Enquanto muitos tentam imaginar um futuro para a Igreja para além da sua própria cultura do abuso, o exemplo da colega católica Simone Biles merece empatia e atenção. Ela nos ensina que uma instituição cúmplice em perpetuar o abuso não consegue ditar aos sobreviventes como eles devem se curar, nem onde, nem quando.
O comentário é de Susan Bigelow Reynolds, professora de Estudos Católicos na Candler School of Theology, da Emory University. O artigo foi publicado por Commonweal, 04-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se alguém me incumbisse de produzir um documentário sobre os anos 1990, baseado inteiramente nas minhas próprias memórias da década, pelo menos metade dele seria de gravações da competição de ginástica feminina dos Jogos Olímpicos de Verão de 1996, em Atlanta.
Eu fiquei tão impressionada com o evento que, mesmo agora, um quarto de século depois, eu ainda me lembro de estar deitada no tapete felpudo da minha tia-avó na frente de um ventilador oscilante, com o queixo apoiado nas palmas das mãos, os olhos arregalados e fixos na televisão quadrada de madeira. Eu tinha nove anos – ainda jovem o suficiente para ver a mim mesma nos atletas na tela, para sonhar os meus sonhos mais loucos por meio deles.
Na frente do espelho do banheiro, eu cantarolava “Reach”, de Gloria Estefan, a balada característica dos jogos, e agitava meus braços acima da minha cabeça em um êxtase imaginário. Eu fingia que a minha medalha da Olimpíada de Matemática era um ouro olímpico. Sozinha no meu quarto, eu fazia uma reverência para colocá-la solenemente em volta do meu próprio pescoço.
Assim como milhões de crianças que cresceram nos anos 1990, um momento daquele verão reina soberano na minha memória: o salto final de Kerri Strug na competição de ginástica por equipes femininas. O momento é tão icônico que sequer requer um resumo: Strug, a última ginasta a competir no evento final da competição, machucou gravemente o tornozelo ao cair em seu primeiro salto. Mas restava mais um salto. Estremecendo de dor visceral, ela invocou o coração de uma campeã, desceu correndo pelo tatame, executou a sua coreografia até a perfeição e finalizou o seu salto sobre um pé só. Seu heroísmo e determinação garantiram o ouro para as Sete Magníficas. Foi um triunfo.
Pelo menos, era assim que eu me lembrava.
Quando Simone Biles se afastou abruptamente da equipe olímpica de ginástica [dos Estados Unidos] e das competições individuais em Tóquio na semana passada, citando preocupações com a sua saúde mental, eu – assim como grande parte dos Estados Unidos, ao que parece – me vi revisitando as gravações do salto de Strug.
Quando eu o assisti desta vez, me senti enjoada.
Depois de saltar pela segunda vez, Strug é agarrada e carregada para fora do tatame pelo agora infame treinador Béla Károlyi, que, com a sua esposa, Márta, ajudou a criar uma dinastia olímpica feminina dos Estados Unidos por meio de um regime de treinamento que aparentemente dependia muito de abuso emocional, métodos de treinamento perigosos e isolamento dos pais e responsáveis por parte dos jovens atletas. Károlyi entregou Strug aos braços de ninguém menos do que o médico da equipe, Larry Nassar, um homem que agora revelou ter abusado sexualmente de centenas de ginastas ao longo de quase duas décadas. Poucos minutos depois, passando de uma figura de autoridade abusiva para outra, Strug parece quase uma boneca, um objeto.
Como uma criança projetando minhas próprias fantasias olímpicas sobre Strug, eu presumia que ela exercesse um alto grau de arbítrio pessoal. Quando eu revisito aquele momento agora, tal arbítrio parece ser principalmente um produto da minha imaginação. Ela poderia ter se recusado a competir com um tornozelo machucado? Ela poderia realmente ter dito não?
Tudo o que sabemos sobre Nassar, Károlyi e a USA Gymnastics (USAG) durante aqueles anos sugere que ela não poderia ter feito isso. Em vez de uma estrela da ginástica decidindo-se corajosamente a superar a própria dor pelo bem da equipe, o que eu vejo agora é uma adolescente cuja saúde e segurança foram tratadas como danos colaterais em uma busca por prestígio nacional e institucional.
Ela não escolheu se sacrificar. Ela foi o sacrifício.
Observando o calor e a camaradagem ostensivos dos ginastas estadunidenses e dos seus treinadores hoje, eu quase consigo esquecer que esses atletas estão competindo à sombra de uma devastadora crise de abusos sexuais. Nassar abusou de uma geração inteira de meninas e jovens no esporte, enquanto a cúpula da USAG e outras autoridades faziam vista grossa. As vítimas foram silenciadas, ameaçadas e abandonadas por aqueles que detinham posições de confiança.
A cultura do abuso dentro do esporte era um segredo aberto entre aparentemente todos que detinham o poder de impedi-lo. Foi necessária uma denúncia no jornal Indianapolis Star, o corajoso testemunho público dos sobreviventes e investigações criminais estaduais e federais para começar a descobrir e a desvendar a teia de abusos.
Tudo isso deve soar assustadoramente familiar para os católicos, dos quais Biles faz parte. O que a Igreja pode aprender com o testemunho dela?
A primeira lição é para a Igreja como instituição. Em uma entrevista em abril, com Hoda Kotb da NBC, Biles lembrou aos telespectadores que ela é a única sobrevivente do abuso de Nassar que ainda compete na equipe dos Estados Unidos. A sua decisão de continuar no esporte, explicou ela, veio em grande parte do desejo de usar o seu alto perfil para evitar que a USAG varresse a crise dos abuso para baixo do tapete – para continuar a responsabilizar aqueles que estão no poder por perpetuarem uma cultura do abuso.
De fato, foi apenas em 2018, depois que Biles lamentou publicamente a perspectiva de retornar à mesma sede de treinamento onde ela foi abusada, que a USAG fechou essa sede de forma definitiva e permanente.
Nesse sentido, dentro do esporte, ela assumiu o papel de profeta, chamando publicamente a instituição a prestar contas e se recusando a simplesmente ir embora. Em sua entrevista com Kotb, Biles descreveu que sentiu chamada por Deus a ser uma “voz para a geração mais jovem”.
As instituições precisam de profetas. As estruturas institucionalizadas de abuso começam a desmoronar quando damos ouvidos às vozes que ousam desafiá-las – especialmente as vozes das mulheres negras, cujo trabalho libertador tem sido dado como óbvio há muito tempo.
A segunda lição é para a Igreja como Povo de Deus. A decisão de Beneath Biles é um fio dourado ético e teológico com profundas ressonâncias na teologia feminista. Uma mulherista – escreveu Alice Walker em seu clássico “In Search of Our Mother’s Gardens”, de 1983 – é uma mulher negra que “ama a si mesma. Independentemente de tudo”.
Como uma mulher branca criada em uma sociedade que cronicamente iguala o valor humano à produtividade, eu admito que as palavras de Walker sempre foram um obstáculo para mim (o que, é claro, não é por acaso).
Nesse nível profundo que jaz abaixo da mera compreensão intelectual, eu sempre soube que havia coisas que eu não entendia – não conseguia entender – sobre o que Walker queria dizer e sobre o que as minhas colegas negras que adotam a teologia mulherista hoje querem dizer quando invocam as palavras de Walker.
Na terça-feira passada, Simone Biles me ajudou a entender o que as teólogas mulheristas querem dizer quando enfatizam essa expressão final: “independentemente de tudo”. Diante de pressões inimagináveis, memórias de traumas e, sem dúvida, muitos outros fatores que só ela sabia, Biles se recusou a “se superar” – uma decisão que, com toda a probabilidade, poupou-a de graves ferimentos físicos.
Essa recusa foi um “não” à santificação da coragem e da determinação. Mais ainda, foi um “não” ao legado de abuso e de objetificação enfrentado tanto pelas ginastas estadunidenses quanto pelas mulheres negras.
Desafiando a expectativa de que ela sacrificaria a sua saúde, segurança, integridade corporal e bem-estar psicológico pelo prestígio nacional e pela reputação institucional, Biles optou por fazer por si mesma aquilo que a USAG repetidamente fracassou em fazer no nome dela: tratar a sua mente e o seu corpo com o cuidado que mereciam.
Enquanto muitos tentam imaginar um futuro para a Igreja para além da sua própria cultura do abuso, o exemplo da colega católica Simone Biles merece empatia e atenção. Ela nos ensina que uma instituição cúmplice em perpetuar o abuso não consegue ditar aos sobreviventes como eles devem se curar, nem onde, nem quando.
Ela nos ensina que a melhor coisa que qualquer instituição ferida pode fazer é dar ouvidos às vozes dos seus profetas – aqueles que recusam implacavelmente o luxo de apenas seguir em frente.
Por fim, Biles nos ensina o poder do amor. Sua entrevista com Kotb sugeriu que, por trás da sua persistência na ginástica profissional, está um profundo senso de vocação, o chamado divino de amor dentro da realidade concreta. Biles ama o seu esporte, a sua equipe e a geração de jovens mulheres e meninas que a veem como um exemplo. E, na terça-feira, na frente do mundo inteiro, Biles escolheu amar a si mesma – independentemente de tudo.
Edição: IHU On-line