Governador do RS vem promovendo ataques que representam retrocessos nas políticas ambientais
O agronegócio conseguiu impor mais um retrocesso para a saúde da população e o meio ambiente, desta vez em território gaúcho.
No final de junho, a Assembleia Legislativa do RS aprovou, por 37 votos contra 15, o Projeto de Lei 260/2020, que modifica a Lei 7.747, de 1982. Tratava-se da lei mais restritiva do Brasil em relação a agrotóxicos, e como Amigos da Terra fomos parte de sua construção.
Ao mesmo tempo, e na mesma linha do desmantelamento e do esvaziamento das funções de órgãos ambientais promovidas por Bolsonaro em nível federal, o governo de Eduardo Leite (PSDB) quer impor uma reforma da estrutura administrativa do Executivo do estado por meio do Projeto de Lei Complementar (PLC) 163/2021, que pode neutralizar ou anular o poder e funções dos órgãos ambientais gaúchos.
Os servidores das entidades envolvidas vêm denunciando a tentativa de atropelar o debate por parte do Governo Leite, assim como os enormes problemas contidos na proposta.
Esse tipo de mudança pode facilitar ainda mais processos de licenças ambientais questionáveis como a que foi concedida pela Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) à empresa Águia Fertilizantes S.A para o Projeto Fosfato Três Estradas em Lavras do Sul.
No final do mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou uma Ação Civil Pública (ACP) exigindo a suspensão da Licença Prévia emitida pela Fepam em 2019.
Entre outros motivos, o MPF denuncia faltas e omissões no Estudo de Impacto Ambiental e no relatório (EIA/Rima), a falta de audiências públicas em localidades potencialmente impactadas pela implementação de megamineração de fosfato para produção de fertilizantes agrícolas e a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais do Pampa e moradores da região sobre o megaprojeto.
Por último, em mais uma aliança com o Governo Bolsonaro, encontra-se a proposta do governo gaúcho de entregar Unidades de Conservação para atores privados.
O Governo Leite é um dos seis estados que aderiu ao Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais criado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sob comando de Gustavo Montezano, amigo dos filhos do presidente da República.
A destruição da lei pioneira sobre agrotóxicos no Brasil
Em 1982, a contaminação descoberta no Rio Guaíba por resíduos de agrotóxicos (como o endosulfan) utilizados na produção agrícola da região levou entidades ecologistas pioneiras, entre as quais se encontrava a Amigos da Terra Brasil (ainda sob o nome de Ação Democrática Feminina Gaúcha), a iniciar uma campanha de pressão ao poder legislativo estadual para criar medidas de controle ao uso de agrotóxicos.
Esse processo de luta culminou na promulgação da Lei nº 7.747, de 22 de dezembro de 1982, a primeira lei de regulação sobre agrotóxicos do país, que entre outras determinações, estipulou como condição para distribuição e comercialização de venenos, que os mesmos contassem com aprovação de uso nos países de origem.
A lei não foi apenas pioneira no Brasil, como a primeira do tipo entre os países do Sul Global. Ela serviu de exemplo para outros estados e para a primeira lei de caráter nacional sobre agrotóxicos, aprovada alguns anos depois, a Lei Federal nº 7.802 de 11 de julho de 1989.
O PL 260/2020 do Governo Eduardo Leite eliminou a exigência de que os agrotóxicos não sejam proibidos em seus países de origem, para sua liberação no estado.
A mudança é tão injustificável que o governo teve que recorrer a um suposto problema de ordem jurídica que, inclusive, é igual à tese apresentada em 1985 pela Andef (à época denominada Associação Nacional de Defensivos Agrícolas, e rebatizada a partir de 1992 de Associação Nacional de Defesa Vegetal).
Em 1985, a Andef, por meio da Procuradoria Geral da República, entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com as Representações de Inconstitucionalidade nº 1153 e nº 1150, argumentando que somente a União tinha o poder de fiscalizar e legislar sobre os agrotóxicos.
Agora, em defesa da mudança do Governo Leite, o secretário adjunto da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr), Luiz Fernando Rodriguez Júnior, argumentou que “parte da Lei 7.747 colidia com o Marco Regulatório dos Agrotóxicos, Lei Federal 7.082/1989, o qual determinou que diretrizes e exigências para o registro dos produtos em território nacional é de competência do governo federal, por meio de três entes: o Ministério da Agricultura observa a relevância agronômica; o Ibama determina a adequação ambiental; e a Anvisa avalia os impactos na saúde. Uma vez aprovado nessas três instâncias federais, o produto agrotóxico está apto a ser utilizado no Brasil”.
Acontece que o STF não considerou a lei inconstitucional à época. Agora, sob a Constituição de 1988, o Conselho Estadual de Saúde (em sua Moção de Repúdio ao PL 260) também contesta o argumento em relação a esse suposto problema apresentado pelo governo de Eduardo Leite: “Considerando que de acordo com os preceitos da Constituição Federal, a competência dos Estados para legislar sobre a proteção e defesa da saúde é concorrente à União, podendo ser mais protetiva, contrariando o arremedo de justificativa apresentada para o PL 260/2020”.
Chega a ser imoral que o governo apresente esse tipo de justificativa com verniz técnico-jurídico quando o que está em jogo é a liberação de agrotóxicos proibidos em seus países de origem por apresentarem ameaças à saúde humana e ao meio ambiente.
Em setembro de 2020, uma investigação da organização suíça Public Eye mostrou que, em 2018, os países da União Europeia exportaram 41 agrotóxicos proibidos em seus territórios.
Entre os impactos na saúde humana pelos quais esses venenos foram proibidos, segundo a organização, estão: morte por inalação, malformação, disfunções hormonais e reprodutivas e câncer.
O Brasil já é o segundo maior comprador do mundo de agrotóxicos proibidos na Europa. As proibições da União Europeia também levam em conta que os venenos podem contaminar a água potável das regiões em que são aplicados.
Outra pesquisa da organização suíça Public Eye, desta vez feita aqui no Brasil, em parceria com a Repórter Brasil e a Agência Pública, encontrou resíduos de agrotóxicos nas redes de abastecimento de mais de 1.300 cidades brasileiras.
O presidente do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, Fernando Aristimunho, afirma que o governo não os consultou e nem os convocou “para nenhum espaço, em nenhum momento”. “Nós repudiamos essa medida aprovada, que vem impactar nossos modos de vida enquanto povos tradicionais”, denuncia Aristimunho.
Eduardo Leite tentou impor no final de 2020 a modificação da lei, mas a resistência de diversas organizações e movimentos impediu o movimento. Emiliano Maldonado, da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), lembra que o governador havia tirado o regime de urgência para o tratamento da lei e tinha se comprometido a não colocar esse regime novamente no projeto, mas acabou não cumprindo. “O regime de urgência não permite o debate que uma lei desse tipo exige”, critica o jurista.
“Liberando mais agrotóxicos vão estar impactando mais os diversos ecossistemas do RS, onde existem populações tradicionais que dependem da integridade desses ecossistemas para suas práticas culturais, sociais, espirituais, de sabedorias ancestrais”, alerta o presidente do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa.
Ele afirma que o PL dos agrotóxicos é contrário aos direitos garantidos nos artigos da Constituição 216, “que trata do direito de ser, criar e viver das populações tradicionais”, e 231, “que trata do direito ao território”. “As populações tradicionais dependem desses espaços de território para sua reprodução cultural, social e econômica, e essa medida impacta diretamente nesses direitos”, explica Aristimunho.
O PL 260, diz Maldonado, é um “marco nesse processo de destruição que vem ocorrendo nos últimos anos da legislação ambiental aqui do estado”. “A legislação gaúcha, tanto o Código Estadual Ambiental, como a Lei de Agrotóxicos, foram conquistas dos movimentos sociais, das organizações ambientalistas que, num contexto de aumento dos processos de destruição da natureza, conseguiram promover no seio da sociedade e do parlamento gaúchos, restrições ao poder econômico dessas grandes corporações produtoras de agrotóxicos”, completa o jurista.
O desmantelamento das estruturas de controle e fiscalização ambientais gaúchos
Em sua defesa do PL 260, o secretário adjunto da Seapdr, Luiz Fernando Rodriguez Júnior, afirma que o projeto “estabelece a responsabilidade compartilhada entre as secretarias do Meio Ambiente, Saúde e Agricultura no cadastramento e fiscalização dos agroquímicos”.
Mas justamente, os ataques nessas áreas também vêm sendo fortemente criticados, não só por nós das organizações e movimentos populares, como pelos próprios trabalhadores das entidades públicas do estado que têm essa responsabilidade.
Recentemente, a Associação dos Servidores da Fepam (Asfepam), a Associação dos Funcionários da Fundação Zoobotânica (Affzb) e a Associação dos Servidores da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Assema), publicaram um manifesto de repúdio ao regime de urgência para votação do PLC 163/2021, que trata do desmonte da estrutura administrativa do Estado do Rio Grande do Sul.
Uma das principais críticas é a tentativa do governo de tornar permanente a fusão da Secretaria de Infraestrutura à Secretaria de Meio Ambiente.
As entidades questionam a possibilidade de uma “efetiva fiscalização e monitoramento de empreendimentos e projetos que são fomentados e implantados dentro da mesma Secretaria fiscalizadora e reguladora”.
Em nota, a Asfepam também questiona: “Como a Fepam vai analisar a viabilidade ambiental de um projeto se a própria secretaria está fomentando os projetos de mineração, energia e saneamento básico? É uma situação conflituosa, extremamente insegura aos técnicos bem como passível de pressões internas na medida em que o interesse maior hierárquico da secretaria sobrepõe-se ao interesse técnico-legal da Fepam”.
A Asfepam considera o PLC 163/2021 um disparate e faz uma alerta sobre a gravidade das mudanças propostas:
“Não serão os diagnósticos ambientais, as alternativas locacionais, o Plano de Controle Ambiental, o EIA/RIMA e os demais instrumentos de proteção ambiental, que definirão se os projetos serão aprovados ou não. Eles serão impostos pelo governo Leite e seus apoiadores. A boiada continua a passar, cada vez maior, cada vez mais frequente, pisoteando o povo gaúcho, cuspindo na comunidade científica, massacrando os servidores públicos”.
Concessão de parques estaduais: por que precisamos de atores privados?
Outro dos retrocessos promovidos pelo governo de Eduardo Leite é a inclusão dos parques estaduais no Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais do BNDES.
No começo do mês de julho, o governo conseguiu que a Assembleia Legislativa aprovasse em primeiro turno, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 284/2019, que visa modificar o artigo 259 da Constituição Estadual que proíbe a concessão de unidades de conservação ao mercado. A proposta visa a entrega dos parques estaduais do Caracol, Delta do Jacuí, Jardim Botânico, Tainhas e Turvo.
Em sintonia com o discurso do governo federal de melhorar o setor turístico e “gerar emprego e renda”, a proposta, defendida como parte da “boiada” pelo ex-ministro Ricardo Salles, tenta ocultar que os parques passarão a ser destinados à geração de lucros para poucos.
Em 2019, entidades e lideranças políticas de Canela, cuja prefeitura tem a concessão de gestão do Parque do Caracol, começaram a se mobilizar contra a proposta de privatização do parque.
Em carta aberta, as lideranças argumentavam que em 2018, o parque havia recebido 350 mil habitantes e gerado uma arrecadação de R$ 4 milhões para o município e de R$ 1 milhão para o estado.
Entre as mais importantes resistências à entrega das unidades de conservação federais ao capital privado no estado está a retomada indígena Xokleng na Floresta Nacional de São Francisco de Paula, reivindicando seus direitos à terra e território no local desde 2020.
Não há “terceira via”
A queda constante de popularidade de Bolsonaro e o avanço rumo às próximas eleições, fazem com que a direita comece a testar nomes para tentar emplacar um candidato que possa impedir a volta de um governo que não seja da própria direita.
Diante do desastre que se tornou o governo Bolsonaro, a estratégia da direita neoliberal agora é distanciar-se do personagem que ajudaram a colocar no poder. O passo seguinte é o de propagandear a necessidade de uma candidatura “moderada” e "mais moderna", supostamente oposta tanto a Bolsonaro quanto a Lula: uma “terceira via”.
A análise do histórico recente, e das atuações dos atuais governadores e parlamentares que propagandeiam essa ideia (principalmente no que diz respeito ao PSDB), mostra que as divergências com a política de desmonte, entrega, de retirada de direitos e retrocessos para os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, são ínfimas, se é que existem.
A chamada terceira via, da qual seria parte Eduardo Leite, responde aos mesmos atores beneficiados pelo governo de Jair Bolsonaro: agronegócio, mineração e corporações que promovem a entrega dos bens do povo brasileiro e a eliminação progressiva de direitos básicos conquistados por meio de muita luta dos movimentos populares, organizações e sindicatos.
O objetivo não é o de criar uma alternativa ao que está sendo o governo Bolsonaro, mas sim, garantir a continuidade do projeto neoliberal que está posto.
Como Amigos da Terra, temos orgulho de ter feito parte da criação de uma lei pioneira sobre os agrotóxicos no Brasil e no Sul Global, de seguir firmes ombro a ombro na luta dos povos pelo seus direitos, soberania e justiça ambiental.
Continuaremos na luta pela recuperação das condições democráticas mínimas, que vêm se deteriorando desde o golpe de 2016 e para que o governo fascista e genocida de Bolsonaro caia por seu projeto político ultraneoliberal, ultaconservador e ultradestruidor da natureza e dos direitos dos povos.
Queremos ver este projeto derrotado nas urnas e nas ruas, no RS e no país, para possibilitar uma via de construção popular que nos permita voltar a esperançar, rumo a uma sociedade mais justa, humana, solidária e sustentável.
*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às terças-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo e Katia Marko