo”.
Diante disso, movimentos populares, organizações da sociedade civil e entidades acadêmicas, entre as quais se encontra a Amigos da Terra Brasil, decidem criar o Observatório do Rio Doce, que realizou sua primeira plenária no último 27 de julho.
Alves, que integra a Secretaria Operativa do Observatório Rio Doce, afirma que um dos principais objetivos da articulação é que seja um “espaço de unidade para combater a desintegração de toda iniciativa de organização coletiva e autônoma dos atingidos comandada pelas empresas”.
As ações das empresas para tentar bloquear ao máximo o acesso de atingidos e atingidas ao mínimo de justiça e reparação é criminoso. Elas devem ser afastadas dos territórios da Bacia do Rio Doce e seu papel nos acordos deve ser reduzido à mínima expressão.
A tentativa de desintegração se dá, segundo Thiago Alves, “com a criminalização de organizações sociais, a introdução de processos que individualizam extremamente o acesso ao direito, como no caso do chamado NOVEL, e a produção intencional de conflitos de toda ordem, inclusive gerando ameaças de morte contra lideranças e fortalecendo, ou grupos de oportunistas em busca do dinheiro, sobretudo tendo advogados como lideranças, ou gerando a dispersão completa e o envolvimento aleatório de pessoas que não conhecem o processo e que são facilmente manipuladas pelos interesses das empresas”.
Todo esse processo se torna ainda mais cruel pelos elementos de profunda crise econômica generalizada que vive o país, e que potencializa os efeitos da destruição causada pela Samarco, Vale e BHP Billiton.
“Estamos em um contexto em que as pessoas estão passando por grandes necessidades, por grandes urgências, inclusive de ter acesso a comida, então qualquer tipo de reparação em dinheiro, dado sob qualquer condição, mesmo que isso signifique abrir mão de direitos, é aceito porque o povo precisa”, denuncia Thiago.
A captura corporativa dos mecanismos de justiça e reparação
Na primeira plenária do observatório, a professora Tatiana Ribeiro de Souza do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais da Universidade Federal de Ouro Preto (GEPSA/UFOP), também enfatizou que os problemas já se apresentavam desde o início com o primeiro acordo celebrado em relação ao crime, o TTAC (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta), assinado em março de 2016, e propagandeado pela própria Fundação Renova como “uma opção inovadora ao convencional modelo de solução judicial de conflitos”.
Nesse “acordão” não participaram nem o Ministério Público Federal, nem as defensorias públicas, nem os “verdadeiros interessados na reparação, que são os atingidos”, denuncia Tatiana, que é doutora em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
O Estado brasileiro sempre permitiu que a corporação se outorgasse o poder de determinar quem foi impactado e quem não foi impactado por seu crime. Com esse poder de decisão nas mãos dos vitimários, acabou sendo criado um sistema de bloqueio ao acesso à Justiça por parte dos atingidos, como denunciou a integrante do Núcleo Estratégico da Defensoria Pública de Proteção aos Vulneráveis em Situação de Crise, Carolina Morishita, em entrevista ao Brasil de Fato.
“A gente viu, no caso de Mariana, que o cadastro realizado por eles é extremamente ineficiente. Uma das perguntas que constam no formulário é: ‘Por qual canal de televisão você se informa?’. Também queriam saber se o atingido era parte de algum movimento social. Ao final, em vez de ser um cadastro para corrigir o que eles haviam feito, virou uma forma de dificultar o acesso a direitos da população. E, até hoje, tem muitas pessoas que ainda não foram cadastradas”, contou a defensora pública.
A repactuação foi definida no Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, sob coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
pesquisadora dos impactos do crime que teve origem na barragem de Fundão, Dulce Maria Pereira, da UFOP, questiona o processo de repactuação desde o início.
“Eu quero saber se o ministro Fux [que preside o CNJ] recebeu as pessoas atingidas, porque eu sei que ele recebeu os advogados da Vale. Eu quero saber se a mais alta direção do Conselho Nacional de Justiça recebeu os dados das nossas pesquisas que são negadas e se recebem as pessoas atingidas e os coletivos que organizam as pessoas atingidas”.
Pela extinção da Fundação Renova
Em fevereiro deste ano, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuizou uma ação civil pública pedindo que a Fundação Renova seja extinta, por sua ineficiência e desvio de finalidade.
A entidade argumenta que a ilicitude constitucional e legal da fundação é “evidente”. “É como se fosse autorizado que os acusados no processo penal e nos processos coletivos em geral pudessem decidir e gerir os direitos e as garantias fundamentais das suas próprias vítimas”, afirmam os promotores de Justiça na ação.
A ação denuncia também o uso da fundação para realizar campanhas com informações falsas sobre supostos resultados da reparação, que não existem.
Desde o final de 2019, a Fundação Renova tenta encerrar o cadastro de pessoas atingidas.
Essa é uma preocupação atual das comunidades e das defensorias públicas. Lanla Maria Soares Almeida, que faz parte da Comissão dos Atingidos em Governador Valadares (MG), alertou sobre o problema durante a primeira plenária do observatório.
“Não aceitamos o fechamento do cadastro. O cadastro foi feito de forma tumultuada, sem ter esclarecimentos para os atingidos, sem as pessoas saberem do que se tratava. Valadares mesmo têm muitas pessoas que não se deram conta que são atingidos", aponta a moradora.
"Como vamos fechar o cadastro, se a gente não sabe o efeito que essa contaminação vai trazer para nossa saúde daqui a 5, 10 anos? Se for constatado que a gente adquiriu alguma enfermidade por causa desse rejeito, dessa contaminação, como que a gente vai reclamar se a gente já deu a quitação final, se já abrimos mão do direito futuro, e se não tem mais cadastro?”, questiona a Almeida.
A defensora pública Carolina Morishita também defende a ideia de que o cadastro não deve ser fechado. “Embora haja campanhas e de certa forma uma mobilização, a grande verdade é que pro público ultravulnerabilizado não há um conhecimento sobre o cadastro", aponta.
"E mesmo as pessoas que conhecem, muitas vezes não têm acesso ou não têm o entendimento de que o acesso é viável para elas. As pessoas mais humildes são muito preocupadas pelo próprio nome, e às vezes quando elas não entendem que elas têm o direito, por vezes, têm muito medo de que um simples ato do cadastro possa ser visualizado como uma tentativa de ‘aproveitamento’”.
Apesar dos problemas apontados, o debate ainda não foi incorporado no processo de repactuação, conforme a defensora pública. “Nas tentativas de outras negociações que a gente foi fazendo no decorrer desse processo, aparece como essencial ter a atenção e resguardar especialmente os mais pobres, mais vulnerabilizados, as pessoas de distritos, de comunidades rurais, mas ainda não houve um diálogo profundo sobre isso nessa mesa de repactuação”, explica Morishita.
Impactos e resistências das mulheres
A situação das mulheres da Bacia do Rio Doce é ainda mais grave. Elas não vêm sendo reconhecidas como atingidas. Isso porque, representam apenas um terço dos atingidos reconhecidos formalmente, sendo que elas são na verdade, a metade, segundo dados da empresa contratada pelo Ministério Público Federal, para fazer o monitoramento dos Programas de Reparação e Compensação dos Danos socioeconômicos e ambientais causados pelo crime socioambiental.
No lançamento do Observatório, Lethicia Reis, falou sobre a injustiça que representa o não reconhecimento do papel econômico das mulheres.
“Quando as mulheres perdem o acesso a água, as suas terras, suas casas, elas têm sua independência econômica, sua soberania alimentar e uma série de direitos que são violados, e que se não existe uma organização dos atingidos como o MAB, essas violações passam despercebidas, porque o trabalho doméstico não é remunerado, então não é reconhecida a perda econômica dessas mulheres”.
No Encontro de Mulheres e Crianças Atingidas do Rio Doce, realizado em Mariana em novembro de 2018, Fabiana, atingida no estado do Espírito Santo, falou sobre o problema que significa o viés nos registros, em termos não apenas de renda, mas de sua própria autonomia econômica.
“Eu trabalhava com artesanato e na pesca, junto com meu marido. Ficamos sem a minha renda também, mas só ele recebe cartão. Perdi minha autonomia, porque meu dinheiro eu que escolhia como ia gastar, com meus filhos e nas compras da casa. Agora tenho que ficar pedindo pro meu marido, isso não é vida”.
Após destruir seus meios de vida, as corporações submeteram as pessoas, e ainda mais as mulheres, à humilhação.
"Eu e minha cunhada, a gente trabalhava e tinha o dinheirinho da gente. Vendíamos fruta para fora, mas agora a gente não tem mais nada porque, pra eles [Samarco/Vale/BHP], não somos trabalhadoras. O pior de tudo é a humilhação. Aqui em casa, quem sempre comprava roupa, sapato, material da escola, era eu. Agora tem que ficar pedindo. E o dinheiro não dá", contou no ano passado, Dona Maria Helena Barreto, de 54 anos, que mora em Barreto, subdistrito de Barra Longa destruído pelo crime da Vale/BHP Billiton, em reportagem do Brasil de Fato.
É importante apontar e destacar que no processo de luta por justiça muitas mulheres tomaram a dianteira. Nesse sentido, o trabalho realizado pelo MAB com mulheres para contribuir no diagnóstico e visibilização das violações de direitos cometidas pelas empresas especificamente em relação a elas, foi muito importante.
A metodologia utilizada, inspirada nas arpilleristas chilenas que, com seus bordados, denunciavam e lutavam na busca por familiares detidos-desaparecidos pela ditadura de Augusto Pinochet, está documentada no filme Arpilleras: atingidas por barragens bordando a resistência, assim como no artigo "O acesso à Justiça das Mulheres Atingidas pelo Desastre do Rio Doce", publicado na revista Direito e Práxis, da UERJ.
Além de as mineradoras não resolverem os problemas econômicos que causaram com o crime (sendo que a BHP Billiton é a maior mineradora do mundo em valor de mercado, e a Vale está entre as maiores, ambas com lucros de bilhões de reais a cada trimestre), elas serão para sempre impunes por terem gerado impactos irreparáveis.
Entre os mais dolorosos estão os impactos sobre os três povos indígenas atingidos: Krenak, Guarani e Tupiniquim. Para os Krenak, o Uatú (o Rio Doce) era um rio sagrado. Além de terem adquirido doenças respiratórias e de pele, e perderem o rio de onde tiravam parte do sustento, eles foram forçados a deixar de celebrar sua cultura pela morte do rio.
“Para muita gente era só uma água que corria ali, mas para o meu povo era um borum, era um Krenak, um irmão que tomava conta da nossa saúde, da nossa religião, da nossa cultura. E essa empresa maldita que é a Vale acabou o matando. O que mais me deixa triste é que meu povo, ao longo de muitos anos, vinha alertando a sociedade sobre as maldades que estavam sendo cometidas em nosso rio, o Uatú, mas ninguém nos ouviu”, afirmou Shirley Krenak, uma das lideranças da comunidade, em estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Regras para as Empresas, Direitos para os Povos
A maneira inaceitável em que o Estado brasileiro permite que essas corporações gigantescas intervenham e até conduzam o processo de justiça e reparação deve ser fortemente denunciado e barrado.
Essa atuação poderá abrir precedentes jurídicos para que as corporações ditem as regras relativas aos crimes que cometem no Brasil. Essa arquitetura da impunidade com a qual as empresas respondem por seus crimes como e quando querem, é absolutamente perigosa, ainda mais em um contexto de extrema fragilidade democrática, como o que vive o Brasil.
São necessários marcos nacionais fortes para garantir que os direitos humanos tenham sempre prioridade sobre os interesses das empresas. Marcos que garantam justiça para as comunidades afetadas e também um tratado juridicamente vinculante na ONU que ponha fim à impunidade das transnacionais, como defendemos junto a Amigos da Terra Internacional e diversas outras entidades em nível nacional e internacional.
Em um contexto de retrocessos como o atual, é fundamental o apoio à organização e fortalecimento popular. Por isso a tarefa do Observatório do Rio Doce é lutar para que, de uma vez por todas, atingidas e atingidos pelo maior crime socioambiental da história do Brasil, estejam no centro da busca por justiça e reparação.
Foi o que sintetizou Simone Silva, atingida de Barra Longa (MG) e integrante do MAB:
“Está sendo feito um outro pacto, onde as vítimas têm que ficar do lado de fora, lá na senzala, e os senhores articulando, tirando os direitos, colocando mordaça nos atingidos pra que nós não possamos falar! O momento é histórico sim, a história vai ser reescrita, mas pra isso a caneta tem que ficar na mão dos atingidos!”.
* Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira