Tekoha é um território sagrado. Tekoha, o local onde cada pessoa pode ser quem verdadeiramente é. Fora deste espaço é como estar morto. Não é sobre estar na tekoha, é sobre ser no tekoha. Tekoha é onde se encontra o amanhã. E é por este território sagrado que o povo Guarani Kaiowá luta desde a chegada dos karaí (não-índios), que se apresentam hoje na forma do agronegócio.
"Quando os karaí chegaram nós estávamos com a terra. Os karaí estavam com a bíblia e pediram para que fechássemos os olhos. Quando abrimos, nós estávamos com a bíblia e eles com a terra" foi assim que Anastácio Peralta resumiu os conflitos envolvendo a demarcação de terras na região de Dourados e Rio Brilhante, região Centro-sul do Mato Grosso do Sul.
Anastácio acompanhou a comitiva dos movimentos sociais que visitaram os tekohas dos Guarani Kaiowá. O motivo da visita foi a chegada de sementes crioulas e bioinsumos organizada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), produzidas por cooperativas camponesas no Rio Grande do Sul com apoio da Associação Nacional de Agricultura Camponesa (ANAC). A comitiva foi formada por militantes do MPA, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A primeira tekoha visitada foi a de Laranjeira Nhanderú, território de retomada que tem sofrido severas ofensivas dos latifundiários da soja. Chuvas de veneno, perseguições e assassinatos são a forma dos fazendeiros da região coibir a organização indígena. O pai de Lucini Almeida, seu José, o Zezinho, foi vítima de um estranho atropelamento na BR 163, que para os indígenas foi assassinato premeditado, uma vez que ele era a principal liderança na época.
Lucini recebeu a comitiva na manhã da sexta-feira (13), e contou a história de resistência da tekoha Laranjeira Nhanderú. "Agora estamos em uma luta pela municipalização da escola que temos no tekoha, é uma luta difícil", explica. Lucini apresenta a dificuldade das crianças em aprender o português e a falta de paciência das professoras karaí, que muitas vezes não conhecem ou não se interessam pela realidade das crianças Kaiowá. "Chegou o momento em que convidamos elas, o diretor e secretário de Educação para estarem em nossa casa de reza, para conhecer e entender quem nós somos."
Segundo a legislação nacional sobre a educação escolar os povos indígenas têm direito a uma educação específica e multilíngue, mesmo assim, esta não é a realidade em muitos territórios. E, infelizmente, esta não é a única das legislações não cumpridas pelo Estado brasileiro.
No Laranjeira Nhanderú um dos motivos da visita, além da entrega das sementes e bioinsumos, foi um esclarecimento sobre a luta contra o Marco Temporal. No próximo dia 26, o STF votará uma ação em relação à etnia Xoklen, de Santa Catarina, para demarcar sua área, cuja decisão poderá ser aplicada para todas as próximas situações de demarcação de terras indígenas de todo o Brasil. É o que se chama de repercussão geral ou efeito vinculante. "Depois da Constituinte esta é uma das medidas mais importantes na história recente dos povos indígenas do ponto de vista da legislação brasileira", avalia Mathias Hempel, do CIMI.
À tarde a comissão visitou duas retomadas localizadas na reserva de Dourados: Nhu Verá e Araty Kuti. Em Nhu Verá o modo de operar do agronegócio é ainda mais assustador. Os fazendeiros blindaram um trator, o qual chamaram de “Caveirão”, para destruir as barracas dos Kaiowá. Mesmo assim as famílias não saíram, nem sairão, porque a luta é pela retomada, apesar do desejo da elite local de construir um shopping center neste território. “De dia eles construíam as casas e à noite vinha o trator, que era fechado com chapas de aço e tudo para derrubar as casas e atacá-los”, revela Flávio Vicente Machado, também missionário do CIMI.
A história do Caveirão chegou virar assunto para uma reportagem no programa Fantástico, da Rede Globo, que denunciou a atrocidade. Outra denúncia que revoltou a elite local veio do economista Eduardo Moreira, que utilizou suas redes sociais para denunciar a fome e a presença de milícias armadas em torno das áreas de retomada e das reservas indígenas. Da denúncia de Eduardo Moreira nasceu um processo de mobilização de recursos, que chegou a arrecadar R$ 500.000,00 e a construção de um comitê popular gestor, composto por indígenas e não-indígenas, que desenvolve o projeto Ñande Retea’e (Ânimo).
“Os indígenas dentro do comitê afirmam que eles querem produzir, plantar, recuperar suas áreas, preservar o meio ambiente e reflorestar as reservas. Para alcançar esses objetivos a doação de sementes crioulas é importantíssima, porque a gente intensifica a soberania e segurança alimentar e é isto que os indígenas querem”, explica Thiago Botelho, presidente do conselho de Direitos Humanos da OAB de Dourados e integrante do comitê gestor. Com os recursos arrecadados já foram doadas cerca de mil cestas com alimentos da agricultura familiar. “As cestas básicas são importantes, mas elas são importantes porque não se investe nos territórios, não se investe em políticas para que eles possam plantar, produzir e colher em suas próprias terras e territórios”, completa Thiago.
“Nós entramos aqui porque é nosso e nós também não temos onde ficar, olha na aldeia atual, tá todo mundo um em cima do outro, não tem espaço mais e é por isso que nós vamos sempre lutar pelo que é nosso e nós agradecemos mais uma vez, vamos lutar e esperar a chuva, que chova!”, anuncia Magno Souza, que teve seu barraco incendiado pela milícia há cerca de 2 semanas. "Às vezes a gente acha que tá sozinho nesta luta, mas é importante ter esperança porque existem muitas pessoas que estão nos ajudando e que querem nos ajudar”, manifestou durante a entrega simbólica das sementes crioulas.
As sementes estão sendo entregues aos territórios esta semana e ajudarão a fortalecer a organização e a autoestima das comunidades. Além da entrega das sementes estão planejadas também algumas oficinas sobre a utilização de bioinsumos e outras práticas de manejo agroecológico para os próximos meses. “Primeiro a terra, depois a semente e só depois vem nós, então a semente é uma força divina que vem do corpo de Deus, do Nhanderu, que é esse milho, que fortalece nossa alma e que dá o sustento para nossos filhos”, finalizou Anastácio Peralta sobre a importância das sementes para os Kaiowá.
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Edição: Katia Marko